domingo, 1 de dezembro de 2013

Proust e a escrita impressionista

Quando adolescentes, ainda no colégio e especialmente próximo do vestibular, somos orientados por professores de português para  que os textos de redação sejam escritos obedecendo importantes regras: não escrever períodos longos, se possível abrir parágrafos - não economizá-los-, não repetir palavras, não escrever ideias  redundantes, ser objetivo em relação a uma determinada ideia ou tema, entre outros. Essas regras que regulamentam, por assim dizer, a estética da escrita, quando são feridas, expõe o texto a riscos, e fazem da escrita um desafio, como se fôssemos  equilibristas caminhando no fio linear das regras. Rebelar-se à isso seria escrever mal... Seria mesmo? Muitas vezes sim, mas nem sempre, e arrisco em dizer, que precisamos, para uma escrita criativa, eventualmente, ser transgressores de regras da escrita. Contudo, não basta apenas transgredir, é preciso talento, talento necessário para se fazer escritor.
Comparo essa rebeldia grosseiramente com momentos das artes plástica. Por muito tempo defendeu-se o sentido da pintura como de imitação da realidade. O quadro era um  retrato  agradável de uma paisagem, de uma pessoa, de uma cena doméstica. Os melhores quadros eram os retratos fidedignos da realidade. Surgiu então a fotografia, que a principio parecia destituir as artes plásticas. seria então a pintura apensas um retrato? Inspirado nesse questionamentos, um grupo de pintores resolveu deformar a técnica em nome de uma nova realidade, não mais a realidade objetiva, mas a perceptiva e, na imagem perceptiva, haveria de se somar à imagem, a captação subjetiva da imagem. Se observarmos a pintura impressionista, como a “mulher com sombrinha” de Claude Monet,   podemos ilustrar essa nova de maneira de pensar a imagem:  os contornos se tornam menos precisos, as cores estouram com a luminosidade, os detalhes de traços se dissolvem, a cor preta - antes fundamental para delimitar imagens - passou a ser evitada. São feitos vários quadros de um mesmo evento com percepções diferentes. Voltemos à literatura.


Há 100 anos era publicada pela primeira vez a obra do escritor francês Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido, volumes que num primeiro momento passaram desapercebido pelo público e quando, eventualmente,  lido pela crítica especializada da época, foi passado por comentários apáticos ou negativos. Muito de sua crítica negativa ocorreu exatamente pelos motivos que aparentemente ferem  as normas da boa escrita: o texto de Proust tem períodos  longos - muitas vezes, como ouvi falar, “dá sensação de falta de ar” -, vira-se páginas e páginas sem dividir sequer um parágrafo, as letras, as palavras parecem monótonas, cansativas e - aparentemente - falta objetividade, o que faz com que a narrativa  transborde em repetições. Enfim, um texto que poderia ser considerado imprestável. O fato, contudo, é que o texto proustiano com todos esses percalços é hoje considerado  uma das grandes obras-primas da literatura mundial. E para justificar tamanha importância, cito o exemplo do impressionismo.


A forma narrativa de Proust sai da minúcia descritiva da literatura do século XIX  em que se descreve detalhes de um rosto, de uma passagem e de um mobiliário e entra numa descrição perceptiva, em que os elementos sensoriais do narrador variam sobremaneira a depender do momento em que um determinado fato está sendo narrado.  Personagens mudam de perpectivas, de valores, e são revelados e desvelados, ora são sublimes, ora medíocres; ora são sumidades ora impostores. A cena do olhar perceptivo de Proust não revela apenas a imagem que todos perceberiam, mas detalhe ou um foco que ainda não se tinha dado conta. 

Ler Proust é conversar, quase cochichar, reservadamente como se tivéssemos nos despertando para diversas várias nuances do discurso: pode-se perceber um comentário elogioso ladear o sarcasmo sem parecer deselegante, ou ainda, um dizer belo e bem humorado, narrado por um por um sujeito adoentado - a doença não tira o êxtase da condição de viver.   


Recomendar a leitura de Marcel Proust é hoje um ato de coragem. Imagine você, leitor, virar-se para uma pessoa conhecida ou amiga, que em geral lê apenas páginas que cabem na tela de smartphones, e dizer-lhe que leia nos próximos meses ou talvez anos, as cerca de quatro mil páginas de um livro de ficção; imagine ainda recomendar a esse improvável leitor: “leia devagar”.   Sei que poucos irão me levar a sério, mas a leitura de Em busca do Tempo Perdido é um exercício de contemplação singular, propicia um olhar privilegiado às questão da sociedade de início de século (o século XX), da à estética literária,  à psicologia das idiossincrasias da condição humana.  Para aqueles que continuam indecisos com minha indicação, recomendo um livro introdutório, que inclusive já falei em outra ocasião aqui nesse blogue: trata-se de A tartaruga e a Borboleta: um Caminho para Proust do escritor Paulo Gustavo de Oliveira, que considero um dos melhores convites para se entrar no universo literário de Proust.

Marcos Creder



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