domingo, 31 de janeiro de 2016

PEQUENOS DRAMAS DO COTIDIANO AO LADO

Resultado de imagem para a vida dificilA vida, sabemos, não é um mar de rosas. Guimarães Rosa, em seu livro Grande Sertão Veredas, através do personagem Riobaldo, já disse que "viver é muito perigoso". Viver, conviver, sobreviver, resistir, enfrentar, prosseguir, nada disto é tão fácil assim. Pra uns é menos difícil ou dificultoso, para outros é mais. Em meados dos anos 60 em um famoso programa televisivo á época, O Homem do Sapato Branco, o apresentador Jacinto Júnior tornou célebre sua expressão "mundo cão" que significava, e ainda significa, a vida nua e crua dos problemas do povo. 
Resultado de imagem para run, série tv

O mundo não é um Shagri-la. Infelicidades e infortúnios convivem com alegrias e conquistas. Vivemos cercados de adversidades, riscos e injustiça social. Se o ser humano não é perfeito, a sociedade por ele criada muito menos. Às vezes (e nem sempre é somente às vezes) as pessoas são levadas a tentar encontrar soluções individuais para problemas socialmente construídos. Tim Maia cantava que há aqueles que nascem pra sofrer enquanto outros pra sorrir, e concluía seus versos entoando "mas quem sofre tem que procurar/pelo menos vir achar razão para viver/ver na vida algum  motivo pra sonhar/ ter um sonho todo azul/azul da cor do ar". E é sobre a vida dessas pessoas que parecem fadadas a sofrerem e carentes de sonhos azuis de que trata a série inglesa Run, em exibição pelo canal Netflix.
Resultado de imagem para outsider

Ao estilo dos filmes de Alejandro Iñarritu (Amores Perros e Babel) a narrativa centra em quatro capítulos distintos que apenas se interligam através de quatro personagens transeuntes periféricos da vida de cada um. São personagens que vivem nos contornos da vida e nos subúrbios urbanos de uma cidade grande, no caso os subúrbios londrinos. Personagens tão verossímeis que até parece que dar para sentir o cheiro de seus perfumes e desodorantes baratos. Personagens que retratam o dia-a-dia exaustivo da luta diuturna pela manutenção de uma mínima dignidade possível, ou mesmo não possível porém aspirada. Pessoas que passam os dias bebendo, fumando, se entorpecendo, suando em empregos de baixa remuneração ou no mercado informal, assistindo filmes e vídeos, correndo de lá e pra cá sem chegarem a lugar nenhum, tudo isto sob o céu cinzento não apenas pela pouca luz solar, mas principalmente feito da tonalidade gris e pálida da tristeza e de melancolia.
Resultado de imagem para fracassado social

O miudinho da vida daqueles que se acham presos no pequeno espaço social que lhes foi ofertado viver. Não há ilusões, nem esperanças vãs. São pequenos trechos de histórias trágicas de quem vive a tragédia de existir nos extremos marginalizados da vida. Todos os quatro principais personagens caminham inexoravelmente para o topo e o pico do desespero. O pouco de algum sonho que possa existir não é o de desejar o róseo, mas sim o de desejar sofrer menos. Sonhos remotos e tênues daqueles que estão somente por um fio.
Resultado de imagem para pessoas marginalizadas
Sem romantismos ou condescendências, realista como real pode ser a vida, Run faz-nos olhar para o lado que não costumamos ou queremos olhar. Histórias rasgadas, fragmentos de quem já começou mal atrás e que se dirige para um futuro ainda menos promissor. Cortes existenciais de vidas de quem há muito sequer sabe o que é mais do que sobreviver. Sobreviver a todo custo, sabe-se lá pra que.
Resultado de imagem para lixo social

Os dramas contados não necessitam serem dramatizados (aí estaríamos no âmbito do melodrama), eles já são por si mesmos dramas. Dramas que nos são esfregados na cara durante cerca de 45 minutos (duração de cada capítulo) que assistimos com passiva indignidade, quase horrorizados, como quem olha a margem ao lado pela janela de um trem passante. 
Resultado de imagem para refugo social



Não se vive à margem social porque se quer. Muitas vezes nascimento é destino, destino trágico para aqueles que, nas palavras de Bauman são "pessoas desperdiçadas", "sobras do mercado de trabalho", "refugo da economia". São gente que desde cedo, e desde antes até de nascerem (filhos das sobras sociais anteriormente existentes), parecem predestinadas a transitarem na beira da sociedade de consumo e de ganharem seu sustento com os resíduos do sistema econômico. Bauman também as chama de "população excedente", vítimas do projeto de construção da ordem e do desenvolvimento sócio-econômico. Em seu livro Vidas Desperdiçadas, Bauman afirma que tais pessoas são "baixas colaterais, não intencionais e não planejadas, do progresso econômico". Como verdadeiros "coletores de lixo" vivem em um espaço ínfimo e lateral da sociedade, expulsos do paraíso consumista e sem, com raríssimas exceções, nenhum perspectiva de melhora ou saída.
Resultado de imagem para marginalizados sociais
Não precisamos, é claro, de uma televisão e de seus filmes e séries para enxergar o lado oposto dos outdoors, afinal ao redor de todo shopping center (ao menos aqui em Recife) há uma comunidade carente cujas histórias individuais, familiares e coletivas bem dariam para serem roteirizadas aos moldes dos quatros capítulos que compõem Run. Não são histórias edificantes nem de finais felizes. São histórias, várias e incontáveis, que provavelmente se desenrolam no outro lado da rua, depois que dobrar a esquina.

Joaquim Cesário de Mello