domingo, 29 de outubro de 2017

O VALOR QUE VOCÊ SE DÁ

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Iniciarei com uma pergunta curta e direta: quanto você vale? Evidente que não estou cá a lhe indagar em termos monetários, mas sim o valor que você acredita possuir, o seu automerecimento. O valor que cada indivíduo atribui a si mesmo é mais comumente chamado de autoestima, afinal se você der uma rápida passagem em um dicionário qualquer observará que o vocábulo "estima" significa o valor que uma pessoa dá a uma determinada coisa, pessoa ou até a si próprio. Neste sentido (latu sensu) autoestima é o valor que um sujeito dá a ele mesmo.
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Veja, de antemão, que não estou perguntando sobre como você se vê. Como você se vê é a dimensão conceitual de sua autoimagem, enquanto que a autoestima é a dimensão afetiva da mesma autoimagem. Sim, sei que você pode agora está dizendo que uma coisa não vive sem a outra. Concordo, muito possivelmente. Ambos são lados distintos de uma mesma moeda. Todos temos um retrato mental de si e este retrato define a pessoa em sua individualidade e subjetividade. Para William James - um dos fundadores da Psicologia como ciência - o "self" (o si mesmo) é o conhecimento que o indivíduo tem sobre si próprio. É como nós nos revelamos a nós mesmos e nos representamos em nossas próprias consciências.
Resultado de imagem para autoestima e saude mentalA autoestima é fundamental na estruturação psicológica do sujeito e que determina a qualidade de vida deste mesmo. Se a autoestima é, como aqui defendemos, a maneira como a pessoa afetivamente se vê, então estamos a falar como alguém elabora os sentimentos valorativos em relação a si. Trata-se, pois, de um juízo de valor pessoal. Sua importância é clara, afinal a autoestima modela a interação psíquica da pessoa consigo e com os outros. Tal interação interna, por sua vez, influência sobremaneira a sua percepção de si, das coisas e dos acontecimentos.
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Qual a origem da autoestima? Embora às vezes haja divergências na literatura especializada, para nós a autoestima é algo que nasce internamente no indivíduo, ou seja, é resultado de operações psíquicas que são processadas desde a infância em um cenário onde as experiências familiares e sociais contribuem para moldar a opinião que a criança começa a desenvolver dela mesma. Ninguém nasce já se estimando. O reconhecimento do nosso valor começa quando começamos a formar um eu dentro de nós. Quem nos cerca de mais perto (nossos primeiros não-eus) servirão para ser o nosso primeiro espelho. A autoestima não é uma emoção, nem sequer um pensamento, porém um estado afetivo produzido por nossas impressões sobre nós. É como eu me sinto em relação a mim mesmo. Tal sentimento é produto de contingências cujas raízes são sociais, ou mais precisamente, interpessoais. Para uma criança em tenra idade as respostas dos adultos mais próximos (geralmente os pais) às suas manifestações conseqüenciam retornos de carinho, atenção, afago, sorriso e/ou reconhecimento e aceitação, bem como também pode haver repreensão, crítica, desqualificação, rejeição, aversão e/ou desatenção. Respostas parentais contribuem para reforçar positiva ou negativamente a formação da autoimagem infantil.
Resultado de imagem para autoconceitoLembremos o acima afirmado, que a autoestima é aqui definida como a parte afetiva e autoavaliativa do autoconceito. Vários aspectos da autopercepção contribuem para a formação da autoestima, entre eles boa responsividade parental, aparência física, competência escolar, aceitação social, entre outros. Estudos apontam que antes dos 5 a 7 anos uma criança não baseia necessariamente sua autoestima na realidade. Elas tendem a aceitar em muito a opinião e o retornos dos adultos. Seja como for, a construção da autoestima em termos positivos - como escreve Simone Assis e Joviana Avanci, em seu livro "Labirinto de Espelhos: formação da autoestima na infância e na adolescência" - nos serve como alicerce de força de vida. Se desde cedo uma criança não recebe admiração e aceitação devidas, ou se ela recebe tarefas que estão acima de sua capacidade desenvolvimental, é muito provável que ela não consiga estabelecer um bom senso do próprio valor, e assim sua autoestima é comprometida, gerando, portanto, a formação de uma baixa autoestima.
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Se entendermos que a depressão direta ou indiretamente é ou pode ser um distúrbio do eu (ego), um eu formado com base em uma baixa autoestima é bastante vulnerável à depressão. O psicanalista Otto Fenichel há mais de 60 anos atrás destacou que a depressão pode ser precipitada pela perda da autoestima. Dentro dessa perspectiva a depressão seria muito mais desencadeada pelo esvaziamento ou baixa da autoestima do que pela perda de algo real propriamente dito. Interessante ângulo a ser pensado, não acha?

Joaquim Cesário de Mello


domingo, 22 de outubro de 2017

Psicanálise, literatura e sonhos



Adolescente, assisti ao filme “O Enigma de Kaspar Hauser”, do aclamado diretor Werner Herzog. Guardo duas recordações paradoxais: o tédio e o fascínio. O tédio justifica-se pela idade, talvez me fosse mais adequado uma comédia de Jerry Lewis ou, se quisesse ser mais cult,  de Mel Brooks. Kaspar Hauser entediou-me  pelo silêncio e por  suas digressões filosóficas. Por outro lado,  o seu enredo, encantou-me: um homem criado misteriosamente em um calabouço, é repentinamente libertado, ou melhor, abandonado à rua. Prisioneiro, Kaspar Hauser, desconhecia o mundo exterior, não conhecia as imagens, as pessoas, a linguagem.  “Cavalo” era umas das poucas  palavras que pronunciava.

O filme revelou-se ainda mais fascinante na habilidade de Herzog em mostrar o ingresso desse misterioso personagem na vida social. Kaspar Hauser tornou-se objeto de estudos de cientistas e intelectuais da pequena comunidade que o acolheu.  Uma cena, em especial,  me vem com nitidez à mente. Kaspar Hauser, ainda com dificuldades de se expressar,  traz sua primeira experiência onírica, um sonho que foi percebido e confundido com fato real - um sonho como um delírio.


Seria o delírio uma formação semelhante a um sonho? Cabe aqui, destacar, os conceitos de delírio que se edificou, na psicanálise e na psiquiatria dos séculos XIX e XX. Um dos primeiros trabalhos que Freud utilizou a palavra delírio, foi no ensaio O Delírio e o Sonho na Gradiva de W. Jensen em que  faz uma análise  interpretativa da novela Gradiva, Uma fantasia Pompeiana do autor alemão e contemporâneo Wilhelm Jensen. Freud inaugura, nesse longo ensaio, publicado em 1906 (três anos após a publicação da novela e sete após A Interpretação dos Sonhos), as incursões da psicanálise na literatura de ficção, modalidade de texto que percorreria toda sua obra.

Na ensaio, Freud relaciona o delírio à vivência de Norbert, o personagem principal, que acreditou ter encontrado uma mulher (Gradiva, inspirada num baixo relevo napolitano) que teria vivido na cidade de  Pompeia, prestes a ser destruída pelo erupção do Vesúvio. Por curiosidade o verdadeiro baixo relevo encontra-se no Vaticano, é uma escultura romana que representa a dança de uma mulher - Freud tinha uma cópia desse relevo. A Gradiva imaginada se transformaria na Gradiva delirante, o personagem a vê, nas ruínas de Pompéia, como na realidade, convicção semelhante a experiência de um  sonho - Freud, inclusive,  compara a  formação do delírio à construção onírica, partindo do pressuposto de que os sonhos “são a realização (disfarçadas) do desejo (recalcado)”. Assim como o sonho, o delírio expressaria um enredo manifesto de conteúdo ideativo recalcado.  


Soa estranho pensar que uma experiência tão sofrida como o delírio, traga o desejo como pano de fundo. Há contudo, desejos e desejos. O desejo inacessível à consciência são conteúdos ideativos recalcados (e, no caso do delírio, extrojetados, percebidos como se ocorresse no mundo externo). Recalcados pois trazem conteúdos conflitivos e, consequentemente, podem gerar desprazer. No livro de Jensen, os conflitos são ingenuamente representados nos impasses do amor romântico -  Um jovem que encontra na Gradiva pompeiana, uma paixão recalcada na infância.  


O conceito de delírio é controverso contudo. No campo da psiquiatria seu conceito é mais delimitado. A psiquiatria discorre sobre o delírio como um fenômeno comum aos quadros psicóticos, especialmente, da esquizofrenia e da paranóia. Karl Jaspers, psiquiatra e filósofo fenomenologista, foi um dos primeiros teóricos a delimitar o conceito de delírio nas vivências anormais do pensamento (que chamou de juízo de realidade). O julgamento da realidade ou a capacidade de um delirante de ajuizar encontra-se severamente, e peculiarmente, prejudicada. o delírio não se restringe a um simples equívoco um a erro de entendimento. O pensamento delirante guarda uma  forte convicção, uma crença inabalável e irrefutável de um fato que não ocorre na realidade. O conteúdo desse fato, em geral, põe o delirante no centro da trama (não foi por acaso que Freud chegou a chamar a psicose de Neurose Narcísica).  

Jaspers, aos 23 anos, escreveu os dois volumes da Psicopatologia Geral (texto hoje esquecido pela atual psiquiatria), e especificou que o delírio primário, que também chamou de delírio verdadeiro, se caracteriza, não apenas pela não ocorrência do fato, mas pela interpretação dada pelo delirante - interpretações baseadas em percepções e intuições pouco convencionais, subjetivas. Se o delirante se diz perseguida pelos órgãos secretos norte-americanos, depois de vir a uma PETSHOP - "Cão&Cia" - e ver uma fotografia de um cão buldogue com o boné do presidente dos EUA (Donald Trump), o seu delírio eclodiu na ressignificação das palavras C.I.A. (órgão de inteligência dos EUA) e Cão (o demoníaco que se desliza para "do mal", e, para Trump) As palavras ganham novos e secretos significados que criptografadas revelam conspirações e tramas de perseguição.  

Desse modo, do ponto de vista psiquiátrico, “o caso” narrado por Jensen, se distancia do  conceito psicopatológico de delírio, por haver um distanciamento na "crença inabalável" do personagem. Contudo, se assemelha com o conceito de pseudologia fantástica (na psicopatologia fenomênica, uma alteração da imaginação),  ou mesmo de fantasia palavra muito utilizada na psicanálise, inclusive, utilizada no título da novela Jensen. Além do mais, no texto,  a imagem fantasmática de Gradiva, é que se impõe, e, desse modo, a construção não é do juízo de realidade (do pensar) mas da percepção de uma imagem inexistente - no caso da percepção sem objeto, da alucinação. Na novela, se utilizarmos da rigidez teórica de Jaspers, nem mesmo alucinação seria o caso, pois o objeto existe (Zoe), somente é deformado (Gradiva), e a deformação do objeto chama-se ilusão -  O personagem descobre que  Gradiva é na verdade a imagem de Zoe, uma mulher conhecida do seu passado. Diferente da alucinação, a ilusão é da natureza humana, independente de estrutura psíquica, está, contudo, fortemente influenciada por temores e desejos intrapsíquicos.


A defesa dada pelos psicopatologistas a essas aparentes filigranas conceituais  se deve a sua  importância semiológica. A investigação psicopatológica é um instrumento de grande serventia na avaliação diagnóstica dos transtornos psíquicos mais graves. Contudo, ao contrário do que se imagina, essas digressões não põe em xeque ou em oposição  os preceitos da psicopatologia freudiana. A psicanálise, na verdade,  acrescenta elementos subjetivos. Dois aspectos fundamentais destacam-se nesse ou no texto de Freud:  a ideia de que delírio encarcera um “desejo”. Encarcerando o desejo, encarcera algo de verdadeiro - o delírio traz  no seu conteúdo um grão de verdade. Mesmo que provisória, a verdade do sujeito.

A publicação de A interpretação dos sonhos, fez com que o saber de Freud, em razão dessas querelas com a fenomenologia e com a medicina, fosse questionado na comunidade científica, deixando a psicanálise na fronteira epistêmica da ciência e da filosofia. Afinal, a psicanálise é uma ciência? sim, há cientificidade na psicanálise. No entanto, uma ciência  que se edifica na linguística e no estudo dos mitos e dos textos literários. Uma ciência portanto distante, muito distante, das ciências de seu tempo, as ciências duras (ditas da natureza). Freud ao trabalhar os mitos de Édipo, de Narciso, de Eros, de Hamlet, de Lady Macbeth, entre tantos personagens da literatura e do teatro, fez deles, a fonte do  saber da psicanálise, validado da clínica. Para Freud, os escritores estão à frente dos cientistas no conhecimento da alma ou da psique - queixou-se contudo, que mesmo detentores desse conhecimento, alguns escritores viam a psicanálise com ambiguidade. De fato, são inúmeros os escritores que trataram, e ainda tratam, com indiferença a teoria freudiana - suponho que temem a desconstrução de suas obras com a especulação psicanalítica. O próprio Jensen, apesar de elogiar o trabalho interpretativo do seu livro, manteve-se distante e, eventualmente, arredio às incursões freudianas. O biógrafo Peter Gay, entende que  o novelista, havia conhecido previamente, mesmo negando categoricamente, “A Interpretação dos Sonhos”. A novela, contudo, segue, com enorme coincidência,  o roteiro da clínica psicanalítica, do sintoma em direção a cura.


Marcos Creder

domingo, 15 de outubro de 2017

A POESIA QUE NOS DESNUDA

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"A psicanálise nasceu com a descoberta de que as palavras são cheias de silêncio", escreveu certa vez Rubens Alves. Alma humana muito tem a dizer de si e muito fala sem o uso das palavras faladas ou pensadas. Os poetas também sabem disso, bem antes mesmo que o surgimento da psicanálise. A poesia desvela pronuncias e dizeres que habitam no silêncio. Um poema, um bom poema, não nos revela o desconhecido propriamente dito, mas sim muitas vezes o que jazia esquecido. Entende-se assim os seguintes versos de Jorge Luis Borges: "quando menino, eu temia que o espelho/me mostrasse outro rosto ou um cega/máscara impessoal que ocultaria/algo na certa atroz". No silêncio moram sonhos, lembranças e imaginações.
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Um poema se constrói com a linguagem da mente. Não há poesia, nem no mais belo amanhecer ou crepúsculo, se não houver uma alma a contemplá-los. Juan Luis Vives, que viveu entre os anos 1493-1540, reconhecia que "nenhum espelho reflete melhor a imagem do homem do que as suas palavras". Não as palavras que nos escondem no povoar do cotidiano. Porém as palavras que emergem do poço fundo de nossas entranhas. Por detrás do meu eu familiar encobre-se um homem em mim estranho.
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A poesia tanto nos encanta quanto nos desencova. |dize-me caro(a) leitor(a) o que vês ao ler este poema de Carlos Drummond: "Sonhei que o sonho se forma/ não do que desejaríamos/ ou de quanto silenciamos/ em meio a ervas crescidas,/ mas do que vigia e fulge/ em cada ardente palavra". Percebes que o poeta está a tentar tornar o indizível em exprimível? Que a poesia é o interior da alma ancorada pelas palavras? E que um poeta é aquele que está a testemunhar o que perdemos de consciente? Fala-nos Florbela Espanca: "só quem embala no peito/dores amargas e secretas/é que em noites de luar/pode entender os poetas". Com a poesia é que podemos vislumbrar a vida secreta e imaginária da alma humana.
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Alguns podem dizer que poetizar é resultado por processo psíquico da sublimação. Em termos físico-químico a sublimação é a passagem de uma substância em estado sólido diretamente para o estado gasoso. Em termos psicanalítico sublimação representa a gratificação/satisfação de um desejo/pulsão em termos socialmente positivos. A poesia escrita, embora faça uso das palavras, usa da linguagem para manifestar o sensível. A poesia subverte o que diz Adélia Prado ("a palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,/foi inventada para ser calada"). A fala poética, por sua vez, evoca o que existe vivo e pulsante na vida vivida.
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Se a psicanálise brotou próxima dos sonhos, a poesia ela mesma é um acordar para dentro. "Sem Poesia não há Humanidades. É ela a mais profunda e a mais etérea manifestação da nossa alma", afirma Teixeira de Pascoaes. Freud já dizia que os poetas são os mestres do conhecimento da alma.  O médico e também escritor português Fernando Namora afirma: "a minha poesia é assim como uma/vida que vagueia/pelo mundo, por todos os caminhos/do mundo,/desencontrados como os ponteiros de um relógio velho". Já Adélia Prado inicia um poema dizendo: "a mim que desde a infância venho vindo,/como se o meu destino/fosse o exato destino de uma estrela". Assim, não é difícil enxergarmos uma articulação possível entre psicologia e poesia. Um poeta é antes, e acima de tudo, uma criança brincando com o mundo e as profundezas de si mesmo.
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O dizer poético pode muitas vezes ser tão esfíngico quanto a alma humana, pois é dela que brota o bom poema. Tanto a Psicanálise, como proposta por Freud, quanto a poesia brotam da mesma fonte: as palavras e sua força. Como declama Florbela Espanca. "só quem embala no peito/dores amargas e secretas/é que em noites de luar/pode entender os poetas".

Joaquim Cesário de Mello