quarta-feira, 30 de setembro de 2020

A ESTÉTICA DOS SENTIDOS




O que leva o bicho homem produzir arte? Minha resposta mais imediata a tal questão é que o homo sapiens é um ser dotado da consciência de sua existência ou, como diz Voltaire, "a espécime humana é a unica que sabe que tem de morrer". Não bastasse isso o homem se inquieta frente a tantos fenômenos que o circundam - o que fez Pascal a se indagar e responder: "o que é o homem na natureza? Um nada em comparação com o infinito, um tudo em face do nada, um intermediário entre o nada e o tudo." Imerso neste imenso mundo o ser humano sofre o sofrer de se saber viver. Inquieto, aflito e desassossegado o homem se expressa e se comunica com os outros homens. Beneficiado pelo desenvolvimento da linguagem ele fala, gesticula e se manifesta; sente e se expressa. Cria.


O pensamento psicológico humano apreende fenomenologicamente os objetos ao seu redor e seus estímulos e os julga conforme sua própria experiência pessoal e atributos. O mundo percebido pelo ser humano não é um somatório de objetos externos, mas sim resultado de sua relação e vivência diante dos mesmos. E neste sentido a própria capacidade de percepção humana já é em si e por si mesma transformadora. Na sequência percepção-internalização-elaboração-externalização o ser pode modificar o objeto e comunicá-lo esteticamente modificado. Aqui reside uma das principais qualidades da arte humana: propiciar uma experiência estética.
Arte é um termo que vem do latim Ars, cujo significado se traduz por habilidade. Em sentido latu tudo que o ser humano produz, inventa ou cria sua visão de mundo (real ou fruto de sua imaginação) podemos chamar de arte. O caráter único e diferente de cada obra artística se dá pelo simples fato de que o processo criativo iniciado pela percepção (proprioceptiva e/ou exteroceptiva) tem o intuito de expressar direta ou indiretamente emoções e ideias (subjetividade). Em sentido stricto a definição do que é arte e do que não é arte vai variar em conformidade à época e à cultura. 
Ah!, o que seria da arte sem a inquietude? Aliás, o que seria do bicho homem se ele não fosse psicologicamente inquieto? Bem provável que ainda estaríamos morando nas cavernas de nossos ancestrais. Somos, decididamente, inquietantes inquietos. Nunca estamos totalmente satisfeitos. Necessitamos sempre ir além do oferecido; lançar-nos à frente; pensar e buscar o futuro. Nossos voos tem raízes em nosso próprio anseio em voar. Ou como escreveu Bachelard: "a imaginação quer sempre sonhar e compreender ao mesmo tempo, sonhar para melhor compreender, compreender para melhor sonhar."
O psicanalista Donald Winnicott nos propicia vincular Psicologia com Arte ao afirmar que "a obra abre um espaço de experiência em que se articulam paradoxalmente, constitutivamente, o sujeito psicológico e o mundo". Para Freud o tema estética não se entende simplesmente por beleza, mas sim pelas qualidades do sentir. Em termos mais psicodinâmicos o "pai" da Psicanálise expõe assim seu pensamento: "As criações, obras de arte, são imaginárias satisfações de desejos inconscientes, do mesmo modo que os sonhos, e, tanto como eles, são, no fundo, compromissos, dado que se vêem forçadas a evitar um conflito aberto com as forças de repressão. Todavia, diferem dos conteúdos narcisistas, associais, dos sonhos, na medida em que são destinadas a despertar o intessse noutras pessoas e são capazes de evocar e satisfazer os mesmos desejos que nelas se encontram inconscientes".
 Em seu livro "Arte, Dor - Inquietudes entre Estética e Psicanálise", Frayze-Pereira destaca que entre a dinâmica da presença e a ausência do sensível, a experiência estética é vizinha da experiência psicanalítica no que tange (em suas palavras) à "silenciosa abertura ao que não é nós e que em nós se faz dizer". A beleza está em toda parte, já dizia Rodin que continua "não é ela que falta aos nossos olhos, mas nossos olhos que falham ao não percebê-la". Alguns poderão afirmar que Estética é a ontologia do belo, isto é, um estudo das sensações - por isto seu caráter subjetivo. Lembremos que o ser humano tem uma necessidade do outro, afinal ser significa "ser para o outro". Ao possuir a capacidade de questionar o ser de si e do outro o ser é um "ser-aí-no-mundo" (dasein) e o ser que se forma humano em um corpo humano advém desta intrínseca relação entre o mundo interior e o mundo exterior. Com o olhar de si e o outro do outro ambos os mundos se comunicam. 
Aprimorar os sentidos sobre a condição humana é educar-se esteticamente. A educação estética, diz Solange Jobim e Souza, no livro "Subjetividade em Questão: a infância como crítica da cultura", forma pessoas mais capazes de criar um novo modo de se acercar da verdade que se esconde nos objetos, nas paisagens e no próprio rosto ou olhar de uma outra pessoa. Lembremos que arte é expressividade, um fazer expressivo. Um objeto artístico, seja ele qual for, é sempre algo ou alguma coisa que contém vida e seja qual for a sua forma ele sempre tem algo a dizer, nem que seja até sobre o nada. O processo artístico por si mesmo é percepção, sensação,elaboração, fazimento, expressão e conhecimento. É como diz os seguintes versos de Jorge Luis Borges: "Por vezes à noite há um rosto/Que nos olha do fundo de um espelho/E a arte deve ser como esse espelho/Que nos mostra o nosso próprio rosto".

A beleza de um objeto artístico não se resume ao objeto em si, mas acima de tudo à psicologia do artista que o faz e do expectador que a aprecia. Por isso diz Fernando Pessoa que "a arte consiste em fazer os outros sentir o que nós sentimos, em os libertar deles mesmos, propondo-lhes a nossa personalidade para especial libertação". Assim uma obra de arte pode nos remeter tanto à elevação da alma quanto a seu aprofundamento; ambos inclusive. A estética, como termo, vem do grego aisthésis, que significa percepção, sensação. Representa, pois, a produção das emoções e sentidos humanos através do fenômeno estético, fenômeno este que nos diferencia dos chamados outros animais. 
Se para uns a arte é um meio catártico de escape, pra mim e outros tantos a arte é primordialmente uma necessidade fundamental de aprimorar o ser para ser melhor o que se é. Além de um condutor de expressão da experiência da vida, a arte é a própria vida expressada - afinal a vida, ela mesma, é uma própria obra de arte. Sentir a vida e traduzi-la, creio que responde ao poeta Ferreira Gullar: isto é arte.
"A arte serve a beleza, e a beleza é a felicidade de possuir uma forma, e a forma é a chave orgânica da existência; tudo o que vive deve possuir uma forma para poder existir, e, portanto, a arte, mesmo a trágica, conta a felicidade da existência."
(Boris Pasternak)
Joaquim Cesário de Mello

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

A SIGNIFICÂNCIA DAS COISAS INSIGNIFICANTES




O que há de importante nas coisas triviais, como receber um telefonema de uma pessoa que gostamos, saborear um bom prato de comida, descansar à sombra de uma árvore ou contemplar o brilho esvanecente de um por-de-sol? Nosso cotidiano é tão cheio de coisas pequenas, algumas quase imperceptíveis e que por elas passamos como se aparentassem nenhuma significância. O poeta Fernando Namora dizia que fora de nós há o mundo e nele há tudo que em nós não cabe. Em seus versos afirma: "fazer das coisas fracas um poema/... Homem, até o barro tem poesia!/Olha as coisas com humildade". E pensar que buscamos a raridade das coisas grandiosas, enquanto distraídos nos descartamos da fartura corriqueira do usual que de tão comum se banalizam no conjunto ordinário daquilo que chamamos de cotidiano.

Mindcast Nº51: Aprenda a Valorizar as Pequenas Coisas
O que governa a nossa vida? Para Emmet Fox é aquilo a que nós damos atenção. Mas damos atenção a tantas coisas, diriam alguns. Porém não damos, nem podemos, dar atenção a tudo. As coisas são relevantes ou insignificantes muitas vezes pelo valor que damos a elas. Há aqueles que buscam o brilho indiferente das estrelas, e por isso desprezam ou sequer notam o valor das coisas pequenas. Ou como certa vez afirmou o escritor Georges Bernanos, "as pequenas coisas parecem insignificantes, mas dão-nos a paz".

Ah! os seres humanos e sua inesgotável e incansável fome de ser feliz e de sempre querer mais. Alguém já nos referiu como formigas ególatras que vivem em um pontinho do sistema solar que é um pontinho da galáxia que, por sua vez, é um pontinho do universo. Sonhamos com a amplitude infinita dos espaços, desviando de ver que a importância da vida não está em significar e buscar as extremidades, mas sim em significar o valor das proximidades. Muitas são as vezes, diuturnas vezes, em que desimportamos as miudezas das nossas adjacências, talvez porque já estejam lá, ou talvez até porque já as possuimos e com elas convivemos. Desconhecemos a sabedoria contida nas palavras de Santo Agostinho ao dizer que a "felicidade é continuar a desejar aquilo que temos", e nos projetamos ansiosos e ávidos para imensidões além de nossas habituais periferias. Parece que é sempre lá, e nunca aqui, que encontraremos a saciez tranquila de nossas inquietações. Longe é um lugar que não existe - escreveu Richard Bach. Será que é somente no futuro que iremos tomar consciência de nossa felicidade passada? Ou será que só nos imaginamos felizes no depois? A felicidade há de ser apenas um outrora ou um futuramente? Há de estarmos como no poema Revelação, de Rui Espinheira Filho (Ai que somos felizes agora/mas não tanto/ como amanhã, no passado")? Por que não dar a devida atenção ao que nos satisfaz e nos faz sentirmos felizes no atualmente? Por que deixar passar nas entrelinhas do dia-a-dia o contentamento que amanhã destacarei em me dizer que "era feliz e não sabia"? O hoje, meus amigos, é impregnado de prazeres diminutos e minguados que distinguidos são então revelados.

Saborear as pequenas coisas - eis a lição que nos deixou Epicuro, filósofo grego do período helênico (século IV a.C.). Surpreender-se com o banal e o corriqueiro, ou como diz o poeta Ferreira Gullar preocupar-se mais quanto tempo dura seu gato do que quanto tempo dura uma estrela. Retirar espanto e maravilhamento ao se indagar pelo sentido das coisas, como nos versos de "Perplexidade" de Gullar:


"a parte mais efêmera de mim

é esta consciência de que existo 

e todo o existir consiste nisto 

é estranho!
e mais estranho
ainda
me é sabê-lo
e saber
que esta consciência dura menos
que um fio de meu cabelo 
e mais estranho ainda
que sabê-lo
é que
enquanto dura me é dado
o infinito universo constelado
de quatrilhões e quatrilhões de estrelas
sendo que umas poucas delas
posso vê-las

fulgindo no presente do passado".



"A vida é muito para ser insignificante", já dizia Charlhes Chaplin. Quanto mais tempo tivermos para viver este o é tempo de se viver. Simplifiquemos, pois, o viver, o existir, o durar passageiro da nossa breve permanência. Se certo está Comte-Sponville - para quem o que chamamos de felicidade é alegria, tranquilidade e contentamento - então, sejamos alegres, tranquilos e contentes - e isto está na simplicidade com que somos simples e lidamos com os acontecimentos simples da vida. Observemos, assim, mais a paisagem que nos cerca, convivendo melhor com o dia que nos incia o dia. E cantemos gracias a la vida, como dessa forma os deixo com a imortalizada canção de Violeta Parra na voz de Mercedes Sosa:



Joaquim Cesário de Mello


sexta-feira, 18 de setembro de 2020

ZEITGEIST

Zeitgeist: Você sabe o que é o espírito do tempo? - Universo Retrô


Toda época tem seu clima intelectual-social-cultural. Tal composto é conhecido como o "espírito do tempo", que em alemão se escreve Zeitgeist. Metaforicamente é como a trilha sonora de uma época, cujas composições são constituídas por um motivo musical condutor que se repete como se fosse uma frase recorrente (Leitmotiv). O Zeitgeist são as características de um determinado período temporal psicossocial. É o sinal dos tempos. E que tempo é este que hoje vivemos? Qual é o espírito dos dias em que se escorre nossas vidas miúdas?


Atenção ao Zeitgeist – Implantando Marketing | Implantando Marketing é um  espaço para compartilharmos experiências e informações sobre marketing.Seja por onde se queira entender o espírito dessa atual época um decididamente aspecto se destaca e tem proeminência: a intolerância. De onde vem ou surge esse espírito de incompreensão, sectarismo e inclemência? Ou será que o Zeitgeist atual é como um sopro de vento que descortinou o que jazia por debaixo dos panos há decênios e que o bafo quente dos tempos que se seguem reergueu à luz dos dias?

Zeitgeist. Um ponto de vista cientifico. - GGN

A intolerância parece ter sempre existido ao longo da história de Humanidade. Na balança do eu e o nós, para ficar numa expressão do sociólogo alemão Nobert Elias (1897 - 1990), autor de importantes obras como O Processo Civilizatório e A Sociedade dos Indivíduos, os extremos podem ser assim definidos: o eu-sem-nós e o nós-sem-eu, ou seja, o eu narcísico, egoísta e não empático, e a massa de eus onde o que predomina é o pensamento único coletivizado em um grupo igualmente narcísico, egoísta e não empático. Empatia aqui está na capacidade de compreender o outro que pensa diferente do mim ou do nós. Ser empático com quem pensa, sente e age semelhantemente não é ser empático, é apenas se olhar no espelho. Em ambos os lados radicais da balança o que temos são preconceitos, estreiteza mental, intenso apego a um sistema de valores considerado único e inquestionável, agressividade tendente ao ódio, completo desprezo ao diferente, intolerância profunda e enérgica com quem não compartilha com suas práticas, visão de mundo e ideologia, bem como extrema crueldade com o que lhe é (ou lhes são) dessemelhante. 
O que significa a frase O homem é o lobo do homem? - Quora

Mas de onde vem tamanha ojeriza e repulsa com o diferente? De onde brota esse desmedido ódio que nos faz execrar e maldizer o desigual apenas porque o mesmo não me é/nós é coincidente? Para o filósofo inglês Thomas Hobbes (1588 - 1679) "o homem é o lobo do homem", isto é, somos naturalmente egoístas e maus, cabendo, pois, à sociedade regular e regrar isso. Os pensadores dos séculos XVII e XVIII (destacadamente Hobbes, Locke e Rousseau) chamaram esse isso de Contrato Social. Todavia, autoproclamados civilizados, parece que nunca deixamos de ver o outro como um lobo que nos ameaça, mesmo que seus dentes sejam tão somente idéias, pensamentos, valores, gestos ou palavras. Vide os livros e culturas pelo Império Romano, bem como as mulheres queimadas entre os séculos XV, XVI e XVII acusadas de bruxas. Vide também a perseguição e o extermínio de judeus no final da primeira metade do século XX em pleno coração da Europa, assim como o sectarismo radical do Macarthismo na década de 50 em plena democracia americana. Vide o massacre de armênios pelo governo otomano entre 1915-1923, do grupo étnico tutsis em Ruanda em 1994, ou o genocídio ocorrido na Bósnia entre os anos de 1992-1995 em nome de uma chamada "limpeza étnica". Xenofobias, misoginias, homofobias, racismo, sexismo, fundamentalismo religioso, político, moral... Quanto mais complexa e plural for uma sociedade, mais ela será composta como um universo de desiguais e, embora se legisle que "somos todos iguais perante à Lei", mais parece predominar a intolerância àquele ou àqueles que pensam ou sentem desigualmente a hegemonia prevalente da maioria ou da época (zeitgeist). 

Por que as pessoas estão cada vez mais fanáticas? - Edição do BrasilNa balança do Eu e do Nós Eliasiana podemos também afirmar que hoje vivemos um era do Nós-eu versus o Nós-não, ou seja, ou se pensa e se comporta como meu grupo (Nós) - como se esse Nós fossem uma unicidade egóica - ou você(s) é(são) o errado, oanti-ético,  o imoral,  o incorreto, o condenável, o impróprio, o reprovável, o indecente, o indigno e o censurável. Decididamente vivemos sob o zeitgeist do fanaticus (termo latino para "lugar sagrado"), até mesmo para seitas e religiões sem deuses ou nada de divinos. Como disse Nobert Elias, os traços da identidade grupal constituem um habitus social encravado profundamente na estrutura da personalidade de cada indivíduo. O indivíduo coletivizado se acha o detentor do certo e da verdade, e aí de quem pensa o  contrário.
Como aceitamos o diferente? - A Mente é Maravilhosa
Certa vez escrevi que não era eu que era diferente dos outros, mas os outros que eram diferentes de mim. Não importa. O que importa é como o diferente lida, convive e dialoga com seu diferente. Hoje, não se dialoga. Hoje, esquecemos que "quem dentre vós não tiver pecado que atire a primeira pedra" (Jo 8,1-11). E aja pedra pra atirar. 


Ou, como já afirmou certa vez o filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905 - 1980), "o inferno são os outros". 


Joaquim Cesário de Mello