domingo, 19 de junho de 2016

O MONSTRO DOS OLHOS VERDES

Otelo mata Desdêmona (desenho de Josiah Baydell, século XVIII).
Na peça Otelo, de Shakespeare, o personagem título é um militar mouro que, embora seja um bom e eficiente comandante e guerreiro, sofre na pele os efeitos do racismo.  Por força do preconceito ele se sente inseguro e tal insegurança resvala ao seu casamento com Desdêmona. Por influência de Iago, que lhe inveja o desposar da bela Desdêmona, desperta-se em Otelo ciúmes de sua esposa em relação a Cássio. O ciúme se intensifica e culmina na tragédia em que ele transtornado mata Desdêmona. No texto teatral há a seguinte fala de Iago:  "Oh, tende cuidado com o ciúme. É um monstro de olhos verdes que zomba da carne de que se alimenta".  Este é, pois, o nosso tema de hoje: o complexo, perigoso e danoso sentimento chamado ciúme.
O enciumado é um escravo do ciúme. Quanto maior o ciúme maior o estreitamento psíquico que o sujeito sofre, e sua vida, sua atenção, sua energia e seu comportamento passam a serem ditados pela tirania da emoção. O ciúme é um afeto que nos afeta e infecta nossa alma. Inquieta, perturba, desassossega. Em alemão ciúme se descreve com a palavra eifersucht que significa fogo, queimação. 
Ciúme é um sentimento que resulta da mescla de insegurança e desconfiança. É uma espécie de "pacote emocional" onde várias outras emoções/afetos se combinam, tais como medo, ansiedade, inveja, paixão, ódio, orgulho, sentimentos de inferioridade e dependência entre outros. O ciúme em doses moderadas faz parte da vida do ser humano, inclusive de outras espécimes animais. Chico Buarque, em seu livro Leite Derramado, assim define o sentir e o evoluir do ciúme como "um sentimento para proclamar de peito aberto, no instante mesmo de sua origem. Porque ao nascer, ele é realmente um sentimento cortês, deve ser logo oferecido à mulher como uma rosa. Senão, no instante seguinte ele se fecha, e dentro dele todo o mal fermenta. O ciúme é então a espécie mais introvertida das invejas, e mordendo-se todo, põe nos outros a culpa de sua feiúra". É, o bicho quando cresce é feio e medonho mesmo. 
O ciúme é marca do existir humano. Biblicamente o encontramos nos primórdios da formação da humanidade lá nos filhos de Adão e Eva: Caim e Abel. No teatro e na mitologia grega temos Medéia cuja história descrita por Eurípedes nos dá o retrato psicológico de uma alma atormentada pelo amor e pelo ódio, que por causa do repúdio do marido (Jason) se vinga matando os próprios filhos como uma maneira de atingi-lo. Os embriões das raízes do ser humano não é assim tão "bom selvagem" como acreditava Rosseau. Horbes parece ter mais razão. 
O termo ciúme (que em latim vem de zelus) tem pra nós origem na palavra cio, aqui representando zelo de amor. Sinceramente não sei se o amor começa pelo ciúme, como escreveu o dramaturgo Molière. Mas que amor e ciúme têm uma relação estreita lá isso tem. A questão a se debater não é o normal de tal sentimento, mas sua intensidade. Aqui e acolá, uma vezinha ou outra é natural sentir algum ciúme, porém como resposta emocional a uma dada situação real e mesmo assim de maneira temporária e limitada. A persistência do sentimento ao longo do tempo eleva sua intensidade e ansiedade. Corre-se o risco de se tornar patológico e fantasioso, ou melhor, rompe-se a divisória entre o que é imaginação e realidade. A fantasia transforma-se em crença. 
O ciúme tem um pé nos rincões da alma humana. Freud nos fala de três camadas, a saber: a mais superficial que é o ciúme competitivo (normal); a segunda que é o ciúme projetado; e a terceira que é o ciúme delirante. Quanto mais profundo for o ciúme mais narcísico, oral e infantil ele o é. E não tem relação mais infantil do que bebê e mãe. Esta é fundamentalmente a relação originária humana, uma proto-relação, e é um vínculo evolutivo marcado pela dependência, mais precisamente do bebê com seu objeto cuidador. Eis, pois, um dos cernes da questão: a dependência e o pavor do abandono. 
Seja qual for o nível do ciúme e sua intensidade ele é sempre uma experiência emocional dolorosa, uma reação afetiva frente à ameaça de uma perda real ou imaginária de algo ou alguém que é significativo e valorizado pelo enciumado. O ciúme, visto por essa perspectiva, representa as forças primitivas do psiquismo que são acionadas. Podemos, amadurecidos, até amainar e abrandar nossos impulsos orais e infantis, mas nunca deixar de tê-los, nem que seja lá nas profundezas ocultas do espírito humano. 
O filósofo e escritor francês Roland Barthes (Fragmentos De Um Discurso Amoroso) alerta: "como ciumento sofro quatro vezes: porque me reprovo por sê-lo, porque temo que meu ciúme machuque o outro, porque me deixo dominar por uma banalidade; sofro por ser excluído, por ser agressivo, por ser louco e por ser comum". O enciumado sofre pelo medo de vir a ser deixado, abandonado, trocado, excluído. O sujeito tem pelo seu objeto de desejo uma forte dependência psíquica beirante à simbiose, senão ela própria, onde o que a pessoa pensa e chama de amor se confunde com necessidades primitivas que a aprisiona em um laço onde a mínima ameaça de dissolução repercute como sentimentos primários de desamparo, despedaçamento e morte. A dor do enciumado chega às raias da dor física. As carências e necessidades narcisistas mesclam-se às necessidades vitais de sobrevivência.
Despertado o lado bestial da alma humana, o sujeito acometido pelo "mal" do ciúme, agora em níveis perigosamente patológicos, reage às ameaças e riscos de separação em relação ao objeto do desejo ardente com fúria e ódio, emoções estas que podem levá-lo, como o mouro vienense de Shakespeare, à destruição inclusive do outro supostamente amado.
A maioria dos nossos sentimentos se originam na infância. Com o ciúme não é diferente. A mente em seu estágio infantil depende do amor do objeto materno cuidador. Este amor oralizado é exclusivista e possessivo. Quanto mais uma pessoa for insegura mais exposta ela estará ao ciúme em densidades elevadas. A diminuição de tal ciúme ou vulnerabilidade à tal passa pela elaboração psíquica e simbólica da perda não da mãe real, mas sim da necessária perda da dependência e de suas gratificações e ganhos em ser dependente. 
Os psicólogos israelenses Ayala Pines e Elliot Aronson descrevem o ciúme como uma "reação complexa a uma ameaça perceptível a uma relação valiosa ou à sua qualidade". Em sua polimorfia o ciúme é uma manifestação humana, animal até. Em uns é esporático e eventual. Em outros, um traço da própria personalidade. Podendo achar-se enraizado no inconsciente - dizia Freud - e ser uma continuidade da vida psíquica infantil com origem no Complexo de Édipo ou nas relações fraternas da meninice, o ciúme não é assim de todo racional. 


Na altura do presente texto e leitura pode-se perguntar "qual o limite entre o ciúme normal e o patológico"? Um marcador significativo é o sofrimento. Quando o mal-estar provocando pelo ciúme atinge intensidades intoleráveis ao Ego e resulta em pensamentos invasivos e insistentes (obsessão), bem como em comportamentos impulsivos e repetitivos (compulsão) aí estamos frente a uma patologia do afeto que pode resultar em atos tresloucados de consequências devastadoras.
Emmanuelle Béart

Novos Otelos andam por aí ou nos espreitam, até mesmo dentro de nós. O puer aeternus que todos temos, se afrouxado os controles psíquicos da mente, pode sair desembestado em todo seu desejo de posse e exclusividade, e consequente paranoia. É o caso retratado no filme L´Enfer (que no Brasil levou o título Ciúme - O Inferno do Amor Possessivo), do grande cineasta francês Claude Chabrol, Detalhe: também, casado com Emmanuelle Béart (atriz que protagoniza a esposa objeto do ciúme do marido), até eu teria ciúmes. Você não?


Joaquim Cesário de Mello

Nenhum comentário: