domingo, 30 de agosto de 2020

TRANSPASSANDO O MERIDIANO



"Metade do tempo consumada
ou ainda mais.
No peito, a mesma fome, a mesma sede
do menino, do rapaz.
O mesmo olhar perplexo
o mesmo
sem resposta
gesto crispado interrogando".
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Assim começa o poema Aniversário, de Ruy Espinheira Filho. "Metade do tempo consumada". Meia-idade. Toda etapa significativa da vida é uma etapa de mudança e de novos posicionamentos afetivos. Iniciar os 40 anos e os que virá é igualmente um momento evolutivo com suas peculiaridades e complexidades. Muitos dos anos anteriores passamos mais olhando para fora, lutando pela sobrevivência e por um lugar ao sol. Embora tais lutas continuem, chega-se o instante de olhar mais para dentro e se deparar com sonhos irrealizados, desejos não consumados, questões não-respondidas, sentimentos de insegurança. medos, incerteza e dúvidas. O chamado "pai" da Psicologia do Desenvolvimento Psicossocial, Erik Erikson, observou que no meio da vida adulta muitas pessoas parecem lutar para encontrar direção e sentido de vida. Fazer 40 anos é uma típica época para se autoquestionar, principalmente porque 40 anos representa a metade de uma vida média humana contemporânea. 
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Desde a virada do século XX passado a vida das pessoas têm aumentado em termos de longevidade, e o que convencionou-se denominar de meia-idade (40-65 anos) tornou-se um etapa distinta com significados sócio-culturais. Ao começar o meridiano da existência é comum certas preocupações e reflexões mais agudas sobre a temporalidade e finitude da vida. A transição entre a adulteza jovem e a adulteza velha além de facilitar o posicionamento psicológico de reavaliação pode também gerar inquietações e estresses. verifica-se, por exemplo, que alguns sonhos importantes de outrora não foram e estão longe de serem realizados. Caso ainda seja possível realizá-los alguma guinada ou mudança de rota deve ser feita. Por ser um período existencial de balanço, crises de identidade podem surgir ou emergir. O que se quer ser e o que se tem medo de ser toma relevo e destaque pessoal. 
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O escritor theco Milan Kundera já disse que "existe uma parte de todos nós que vive fora do tempo. Talvez só consciência de nossa idade em momentos excepcionais, na maioria do tempo não temos idade". O poeta português Jorge de Souza Braga cria seu poema Espelho afirmando: "e de repente chegas ao/quarenta e tal anos.../o que vês?Uma pomba/com uma das asas ferida". Pois é, aos quarenta anos somos uma espécie de pássaro que carrega consigo uma asa ferida, mas que ainda tem uma outra para poder continuar voando; voando, inclusive, vôos ainda não voados.
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O próprio termo crise da meia idade é relativamente recente e foi criado por médico canadense, Elliott Jaques, em 1965, com a finalidade de descrever sentimentos de insegurança e intranquilidade advindos com o ingresso na idade média da vida e rumo à velhice. Alguns sinais podem ser verificados quando a pessoa começa a ficar cansado e insatisfeito com o trabalho; pensando em ter um caso; gastando mais do que o habitual; ficando obcecado com a aparência física, nostálgico e saudosista, bem como dando sinais de irritabilidade e depressão. Tédio, desejos de aventuras, aumento do consumo de álcool, compulsão por alimentos ou drogas, alteração do comportamento sexual, também são sinais da dita crise da meia idade.

Resultado de imagem para gauguinEu particularmente chamo a crise da meia idade de Síndrome de Gauguin. Paul Guaguin foi um pintor francês que trabalhava na bolsa de valores de Paris e que uma certa época de sua vida decidiu jogar tudo pro ar e viver exclusivamente de arte. Acabou se separando de sua esposa e dos seus cinco filhos, partindo pro Taiti para aprofundar sua qualidade artística. Tornou-se um dos grandes nomes da pintura. É, porém nem todo mundo nascer para ser Gauguin. Há aqueles que realmente mudam em busca de novos ares e felicidade, e outros (talvez a maioria) não. Estes últimos permanecem o mesmo, mesmo que com elevados níveis de sofrimento e padecimento psíquico. 

Quando o barco está afundando, os ratos são os primeiros a abandonar a  embarcação, em Ceres e Rialma não e diferente - Valle Notícias

Há um provérbio que diz "quando o navio afunda os ratos são os primeiros a abandonar o navio". Pode ser, mas em relação à vida, com toda a sua medianidade, os ratos (aqueles que têm medo) são os últimos a abandoná-la, isto é, talvez nunca abandonem o "conforto sofrente" de uma vida limitada, porém aparentemente segura. E haja crises de meia idade. E haja ansiolítico e antidepressivos...

Joaquim Cesário de Mello

SOB A LUZ DE SETEMBRO

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O sol retoma mais uma vez o seu lugar. Foram-se os acinzentados céus umedecidos dos dias anteriores. Pouco a pouco o suor volta a me acariciar a face e a evaporar invisível rumo ao acumular das nuvens do inverno que ainda não se fez presente. O meu amanhã é feito de chuvas que de mim vieram, pois é de mim que brotam dilúvios e torrentes. Agora me liquefaço para depois chorar sobre o que vai restando de mim neste corpo perambulante de anos, cujas moléculas e células vão se despedindo tão diminutas como diminutos são os segundos. Meu caminho não é de pedras, porém de salpicos que deixo como rastro no despedaçar de mim. Quem quiser me encontrar onde hoje estou é só seguir a trilha de átomos que solto como pegadas no itinerário deste meu destino. Estas migalhas deixadas são como um novelo de linha que carrego para não me perder em meus próprios labirintos.
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Estes dias amarelos e luminescentes doem-me aos olhos fatigados. Sou um rio invertido que quanto mais distante da fonte estou menos volumoso fico. Receio secar antes de chegar ao mar. A velha casa de onde brotei já não existe mais. Nada que me era antes existe mais. Por isso sou mais velho que a velhice das coisas velhas – elas ainda subsistem. O cenário da minha infância e eu menino nele brincando já encerrou faz tempo as cortinas daquele palco impregnado de fadas, magias e eternidades. Hoje sei que tudo que é perene um dia finda. Hoje sei o que quando criança então não sabia: não sabia da morte e de sua fria foice, até o dia em que minha avó e meu pai depois se foram. A inocência sumiu assim sem aviso, súbito e de repente.
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Após setembro três meses faltam para completar o ano. Quantos setembros por fim me faltam para completar a vida? Provavelmente menos dos que os dias que agora tenho até o réveillon mais próximo quando celebrarei o reiniciar dos novos dias. E regressarão as estações, as estiagens e as chuvas. O sol irá amanhecer no igual horizonte e irá aquecer outros homens neste mesmo lugar em que já não estarei. Triste esta minha sina e futuro: ser esquecido pelo sol e desaparecer no vento.
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Aqui em setembro reconheço que jamais cresço, pois lento desapareço. Inicio o exercício da queda na certeza de que quando meus olhos se fecharem ficarei com a escurecida lembrança do sol se apagando. Não quero prantos, missas ou velas, nem sequer fitas ou rosas amarelas. Não quero despedidas e adeuses, mas permanecer em algum lugar mesmo que esquecido nos recuados recantos da memória de alguém, como a franzina recordação de um sol engolido pela boca faminta da noite.
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Não esperem que lhes aguardem do lado de lá, pois é possível que não exista o lado de lá e que também ninguém está a me esperar. Vou somente mergulhar nas brumas do esquecimento e sumir no fundo mar oceânico dos tempos em que acreditava em fadas e o mundo era tão encantado quanto as bolhas de sabão. Lá encontrei meus mortos e meus perdidos. Percorrerei infinitamente os corredores de minha casa de menino, ouvirei escondido as conversas de minha mãe e pisarei mais uma vez descalço o piso de taco do quarto de onde nunca deveria ter saído. Quem sabe se finalmente acharei o soldadinho de chumbo extraviado; e então rodopiarei em um redemoinho de felicidade onde jamais nenhuma vez mais serei sequer abandonado. Desocupar-me-ei assim, pois, da vida para deixar de ser deixado.


Joaquim Cesário de Mello