domingo, 28 de outubro de 2018

POR DETRÁS DOS VIDROS


Resultado de imagem para VIDRAÇAS, PINTURA








Penso-me protegido
por detrás das vidraças de minhas janelas
aqui onde ventos não me assanham cabelos
nem o frio das ruas me arrepiam a pele.


Como se nada me atingisse
vou-me iludindo de infinitudes
e são tantos e tantos os intermináveis dias
que haverei um dia ou de romper
os limites quebradiços dos meus espelhos
ou sucumbir sufocado de infância e eternidade.

Engordo-me em armaduras de cristal
sem saciar nenhuma fome ou sede
e enorme vou ficando de tão cheio
das imensidões das lembranças inapagáveis.


Como quisera por um breve instante
passageiro e repentino até
poder deixar de ser eu e minhas inquietudes
e respirar sem o abafado cansante das interioridades.

Resultado de imagem para HOPPERGostaria assim liberto de mim
dissolver-me líquido e lento
como esta furtiva lágrima
que me escorre a face e ninguém vê
nem mesmo a mulher que me dorme 
ao lado.


Joaquim Cesário de Mello

domingo, 21 de outubro de 2018

BOA NOITE, MAMÃE






 “Boa noite, durma bem". Era com essas brandas breves palavras que sua mãe encerrava o dia, como em todos os dias, apagando a luz e encostando com leveza a porta do quarto. O menino em sua perplexa mudez não lhe dirigia de volta respostas, pois ela não fazia perguntas, apenas assinalava com enérgica determinação o exato momento em que fechava os espaços, trancafiando-o isolado em sua costumeira solidão noturna. Era uma frase terrível aquela que sempre antecedia anunciante o horror que logo se seguia ao surgimento das horas sem brilho, tão sombrias e tenebrosas quanto a métrica parte que lhe cabia na casa adormecida dos rumores diurnos. Prometera-se, à boca calada, que quando filho tivesse jamais a ele a pronunciaria, na ânsia dos pais em cedo amadurecerem os filhos, muito embora, quando estes chegarem ao tempo de visitarem outros leitos, persistisse - em seus agora chamados velhos - o indocicado sabor das recordações encobridoras das vacâncias dos quartos ao lado. O gosto das reminiscências é o vestígio ainda não apagado das coisas passageiras, enquanto a nossa natureza pelas permanências aprimora a fatalidade dos desgostos, afinal o que em nós continua é somente o que foi instituído pelos caprichos da memória. A ausência é a essência das lembranças.

Imagem relacionada       Porém, à época em que o menino ainda idealizava filhos vindouros, como quem aguarda em tocaia sonhos aos quais entregasse por inteiro seu espírito e suas inquietudes aos embalos incoerentes dos devaneios substitutos da vigília, soterrava o desejo pela ida à cama dos pais embaixo de toneladas de medo. Logo este afeto primitivo, com o qual viemos à vida, que em seu impensado peso nos fixa ao chão do instante como as profundas raízes das estátuas públicas de mármore. Por mais que a realidade e seus breus lhe assustassem o peito onde arfava palpitante o ímpeto de se apaziguar em meio aos seus, era maior o temor de se aproximar da cama de casal que a ele era imensa e sólida, ornamentada em robusta madeira maciça de lei, lugar que, com certeza, pensava, suportaria abrigar todas as crianças do mundo e o peso de seus sustos. Assim, por receio que lhe impedissem o assentamento junto aos corpos alheios (de expulsão já bastava o útero), trocava as hesitações e as rejeições pré-maturas pelas assombrações habitantes do quarto escuro. O assobio das brisas invernais e o esvoaçar sobressaltante das cortinas bailantes frente a entreabertura das janelas, acenavam fantasmas de sombras e gemidos, que nem o vedar das pálpebras evitaria - o negrume sombrio do quarto muitas vezes era preferível à escuridão sem cor dos olhos fechados. Na rua, cachorros uivavam sentimentos inumanos enquanto o menino em sua cama escutava ruídos de menino.
    
   Longos são os anos que separam o menino do adulto. Não mais existem os pavores infantis, abandonados naquele quarto onde hoje possivelmente dorme algum outro menino. Sequer restou a cama de casal proibida e seus residentes. Por que haveria ele de temer agora ilusórios espectros noturnais se os fantasmas de suas perdas perambulam até mesmo à luz do sol? O menino formado homem sabe que a substância do medo é perene e dela é feita a solidão, o que muda é a sua aparência e a sua superficial presença. Talvez por isso os mortos virem assombrações: quando pequenos, tememos a invisibilidade das trevas e a cegueira da escuridade, esvanecidos reaparecemos indefinidos para sermos vistos, pois morrer não é perder vida, é desaparecer, e o exercício da eternidade bem pode ser o de espantar o sono das crianças, nesses tempos desérticos em que a saudade ocupa o vazio deixado no rastro da sonoridade impronunciável de um simples breve "boa noite".


Joaquim Cesário de Mello

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

DIÁRIO DE AULA: CONJUGALIDADE

Resultado de imagem para CONJUGALIDADE


A grande maioria das pessoas sonha, ou um dia sonharam, em casar, embora aja poucos que não querem. Por detrás do anseio de casar acoberta-se (às vezes nem tanto oculto assim) o desejo de ser feliz. Sabe aquela estória infantil de "casaram-se e foram felizes para sempre"?, pois é, a ênfase no amor romântico advindo a partir do século XVII levou-nos associar casamento à felicidade. Talvez felizes mesmo fossem as pessoas da Antiguidade quando o casamento era voltado exclusivamente à procriação. Como diz o historiador Phillippe Ariès a ideologia burguesa em sua valorização pelo individual estabeleceu o casamento por amor e com predomínio amor erótico na relação conjugal. Dessa maneira ideologicamente os cônjuges passaram a se verem obrigados a se amarem e serem felizes. O amor, que antes do século XVIII era buscado fora do matrimônio passou a ser buscado antes do casamento e perpetuado dentro do casamento. Mas a grande questão não é o amor propriamente dito, mas sim o amor-paixão. Todos sabemos que normalmente o amor-paixão tem uma grande durabilidade assim, E agora, quando o amor-paixão acaba como preservar o casamento? O segredo não está em casar, afinal casar pode não ser tão difícil assim (aqui incluso as uniões consensuais). Ser um casal, formalmente falando, é uma coisa, porém funcionalmente é outra. O segredo, caros alunos, é a conjugalidade.
Resultado de imagem para conjugalidade

Conjugalidade é a construção de uma vinculação entre dois indivíduos independentes. Vínculo conjugal não é sinônimo de apenas coabitação, mas sim uma espécie de liame ou laço afetivo que liga duas pessoas. A conjugalidade, como já dito em aulas anteriores, resulta da construção de um terceiro elemento; o casal. A formação de um casal se faz na combinação de duas individualidades (dois sujeitos) que no espaço da intimidade interrelacional geram uma conjugalidade, ou seja, um desejo conjunto, uma história conjugal, um projeto de vida a dois, uma identidade conjugal. Sabe aquela história de "um por todos e todos por um"? Pois é, em seu livro Psicanálise do Casal (ed. Artes Médica), Puget e Berenstein assim conceitualizam vínculo como uma estrutura de três termos, constituída por dois pólos, os dois egos e um conector (ou intermediário) que liga ambos. Assim sendo a identidade conjugal emerge da relação conjugal - o que Caillé chama de "absoluto do casal".
Resultado de imagem para filosofia do amor, livro

O físico moçambicano Alexandre Quitanilha diz que a identidade não se descobre, constrói-se. Essa é a parte difícil.". Sim, transmutar a subjetividade na conjugalidade não é algo mágico, rápido ou que seja fácil e não implique em algumas renúncias e sacrifícios. Não é fácil principalmente porque a subjetividade das pessoas envolvidas tende a querer repetir a remota experiência narcísica de uma relação perfeita e simbiótica, que foi idealisticamente a relação do bebê com seu primeiro objeto relacional, isto é, a mãe. Aquele antigo e primitivo "nós" ilusoriamente simbiótico (vide post aula sobre PAIXÃO x AMOR) tende a se transferir inconscientemente para o par conjugal. Como diz o sociólogo alemão Georg Simmel, em sua obra Filosofia do Amor (ed. Martins Fontes) no amor há uma condição trágica que promove, entre os sujeitos, a necessidade de fundir-se com a pessoa amada, de modo a constituírem uma só pessoa. Tal expectativa idealizada e superexigência provoca tensão, tensão entre o objeto amado idealizado e objeto amado real.
Resultado de imagem para conjugalidade

O amor não é um afeto puro que sentimos de maneira passiva (como se flechado por um cupido), mas sim uma prática e atividade social. Neste sentido e contexto a comunicação entre os membros do casal é fundamental tanto para a intimidade quanto para a interação conjugal. Terezinha Féres Carneiro, pós-doutorada em psicoterapia de família e casal, afirma que a intimidade "para ser alcançada depende, essencialmente, da igualdade entre os parceiros e da comunicação emocional de cada um consigo mesmo e com o outro". Isto implica, entre outras coisas, no desenvolvimento e ajustamento de hábitos e funções, assim como o estabelecimento e a manutenção de novas relações sociais (amigos) e familiares (família de origem do cônjuge/companheiro).
Resultado de imagem para conjugalidade
Cada casal é um casal, único e singular, isto é, o modo como cada um dos personagens do casal lida com seus conflitos, traumas, superações e tarefas outros do processo de amadurecimento, tem impacto significativo no nível da qualidade conjugal e sua satisfação. É atualmente amplo os estudos sobre o assunto, principalmente devido a sua complexidade e variedade de contextos. No âmbito reduzido do presente blog cabe-nos neste momento indicar algumas leituras complementares a respeito:
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/cclin/v9n1/v9n1a04.pdf
https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/7791/7791_5.PDF
https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/25533/25533_3.PDF

Boas leituras e bons estudos

Joaquim Cesário de Mello

sexta-feira, 5 de outubro de 2018

DIÁRIO DE AULA - EXERCÍCIO DE SALA

Resultado de imagem para conjugalidade
1) Na discussão sobre o casamento contemporâneo várias questões são desenvolvidas, entre elas a confrontação de duas forças antagônicas que são a individualidade e a conjugalidade. Neste sentido a lógica de um bom e funcional casamento contemporâneo é:

A) 1 + 1 = 2
B) 1 + 1 = 3
C) 1 + 1 = 1
D) 1 + 1 = 0
C) 1 + 1 = 4

2) Como você entende a seguinte crônica de Rubens Alves?:
Resultado de imagem para casamento, tenis frescobol
"Depois de muito meditar sobre o assunto concluí que os casamentos são de dois tipos: há os casamentos do tipo tênis e há os casamentos do tipo frescobol. Os casamentos do tipo tênis são uma fonte de raiva e ressentimentos e terminam sempre mal. Os casamentos do tipo frescobol são uma fonte de alegria e têm a chance de ter vida longa                                           .
Explico-me. Para começar, uma afirmação de Nietzsche, com a qual concordo inteiramente. Dizia ele: ‘Ao pensar sobre a possibilidade do casamento cada um deveria se fazer a seguinte pergunta: ‘Você crê que seria capaz de conversar com prazer com esta pessoa até a sua velhice?\’ Tudo o mais no casamento é transitório, mas as relações que desafiam o tempo são aquelas construídas sobre a arte de conversar                                           .
Xerazade sabia disso. Sabia que os casamentos baseados nos prazeres da cama são sempre decapitados pela manhã, terminam em separação, pois os prazeres do sexo se esgotam rapidamente, terminam na morte, como no filme O império dos sentidos. Por isso, quando o sexo já estava morto na cama, e o amor não mais se podia dizer através dele, ela o ressuscitava pela magia da palavra: começava uma longa conversa, conversa sem fim, que deveria durar mil e uma noites. O sultão se calava e escutava as suas palavras como se fossem música. A música dos sons ou da palavra – é a sexualidade sob a forma da eternidade: é o amor que ressuscita sempre, depois de morrer. Há os carinhos que se fazem com o corpo e há os carinhos que se fazem com as palavras. E contrariamente ao que pensam os amantes inexperientes, fazer carinho com as palavras não é ficar repetindo o tempo todo: ‘Eu te amo, eu te amo…’ Barthes advertia: ‘Passada a primeira confissão, ‘eu te amo\’ não quer dizer mais nada.’ É na conversa que o nosso verdadeiro corpo se mostra, não em sua nudez anatômica, mas em sua nudez poética. Recordo a sabedoria de Adélia Prado: ‘Erótica é a alma´                                               .
O tênis é um jogo feroz. O seu objetivo é derrotar o adversário. E a sua derrota se revela no seu erro: o outro foi incapaz de devolver a bola. Joga-se tênis para fazer o outro errar. O bom jogador é aquele que tem a exata noção do ponto fraco do seu adversário, e é justamente para aí que ele vai dirigir a sua cortada – palavra muito sugestiva, que indica o seu objetivo sádico, que é o de cortar, interromper, derrotar. O prazer do tênis se encontra, portanto, justamente no momento em que o jogo não pode mais continuar porque o adversário foi colocado fora de jogo. Termina sempre com a alegria de um e a tristeza de outro           .
O frescobol se parece muito com o tênis: dois jogadores, duas raquetes e uma bola. Só que, para o jogo ser bom, é preciso que nenhum dos dois perca. Se a bola veio meio torta, a gente sabe que não foi de propósito e faz o maior esforço do mundo para devolvê-la gostosa, no lugar certo, para que o outro possa pegá-la. Não existe adversário porque não há ninguém a ser derrotado. Aqui ou os dois ganham ou ninguém ganha. E ninguém fica feliz quando o outro erra – pois o que se deseja é que ninguém erre. O erro de um, no frescobol, é como ejaculação precoce: um acidente lamentável que não deveria ter acontecido, pois o gostoso mesmo é aquele ir e vir, ir e vir, ir e vir… E o que errou pede desculpas; e o que provocou o erro se sente culpado. Mas não tem importância: começa-se de novo este delicioso jogo em que ninguém marca pontos…             .
A bola: são as nossas fantasias, irrealidades, sonhos sob a forma de palavras. Conversar é ficar batendo sonho pra lá, sonho pra cá…                                 .
Mas há casais que jogam com os sonhos como se jogassem tênis. Ficam à espera do momento certo para a cortada. Camus anotava no seu diário pequenos fragmentos para os livros que pretendia escrever. Um deles, que se encontra nos Primeiros cadernos, é sobre este jogo de tênis:
‘Cena: o marido, a mulher, a galeria. O primeiro tem valor e gosta de brilhar. A segunda guarda silêncio, mas, com pequenas frases secas, destrói todos os propósitos do caro esposo. Desta forma marca constantemente a sua superioridade. O outro domina-se, mas sofre uma humilhação e é assim que nasce o ódio. Exemplo: com um sorriso: ‘Não se faça mais estúpido do que é, meu amigo\’. A galeria torce e sorri pouco à vontade. Ele cora, aproxima-se dela, beija-lhe a mão suspirando: ‘Tens razão, minha querida\’. A situação está salva e o ódio vai aumentando                                                         .

Tênis é assim: recebe-se o sonho do outro para destruí-lo, arrebentá-lo, como bolha de sabão… O que se busca é ter razão e o que se ganha é o distanciamento. Aqui, quem ganha sempre perde                                                         .
Já no frescobol é diferente: o sonho do outro é um brinquedo que deve ser preservado, pois se sabe que, se é sonho, é coisa delicada, do coração. O bom ouvinte é aquele que, ao falar, abre espaços para que as bolhas de sabão do outro voem livres. Bola vai, bola vem – cresce o amor… Ninguém ganha para que os dois ganhem. E se deseja então que o outro viva sempre, eternamente, para que o jogo nunca tenha fim…"