domingo, 28 de agosto de 2016

QUANDO O PROCESSO É PERSONAGEM

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Em um dos mais conhecidos romances do escritor Franz Kafka, O Processo, Josef K. acorda certa manhã preso e processado por um crime não especificado, ou seja, que tanto ele não cometeu como ele nem sequer sabe qual é. Já na recente série televisiva The Night Of  (HBO) Nazir Khan sabe do que está sendo acusado, contudo ele não tem lembrança de haver cometido o crime de que é acusado. Trata-se do homicídio de Andrea, uma bela desconhecida com quem ele cruzou na vida e com a qual passou uma tórrida noite de drogas e sexo. Quando madrugada acorda se depara com ela morta a facadas. Apavorado foge da cena do crime, porém é logo preso e sua vida sofre uma radical reviravolta. De pacífico e aplicado estudante universitário, filho de paquistaneses, Nazir é subitamente arrancado de sua sossegada vidinha e arrastado pelos meandros judiciais americano. Por ser acusado de haver assassinado uma jovem branca seu processo toma repercussões de crime racial. Assim, o personagem imerge inferno adentro.
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Mais de que uma série criminal de suspense investigativo, muito boa por sinal, The Night Of é um verdadeiro caminhar sinuoso pelo emaranhado e complexo sistema judicial americano. Mais kafikiano praticamente impossível. Embora ficcional a série beira a um realismo honesto e sincero. Trata-se tanto de um drama pessoal/familiar quanto social. O capítulo piloto (nome dado ao primeiro episódio de uma série, geralmente de maior duração) é extraordinário. Perdoem-me a hipérbole, porém é seguramente uma das mais geniais abertura de série que já presenciei. De início aparentemente lento a narrativa vai manhosamente tomando forma e velocidade que vai nos tirando gradualmente o fôlego. Não é exagero, como disse o site "Ligado em Série", que a dita primeiro noite fora de casa de Nazir "faz os nossos nervos estourarem de tensão". Decididamente é impressionante como somos levados à aflição acompanhando o desenrolar de cada minuto que se segue com o personagem após da descoberta do assassinato de Andrea. Isto sim é o que podemos chamar de magnetismo narrativo. Fantástico!!!

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Crepusculento e soturno, a noite do título da série é uma noite que se prolonga muito tempo. Dentro desta noite quase interminável convivemos angustiosos e passivamente com a submersão ao qual Nazir é conduzido estonteantemente para dentro de um mundo ocultado por delegacias, tribunais e presídios. O absurdo e o surreal de tais penumbras dá ao seriado ares kafikianos e até dantescos. Segundo o Dicionário na Web kafikiano significa "Situação indesejada em que um indivíduo, sem o querer, se depara como inserido, ficando com a real impressão de que, enquanto a situação perdura, está vivendo em uma dimensão irreal, em estado de perplexidade podendo, em decorrência, ser levado a uma condição mental totalmente desajustada". Nazir Khan, um indivíduo normal que vive normalmente a vida, é de repente acusado de um crime, arrancado do seu cotidiano habitual quando então mergulha em um estado de perplexidade e passa a existir em uma dimensão até então irreal para ele. 

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Boas interpretações à parte, o grande personagem é o fundo, isto é, o sistema judicial. O jogo jurídico; o dialeto e as artimanhas de advogados e promotores; o emaranhado das urdiduras do serviço público; o ir e vir da burocracia e de suas entrelinhas; tudo isto é o corpulento background onde transitam os demais personagens e a trama. O tecido do enredo por onde se desenvolve a história é de fato o palco da lógica judiciária, sua técnica, seus procedimentos, trâmites, espaços e processamento, bem como sua arbitrariedade, falhas e injustiças. Raramente tive a oportunidade de presenciar personagem tão metafísico.
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O ser humano em subjugação frente aos mecanismos de dominação do sistema. Embora sob o manto da legalidade, vive-se na série The Night Of uma distopia contemporânea mascarada (porém aos olhos de Nazir revelada), onde a opressão e a privação massacram com a frieza de uma lâmina que não percebe o poder agudo e afilado do seu amolado corte. Aterrorizador observar que não se está a falar de uma sociedade imaginária e futurística, porém de uma sociedade atual como a nossa onde as estruturas e organizações sociais nos impõe o poder de um Leviatã autoritário e imperioso. O que aconteceu com o Nazir pode acontecer com qualquer um, e a partir daí ser arrastado pelas correntezas de um pesadelo tanto absurdo quanto real. A fragilidade do indivíduo frente ao sistema é brilhantemente filmado em sombrio azul e desnuda um outro lado da sociedade frequentemente isolado como um cordão sanitário que supostamente existe para nos proteger da banda podre e infecciosa desta mesma sociedade. Há todo um organismo vivo que rege os mecanismos de poder, disciplina e punição. O controle do Estado se fez mediante um enorme aparato de normas e regras que com as quais o Estado se apropria dos corpos dos indivíduos que atentam contra a chamada ordem pública. Como nos mostra Michel Foucault, em seu livro Vigiar e Punir, a Justiça dos séculos passados deixou de utilizar o suplício e as torturas mortais e passou a buscar a "correção dos criminosos". Nasce-se, assim, entre os séculos 17 e 19, a prisão como presídio - e é pra lá que são encaminhados os "injustos agressores" da ordem social. E é pra lá, que o personagem de Nazir em The Night Of, é encaminhado. 

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Quem assistir The Night Of igualmente presenciará o tramitar tortuoso de Nazir pelo corredores, paredes, gabinetes, salas,  e celas labirínticas do sistema judicial americano, impregnado de máculas, armações e pactos de bastidores, cerceamentos e arbitrariedades. Um sistema (talvez não muito diferente do nosso) onde às vezes o que mais importa é a punição e menos a verdade. Onde termina a verdade e onde começa a mentira? Dúvida que se prolongará ao longo da desta mini-série de 08 capítulos. Enquanto a conclusão da história não chega, fiquemos com as palavras de Foucault: "a norma está inscrita entre as 'artes de julgar', ela é um princípio de comparação. Sabemos que tem relação com o poder, mas sua relação não se dá pelo uso da força, e sim por meio de uma espécie de lógica que se poderia dizer que é invisível, insidiosa".


Joaquim Cesário de Mello