domingo, 25 de janeiro de 2015

O brilho da Melancolia


Freud se perguntava por que alguns sonhos tendiam a ocorrer  de forma semelhante nas pessoas, mesmo  que os sonhadores tivessem vividos histórias de vida diferentes.  Suspeitou que houvesse um fato  próprio do humano  - ou filogenético -  que escapasse da história do sujeito – ou seja, da ontogênese. Esse entendimento gerou equívocos e ajudou a proliferar manuais rasteiros de interpretação dos sonhos. A ideia de que há algo comum nos sonhos parece verdadeira, contudo, a interpretação vem do que há de singular no sujeito. Há peculiaridades na cena aparentemente semelhante. Um exemplo frequente de sonhos que se repetem são aqueles em que o sujeito sonha com um ente já falecido,  e que, no sonho,  não sabe que morreu,  e  o sonhador tem receio de comunicar-lhe  a morte. Freud faz várias interpretações que trazem  os ressentimentos e as culpas daquele que sonhou, como se no sonho, o ato de levar, ou comunicar, o morto ao lugar da morte, fosse uma segunda morte, agora provocada por quem sonhou.  Esse angustiante impasse que deixa o outro viver dentro do sonhador fazem parte dos pilares do luto melancólico.

Costumo dizer que textos leigos podem ser mais úteis que textos técnicos ou especializados. Acho que há boas descrições de eventos psíquicos em texto literários que os deixam mais perto do evento em si  que determinados conceitos acadêmicos. Não quero, contudo,  desconsiderar o texto especializado.


Li recentemente um livro diferente. Livro que traz trechos da  biografia - em verdade uma autobiografia - do seu autor com ênfase a um severo estado melancólico.  Sob a forma de um anacrônico diário, ainda sob a forma de um esboço assemelhando-se a um rascunho, o texto consegue espezinhar o sofrimento de quem escreve e de quem lê . Quem é o autor? Bóris Fausto. Ele mesmo! O mesmo Boris Fausto historiador, um de nossos maiores historiadores. Quem se interessou em conhecer a história do Brasil  com mais detalhes, certamente o conhece. Mas que interesse o diário de um historiador despertaria? A depender do que se escreve poderia ter nenhum ou muitos e preciosos interesses – tenho, contudo, receio de muitos textos  que são escritos por celebridades que acreditam  que qualquer coisa que venha dizer por escrito, faz literatura. Li livros de pessoas de destaque, que são sofríveis. Não é, contudo, o caso do livro O brilho do Bronze (um diário) de Boris Fausto.

 Aparentando um texto de palavras modestas,  esse diário  discorre sobre o período imediatamente depois do falecimento de Cynira, esposa de Fausto, com quem foi casado por quarenta e nove anos. É através do surpreendente lirismo narrativo – não esquecer que Boris Fausto é  escritor -  e da simplicidade com que usa as palavras  que o livro torna-se uma obra grandiosa. Um diário se inspira na ideia de guardar  recordações e  na organização ou cronológicas da passagem dos dias. Nesse livro, contudo, essa regra é desnecessária. Os dias se preenchem, às vezes, por textos curtos,  frases supostamente sem importância, mas que com a sucessão das palavras, vão dando forma aos imprecisos sentimentos dos melancólicos,  e se constrói um mosaico complexo dessa singular experiência psíquica – o discurso melancólico tende a expor aridez  e as elipses de palavras inauditas. Fausto não poupou situações de exposição, os acontecimentos íntimos embaraçosos e  ambivalentes.  Boris traz sonhos, muitos sonhos,  e um  deles me fez voltar a Freud:

sonhei com ela duas noites, e uma cena me comoveu particularmente: Cynira está em meus braços, chorando ‘miudinho’, com aquela discrição de sempre˜

outro sonho:

“Ela aparece falando de problemas educacionais e da necessidade de conversar com Paulo Renato [ex-ministro da Educação]. Quando digo que Paulo Renato morreu, lamenta muito e me pergunta por que não lhe havia contado antes. Sem graça, digo que aconteceu no período em que ela “desaparecera”.




O pudor em relatar a (segunda) morte ao morto provoca-lhe sofrimento e dor.  Esse sentir provoca uma aflição devastadora: a angústia, a culpa e a autoflagelação daquele que vive –  como disse Kierkegaard, a angústia da morte é está a beira dela e não poder morrer.  E assim sofre o melancólico, assim constrói armadilhas que  criam um sem número de pensamentos inviáveis e de perguntas irrespondíveis. Fausto se pergunta: “como é possível alcançar a resignação/serenidade em meio às sombras?” Se  somos condenados a viver nesse terreno sombrio e pantanoso, onde estaria a serenidade? Boris Fausto é sábio nas perguntas e mais sábio nas pequenas soluções – afinal, não existam grandes soluções. O texto é invadido por eventos do dia-a-dia que o suaviza e, aqui e ali, faz rir em meio ao sarcasmo e o bom humor.  Não deixa de nos trazer, contudo, os  ruídos da melancolia.   Diversas passagens do texto funcionam  como metáforas que elaborem esse luto, mas algumas passagens desse processo me impressionou:

Quando fala de quartos dos mortos, Michelle Perrot (autor de História  dos Quartos) se refere a duas atitudes opostas: de um lado, a de tudo preservar; de outro tudo tentar apagar, até mesmo a lembrança da voz do morto. Fico rememorando a voz de Cynira, fazendo força par não esquecê-la, temendo que isso aconteça. Por quê, nas nossas longas conversas sobre sua vida que reproduzi em “Memórias de um historiador de domingo”, não gravei alguma coisa, preferindo deixar a conversa escorrer livremente?”

“(...) sonho: chego na praia da Enseada e vejo que quase tudo está modificado para pior. Nossa casa foi invadida, uma porção de gente atravessa ela, incessantemente  Vejo a praia “arruinada”, como os caiçaras falava tempo, quando nuvens escuras se desenhavam no horizonte.”  


Marcos Creder

domingo, 18 de janeiro de 2015

O FIM DA INFÂNCIA









Estranho título, não? Talvez não soe estranho para quem já teve a oportunidade de conhecer o livro A História Social da Criança e da Família de Philippe Ariès. Contudo, o leitor aqui presente que não leu ou conhece a referida obra e estudo, não se confunda: não estamos a falar de crianças (meninos ou meninas), mas sim da infância, ou melhor, do sentimento de infância.
Neste seu farto livro Ariès tematiza o conceito de infância através de três blocos históricos, a saber: Antiguidade, século XIII e do século XVIII até os tempos atuais. Até o século XIII, demonstra o autor, a criança praticamente era vista como um adulto em miniatura, não havendo distinção clara entre o mundo infantil e o mundo adulto. Já a partir de meados do século XIII vai-se ter a primeira transformação na ideia de infância que começa a preservar a inocência da criança, e para isto afastando-a do convívio adulto através da criação de instituições escolares. Já no terceiro período histórico – século XVIII – consolida-se o conceito de infância como o herdamos. É desta época em diante que vai gradualmente ocupando o lugar central no seio da família que, por sua vez, transforma-se em uma família pedifocal.


O privilégio dado à criança de ser criança parece estar sofrendo um retrocesso, embora muitos de nós não nos apercebamos. Comecemos pelo vestuário. Os meninos e meninas de agora se vestem como adultos, bem como se comportam como se adultos fossem. Vivenciamos o declínio e até mesmo a supressão da infância como fase inicial da vida, mediante o encurtamento da fronteira entre o mundo da criança e o mundo do adulto.
O tempo de convivência dos pais com as crianças é cada vez menor, bem como a outrora figura da mãe presente em casa e na criação da prole está se escasseando, devido principalmente ao duplo carreiramento profissional do casal. Os filhos quando não estão entupidos de tarefas e atividades (escola, balé, inglês, judô, natação, etc) estão entregues à “pedagogia da mídia” (televisão, dvd, internet, games, etc). A família mal tem espaço e tempo para se reunir e conversar sobre a vida e o cotidiano. 

O declínio gradual da infância enquanto infância é bem discutido pelo crítico social norte-americano Neil Postman, em seu livro O Desaparecimento da Infância. Lembra-nos o autor que vivemos um período histórico onde a presença da mídia eletrônica se faz de maneira hegemônica e dominante. Para ele a televisão, por exemplo, contribuiu em muito para destruir a linha demarcatória entre infância e adulteza. Frente à televisão a criança, embora protegida pelas paredes do lar, está exposta a inúmeras e incontáveis imagens e cenas de violência e sexualidade, bem como é instigada a uma postura de consumismo exacerbado. Por meio da televisão e da internet uma criança precocemente entra em contato com o mundo adulto e, às vezes ou muitas vezes, com o que ele tem de pior.
Mesmo que o leitor ora presente ache normal ou nem perceba, tente observar com mais agudeza as brincadeiras infantis de hoje e verá que as mesmas estão adultificadas. Os sinais da precocidade adulta na criança são claros e visíveis: modelo de roupas, hábitos alimentares, linguagem, comportamento, objetos de uso pessoal, erotização, participação de menores em práticas delituosas ou criminosas em número crescente. O visual de uma criança e de um adulto é cada vez mais idêntico, distinguindo-se quase tão somente pelo tamanho diminuto. Será isto uma regressão sócio-histórica para antes do Iluminismo?
A infância é um artefato social, não uma categoria biológica”, escreve Postman. A infância, criada conjuntamente com o surgimento da Modernidade, a cerca de 350 anos atrás está em estado agonizante. O paradigma antes vigente floresceu durante os referidos séculos e sedimentou entre 1850 e 1950 (surgimento da televisão), período este em que a criança passou a ser alvo de atenção exclusiva, tempo este também que moldou a constituição da família burguesa. 
A crítica de Postman à televisão tem sua relevância e pertinência, visto que, ao contrário da literatura, não há hierarquia de compreensão e linguagem, pois a imagem é para todos, crianças ou adultos. Televisão não requer compreensão – diz Postman – e sim recepção. O volume frenético de informações contribui sobremaneira para ir minando e acabando com algumas fases da vida. Da mesma maneira que o mundo letrado de antes ajudou a separar ou ampliar os limites entre o mundo infantil e o mundo adulto (literatura infanto-juvenil e literatura de adulto), a televisão e a internet, com seu poder de poderem ser assistidas por qualquer faixa etária, acaba por construir novos e diferentes valores sociais. A cultura de consumo e a ideologia da sociedade de massa constroem assim corações e mentes, e praticamente quase todos não acham nada demais verem suas filhas em festinhas infantis dançando a dança da garrafa, eroticamente rebolando em cima de uma garrafa – como já tive oportunidade de presenciar.
Joe Kincheloe, coautor do livro Cultura Infantil, afirma que “o acesso das crianças a informações do mundo adulto transformou tudo drasticamente, ou alguém por acaso duvida que tanto a televisão, como a internet e outras mídias, funcionam como uma espécie de “babá eletrônica” das crianças pós-modernas? Percebam que se antes a memória que trazíamos de nossas meninices eram impregnadas pelas lembranças das presenças de nossos pais e de outras crianças, as dos futuros adultos do por-vir virão cheias de imagens eletrônicas provindas de telinhas de computador, Ipod, tablet e televisão. Quantas crianças não aprendem primeiro a manejar computadores antes mesmas de serem alfabetizadas? Nem necessita responder, é só olhar ao redor.

Os meninos e as meninas estão virando adolescentes cedo demais, até mesmo antes da puberdade, enquanto que os adultos estão ficando cada vez mais adultecentes, como se a adolescência fosse uma interminalidade interminável. Vivemos um imenso paradoxo: enquanto os adultos de infantilizam, as crianças se adultificam. Evidente, portanto, que as relações intersubjetivas sofrem alterações sob a influência insidiosa da mídia e da sociedade de consumo.
Fim do mundo? Não, outros tempos. Tempos onde as crianças não pedem permissão aos adultos para aprender. Tempos tecnológicos estes em que os adultos é que são ensinados pelos “pirralhos”. Só temo sobreviver até o dia em que não haverá mais crianças, adultos ou velhos, mas só uma multidão de incansáveis adolescentes. Não quero, sinceramente, estar vivo quando vivermos em uma sociedade sem crianças, ou melhor, uma sociedade sem o sentimento da infância e toda a sua puerilidade ingênua e de lúdica inocência. Não quero participar de uma cidade de Hamelim onde o flautista nos tirou todas as crianças, mas sim resisto em continuar desejando o ser humano em todas as suas idades.

Joaquim Cesário de Mello