domingo, 29 de novembro de 2015

Geração cabisbaixa parte II



Rebeca vem a algumas sessões do analista e narra a sua história como as pessoas costumam contar hoje, alternando palavras com sucessão imagens, fotos, ícones e emojis das redes sociais que mostram  o quanto engordou, emagreceu, envelheceu, rejuvenesceu, quando casou, descasou, recasou, sorriu ou entediou. Na verdade, hoje os fatos não são contados, mas mostrados,  as palavras apontam as imagens. Sempre há imagens de crianças, de pessoas amigas, de grupos, de parentes. Há sempre um sorriso, um selfie com uma paisagem atrás.

Mas Rebeca procurou um terapeuta. Então, veio a pergunta, depois de tantos atropelos em sua fala: o que você quer afinal? Indagou o profissional igualmente contaminado por sua confusão. Disseram, responde em tom aflito e hesitante, que eu tenho nobofobia. O terapeuta nunca ouvira falar daquela palavra, “Nomo” o que? Ela, então com algum pedantismo, puxou mais uma vez o celular, deu uma goolgada , e  estava lá,  “medo de estar sem telefone celular, especialmente  smartphone, literalmente no mobility  + phobos.    Rebeca se dá conta que não sabe falar sem o auxílio da telinha do seu aparelho, ou de imagens que lhe dêem  garantias de verdade - a verdade está na imagem, está, portanto, no que os outros veem. “Uma imagem vale mais do que mil palavras”, disse, citando uma amiga de facebook que postou essa frase no seu perfil e conclui, Muitas pessoas dizem coisas lindas. Recordou-se, por outro lado, que brigara  com outra amiga - são tantas amigas... - no WhatsApp é que tentara infrutiferamente  voltar a entrar em contato, enviou inúmeras mensagens. Soube poucos meses depois que a amiga tinha morrido em acidente de carro. Enviaram a foto e o localizador do acidente - ela inclusive, vira uma foto do acidente no Twitter, mas pensou que era uma pessoa desconhecida. Como essa amiga não fazia parte de seus  grupos de “Zaps” , isso fez com que a notícia chegasse mais devagar. Era preciso, pensou,  estar em grupo, e isso a fez recordar que havia  esquecido de dar o famoso BOM DIIIIAAAA!!!!! para seus amigos. Pediu  desculpas ao terapeuta e depois que concluiu com poucas digitadas, pergunta-se, Onde foi que eu parei  mesmo? O terapeuta disse que desde que entrou ela estava, em verdade, no celular, que ainda não se desligara  do aparelhinho. Pediu, então, para que o  desligasse e começasse a falar, fato que Rebeca recebeu com alguma hostilidade e insegurança.  Mas falar o que?  Qualquer coisa, assim assim? não tenho nada a dizer? “ E se acontecer alguma coisa enquanto estiver desligado?”, disse, “Que coisa?” Perguntou o terapeuta, Sei lá, pode acontecer algo com alguém, um assalto, um acidente. Como sua amiga? Replicou o terapeuta. Rebeca disse que não havia pensado nisso, mas “seria válido” pensar, palavras suas. Conta, então,  ao terapeuta que uma amiga havia escrito um blog quando adoecera de uma doença terminal, contou com detalhes - Até que um dia não houve mais postagens. Ao dizer isso, cai em prantos. Ao se recompor,  percebeu que falar ali na terapia não fazia muito sentido e olhando para os  detalhes da sala perguntou, Você não vai me pedir para eu deitar nesse troço, né? Disse apontando para o divã. O terapeuta responde que um dia talvez fosse interessante. Deus me livre, como vou saber se você está gostando do que eu estou falando ou não? O terapeuta sorri e diz, Você acredita que as pessoas que ao curtirem suas fotos e textos, estão realmente gostando de você . Ela diz que sim - Ora, naturalmente -  mas concorda que em muitas ocasiões já curtiu fotos desinteressantes e textos que não leu. Isso é raro de acontecer…  Sentiu-se profundamente incomodada com o que acabara de dizer e teve vontade de desmentir tudo.  Resolveu soltar uma provocação, Além do mais, aí atrás, você  pode ficar jogando candy Crush e não ficar nem aí para mim. Pois é, refletiu o analista, você pensa que desse modo as pessoas estão “aí” - aponta o celular - para você. As pessoas têm que estar ligadas, não é isso?, concluiu e levantando-se , e no caminho até porta  disse que ela viesse da próxima desligada.

Revoltada Rebeca eleva o queixo e vê na sala de espera todos como antes cabisbaixo de olho nos seus celulares. Sai às pressas e ao chegar no carro, percebe que havia esquecido o celular no consultório do terapeuta.
(Continua)

Marcos Creder

domingo, 22 de novembro de 2015

O MAL QUE NOS HABITA






Há pouco assisti o filme alemão A Onda (2008), de Dennis Gansel, baseado em um experimento social realizado em 1967 em uma hight school americana, em Palo Alto, Califórna. O filme retrata uma semana de aula sobre autocracia onde o personagem central, professor de colegial Rainer Wenge, leva seus alunos adolescentes a praticarem os mecanismos manipulativos de um regime fascista. O que começa como uma lúdica experiência pedagógica vai-se transformando em um perigoso movimento radical de massa. As coisas acabam saindo do controle e termina em tragédia. Assistam o filme, em exibição pela internet, através do canal Netflix.


Não é do filme que vamos agora discorrer, mas sim dos riscos de se abrir a "caixa de Pandora" da alma humana. Na mitologia grega Pandora foi a primeira mulher criada por Zeus que abriu um grande jarro proibido onde continha todos os males do mundo. A curiosidade da alma humana (sim, a alma humana é feminina) está na base das grandes crenças, mitos e lendas sobre a criação da humanidade, como no mito hebraico de Eva que, da mesma forma que Pandora, ousou comer de um fruto proibido. Passar de certos limites tem seu preço e, geralmente, é muito alto e nefasto. Em nossas profundezas não habita o bom selvagem rousseauano, mas sim a besta fera hobbeseana. Como diz o dito popular quem brinca com o fogo acaba se ferindo.


Em um dos maiores livros escritos no século XX, As Origens do Totalitarismo, um clássico do pensamento político, Hanna Arendt expõe as nervuras dos sistemas nazi-fascistas. Historicamente hoje sabemos os seus resultados, suas consequências e a barbárie que eles gestam - como no título de um filme de Bergman: O Ovo da Serpente. A crise e a desordem sócio-política e econômica da Alemanha à época da República de Wiemar (pós Primeira Guerra Mundial) resvala em um mundo social perigosamente paranoico e caótico, onde reside a centelha e estopim para se criar a serpente de um Estado Totalitário. A luta pela sobrevivência e o medo se conjugam na decomposição de um sistema social onde a libido se ajusta à histeria. Estão abertas, pois, as portas que nos separam da perversão. É como diz um personagem do filme: "qualquer um que fizer o mínimo esforço poderá ver o que nos espera no futuro. É como um ovo de serpente. Através das membranas finas pode-se distinguir o réptil já perfeitamente formado".
Escreve José Saramago: "Vista à distância, a humanidade é uma coisa muito bonita, com uma larga e suculenta história, muita literatura, muita arte, filosofias e religiões em barda, para todos os apetites, ciência que é um regalo, desenvolvimento que não se sabe aonde vai parar, enfim, o Criador tem todas as razões para estar satisfeito e orgulhoso da imaginação de que a si mesmo se dotou. Qualquer observador imparcial reconheceria que nenhum deus de outra galáxia teria feito melhor. Porém, se a olharmos de perto, a humanidade (tu, ele, nós, vós, eles, eu) é, com perdão da grosseira palavra, uma merda. Sim, estou a pensar nos mortos do Ruanda, de Angola, da Bósnia, do Curdistão, do Sudão, do Brasil, de toda a parte, montanhas de mortos, mortos de fome, mortos de miséria, mortos fuzilados, degolados, queimados, estraçalhados, mortos, mortos, mortos. Quantos milhões de pessoas terão acabado assim neste maldito século que está prestes a acabar? (Digo maldito, e foi nele que nasci e vivo...)Pessimismo, realismo, negativismo... seja lá como for, existe sim uma maldade que nos é intrínseca e inerente. 

Freud nos alerta que temos uma tendência inata a destruir e a praticar o mal que são próprias da natureza psíquica humana. A maldade repousa quase quieta dentro de todos nós. Cabe-nos evitar incitá-la e acordá-la. Em termos psicanalíticos a natureza humana é originariamente ID, e o ID é essencialmente instintivo e irracional. Depois é que vem e nasce o EGO no psiquismo, bem como posteriormente a este o SUPEREGO. Nossa estrutura básica é operada pelo Princípio do Prazer e por isso somos inicialmente egoístas e hedonistas a todo custo. Os agentes morais da mente e o Princípio de Realidade são construções que nosso psiquismo vai fazendo através das experiências com o mundo, a vida e as demais pessoas. Sonia Gusmão escreve (em A Natureza Humana Segundo Freud e Rogers) "Tudo o que o homem construiu – as artes, as ciências, suas instituições e a própria civilização – num contexto mais amplo, não passa de sublimações dos seus impulsos sexuais e agressivos. Neste sentido, pode-se afirmar que, sem as defesas é impossível a civilização, e que uma sociedade livre e sem necessidade de controle está fora de cogitação". 

A maldade pode ter várias facetas e múltiplas formas. Até o mais comum dos mortais é passível de praticá-la. Hanna Arendt denominou de "banalidade do mal" quando cobriu para o New Yorker o julgamento do criminoso nazista Adolf Eichmann. O "indivíduo Eichmann", como cita Arendt, não era um monstro diabólico ou uma mente distorcida, embora tenha sido responsável pela logística de transporte de milhões de pessoas à morte nos campos de concentração. Ele era apenas um homem comum que acreditava estar agindo por dever e somente cumprindo ordens. Ao cumpri-las sem questionar, Eichmann era alheio ao mal que fazia. Como descobre Arendt, a trivialização da maldade e da violências de seus atos representava um vazio do pensamento onde a maldade torna-se uma coisa banal, corriqueira e frívola. Quantas vezes nos deparamos com produtos bancários, como seguro de vida por exemplo, empurrados em nossas contas sem autorização? Pura maldade. Burocraticamente o funcionário nem percebe e se dá conta. Só está cumprindo metas. E se as alcança é elogiado, valorizado e recompensado.


Vivemos na dialética da vida humana. Oscilamos entre forças construidoras e forças destrutivas. Freud as chamava de Pulsão de Vida (Eros) e Pulsão de Morte (Tânato). Thanatos na mitologia grega é a personificação da morte. Também no pensamento filosófico chinês encontramos a representação dos opostos em Yin e Yang, respectivamente escuridão e claridade. E é no conviver dessas forças antagônicas e interrelacionadas que psiquicamente devemos desenvolver um EGO capaz de administrar e sublimar o conflito. 
O escritor russo Dostoievski certa vez escreveu: "compara-se muitas vezes a crueldade do homem à das feras, mas isso é injuriar estas últimas". Aqui reside uma das principais diferenças entre o animal e o homem. Enquanto o primeiro (como diz Saramago) é selvagem, apenas o homem pode ser cruel. Realmente não vemos nos demais animais, exceto no animal homem, a perversão como, por exemplo, o prazer em maltratar um outro. "A natureza não é cruel, apenas implacavelmente indiferente", afirma o biólogo e etólogo Richard Dawkins. Quem dá o significado de que algo é maldade e outra não é a moral humana, moral esta que varia de cultura para cultura, de época histórica para época histórica. Há sistemas sociais, como afirma Arendt, que banalizam o mal. O demoníaco mostra sua face despertado pelo cenário sócio-político, onde o homem de fato se torna o lobo do homem. A história biológica e sociológica da humanidade que o diga. 
Resultado de imagem para nietzsche, super homem

Intrigante a condição humana. Capaz de solidariedade e de gestos elevados e nobres, é igualmente capaz das coisas mais torpes e destrutivas. Esta é a essência da nossa natureza: sermos multifacetados, plurais, paradoxais e conflituosos. Talvez sejamos, como diz Nietzsche, uma corda esticada entre o animal e o super-homem, uma corda por cima do abismo; perigosa travessia. Será que um dia deixaremos de ser uma ponte para sermos perfeitos e divinos? Será?...


Joaquim Cesário de Mello