Apesar
desse artigo está sendo lido no domingo, escrevo ele na sexta-feira.
Sexta-feira é um dia meio ambivalente no
calendário das pessoas. Há aqueles que juntam todas as premonições e colocam nesse dia, e outros que preferem depositar
comemorações. Falemos dessa sexta-feira que passou, ou como vem se ouvido nos dias de hoje, na black friday
– pois é mais elegante falar qualquer palavra em inglês de uma sexta-feira nada "santa".
Há
uma regra conhecida entre comerciantes e vendedores que é simples. Se um
cliente/comprador se interessar por um produto, tente, se você é vendedor,
convencê-lo de comprar nos primeiros quinze minutos. Caso isso não ocorra a
chance do produto ser realmente adquirido cai vertiginosamente. Se o cliente “já se decidiu” e diz que vai dar uma volta ou que comprará mais tarde, lamento
informar, prezado vendedor, dificilmente ele voltará. Por que?
ou melhor: o que faz um produto
se tornar indispensável por quinze ou vinte minutos e deixar de sê-lo em meia hora? Em
verdade, essa regra nada tem haver com a necessidade, a maioria das compras que
se faz estão muito distante de uma realidade ou necessidade imediata, mas muito
próxima da gratificação e da satisfação geradas pelo próprio impulso de comprar ou
consumir. Consumir ou gastar talvez seja o correlato as caçadas pré-históricas, em que o caçador saía floresta a dentro a procura de
alimentos e de desafios; não bastava ser um simples caçador de ofício, o status de caçador era, por assim dizer, carregada de virtudes: coragem, desafio, habilidade. Virtudes que até hoje as pessoas precisam para acalentar suas almas sofridas. Poder-se-ía dizer, gorsseiramente, que a caça era uma forma de representar o
“poder”. Isso faz lembrar muitos discursos atuais em que a pessoa ao passar por
algumas dificuldades da vida, com a autoestima comprometida, vai ao shopping e, como mesmo diz, ‘se excede” na tentativa de (re)capturar esse animal simbólico.
Esse animal poderia ser traduzido e
atualizado pela palavra “necessidade”, mas como existe algo mais que que vai além da simples
captura de alimentos – e isso se observa
desde a pré-história – poderíamos retificá-la para desejo. Por isso que não
compramos o que necessitamos, mas o que desejamos. Se se trocasse o “objeto de
desejo” por “objeto de necessidade”, certamente, muitas pessoas perderiam o
entusiasmo de ir à caça, pois o que está em jogo, no desejo, são incontáveis variáveis
que, as vezes, o objeto em si, tem uma discreta participação – tão discreta que
sequer é usado ou consumido depois de caçado/comprado.
Tudo
que suscita o desejo, tende a atos irrefletidos, ou melhor impulsivos, e é
justamente nesse item que o vendedor leva vantagens incontestáveis na hora da venda, pois os
impulsos ocorrem justamente nesses
minutos inicias em que um produto é cortejado pelo cliente. Dentro desses quinze ou vinte minutos as reflexões são rasteiras, os orçamentos são flexibilizados, dívidas
são esquecidas,e o produto é divinificado e elevado a uma espécie de tábua de salvação - livrará momentaneamente toda a
infelicidade que o cerca . No passado mais ou menos recente, entre o encantamento e a compra, havia um empecilho. A falta de recurso, de dinheiro – embora que se pudesse fazer
um crediário, mas se corria o risco, na burocracia, de consumir esses minutos iniciais e
provocar desistência. Hoje, contudo, mesmo sem recurso imediato, o produto pode ser
adquirido. Costumo dizer que uma das melhores invenções do mercado financeiro é
o cartão de crédito – melhor invenção principalmente para quem inventou. Sua
funcionalidade convida, necessariamente, para o consumo. A maioria das pessoas
tem pouco controle sobre os gastos que fez no cartão, alguns só
tomam conhecimento quando topou no limite. Quando se estipula um valor da dívida da próxima fatura, em geral, erra-se para menos, Enfim, o crediário ou o cartão de
crédito anda de mãos dadas com os
impulsos de consumo.
Penso que as mudanças que ocorreram na humanidade foram norteadas pelos seus
desejos, e como o desejo tende a ser incotinenti – insaciável –
uma parcela de pessoas irão necessariamente perder o controle frente aos seus
impulsos - os muitos excessivos serão consumidores compulsivos. Não é por acaso que se fala tanto nos dias de hoje da sociedade de
consumo e correlatos. O consumo, em minha opinião, sempre existiu, mas os dispositivos de facilitação
do consumo - e aqui, entram inúmeros dispositivos que vão bem mais além que o crediário
- são recentes e são importantes para disparar esses impulsos nebulosos. Costumamos avançar
em nossas invenções e, a depender da utilizarão, poderemos ter uma relação patológica
com elas. Um exemplo: a humanidade sempre procurou formas de elevar sua reserva
de energética com alimentos; na medida em que houve um aumento das reservas
de carboidratos, em razão de vários refinos tecnológicos, a sua utilização em
desmedida criou, por assim dizer, a obesidade e os impulsos relacionados a
alimentos. Confeccionamos em nossas invenções, criação e criatura e, desse modo, teremos
que aprender a conviver com mais e mais variáveis a partir de cada descoberta. Alguns
acreditam que o melhor seria retroceder no tempo e voltarmos a relação menos
agressiva entre comércio e consumo. A ideia não deixa de ser interessante, mas temo que
voltemos a ser caçadores, que ao invés de dinheiro, cartões ou talão de cheque, tenhamos em mãos facas e
picaretas.
Conto
nesse pequeno intervalo de tempo em que escrevi esse artigo, pelo menos quinze
e-mails anunciando preços extraordinários da Black Friday. hoje é dia da caça ou do caçador?
Marcos Creder