terça-feira, 8 de outubro de 2019

A ALMA CINZA

    


Resultado de imagem para cinza     A alma humana é como água, não tem cheiro, não tem cor e nem tem gosto. A alma talvez nem exista de fato, seja pura abstração: uma imaterialidade criada pelo funcionamento do cérebro. A alma, enquanto mente, não ocupa um lugar físico e espacial. Quem ocupa espaço é o corpo. Mas nosso psiquismo tem substância, e a substância mental é constituída de pensamentos, sentimentos e emoções. E tal substância, impalpável, porém viva, encontra-se fincada em um substrato neurofisiológico. É como se fosse os dois lados de uma mesma moeda: o objetivo e o subjetivo. Não há mente fora do cérebro, mas a mente não é o cérebro. Ambos compõem, assim, um todo sistêmico complexo e interativo, onde tanto o cérebro influencia a mente quanto a mente o cérebro.
Resultado de imagem para distimia            Vejamos, então, a questão da distimia. O transtorno distímico é um tipo de depressão que se caracteriza pela diminuição do prazer com a vida e com a continuada permanência de pensamentos e sentimentos negativos. Embora seja uma depressão mais leve, pois não impossibilita a pessoa de suas tarefas, compromissos e funções, ela é constante e seus sintomas se arrastam por mais de dois anos. Neste sentido, a distimia é uma depressão de caráter crônico.


Resultado de imagem para DISTIMIA            Mais do que somente um transtorno, a distimia é uma forma de perceber, interpretar e sentir a realidade de um modo melancólico e triste. Faz parte do dia-a-dia a desmotivação, a negatividade, a diminuição de energia, a baixa autoestima, o mau humor e a irritabilidade. A continuidade e persistência dos sintomas, principalmente ao longo dos anos, vão se misturando a personalidade a ponto de o indivíduo construir a noção de si como alguém “normalmente” tristonho, desanimado e sem alegria. Pode-se, assim, chegar à cultura depressiva, isto é, hábitos, costumes, comportamentos e rotinas depressivas ou alimentadoras de depressão. 
Resultado de imagem para , MAU HUMOR    Pessoas distímicas frequentemente são mau humoradas, mas é um mau humor com “L”, isto é, um mal do humor. Vivem amargas e azedas, sendo facilmente irritadiças e podendo se exasperar por mínimas coisas. Impacientes e irritáveis, são tão acostumadas a se sentirem assim que chegam até afirmar “sempre fui assim”, “é da minha natureza”, ou algo parecido. Trata-se de uma distorção alimentada pelos anos em que convivem com as perturbações do humor. Lembremos que muitas vezes insidiosamente a distimia se inicia cedo na vida, desde a infância ou adolescência, ou ainda no começar da vida adulta.
       A depressão pode ter sua raiz no cérebro, mas a mente humana, por sua vez, pode alimentar a mesma. O cérebro “acredita” na mente, e se ela rumina pensamentos e ideias negativas o cérebro continua a responder como se o mundo externo fosse somente ruim, hostil e gerador de infelicidades. Desse modo, uma pessoa acostumadamente depressiva lida com o mundo e a vida de maneira depressiva, mantendo, assim, a perpetuação do desequilíbrio entre os fatores patogênicos e salutogênicos de sua ontogenia.
            Nossas experiências subjetivas e comportamentais têm influencia sobre o corpo e o cérebro mais especificamente. Lembremos que nosso cérebro hoje, por exemplo, é consequência de um longo processo evolutivo da espécie. Somos originados de modificações adaptativas do organismo frente ao ambiente com fins de sobrevivência. O cérebro e a mente humana evoluíram mutuamente e mutuamente se interinfluenciando. A equação mente-cérebro  compõe o todo humano, e dentro do princípio do interacionismo tanto o cérebro influencia a mente quanto a mente o cérebro. Processos neurofisiológicos e processos mentais são como duas linguagens distintas descrevendo os mesmos fenômenos. Porém, a intrínseca relação entre mente e cérebro ainda nos é um “enigma da esfinge”, embora nos últimos tempos termos avançado significativamente mistério adentro. 
      Pessoas deprimidas, principalmente as de longo prazo, tendem a estruturar suas experiências muitas vezes com base em interpretações equivocadas e negativas no tocante ao seu desempenho pessoal e profissional. Cognitivamente apresentam abstração seletiva, isto é inclinação a evidenciar o mau desempenho e menosprezar o bom. Assim, a depressão prolongada leva o indivíduo a um circulo vicioso onde o retraimento pessoal ante atividades prazerosas, salutares e positivas incrementam e servem como mantenedores do estado depressivo contínuo. Lembremos ainda, e mais uma vez, que uma pessoa deprimida pensa depressivamente, isto é, seu filtro entre o que pensa de si mesmo e o que pensa do mundo e da vida é acinzentado. E também sabemos, inclusive na pele, que pensamentos geram sentimentos, bem como sentimentos igualmente procriam pensamentos.


           O cultivo de hábitos e rotinas depressivas é egosintônico, pois foi se construindo gradualmente e conjuntamente a distimia ou a depressão prolongada. Dormir e acordar muito tarde, vedar a janela do quarto com cortinas, ficar muito tempo na cama, viver sedentariamente, comer mal e desordenadamente, adorar ler e assistir filmes melancólicos, não ter hobbies, realizar atividades solitárias, o uso abusivo de álcool, cigarro ou outras drogas, entre outros, são exemplos do que estamos falando.
            Desta forma, portanto, fica-se mais visível o que certa vez escreveu o poeta e escritor Charles Bukowski:

Andava com mania de suicídio e com crises de depressão aguda; não suportava ajuntamentos perto de mim e, acima de tudo, não tolerava entrar em fila comprida pra esperar seja lá o que fosse. E é nisso que toda a sociedade está se transformando: em longas filas à espera de alguma coisa. Tentei me matar com gás e não consegui. Mas tinha outro problema. Levantar da cama. Sempre tive ódio disso. Vivia afirmando: "as duas maiores invenções da humanidade foram a cama e a bomba atômica; não saindo da primeira, a gente se salva, e, soltando a segunda, se acaba com tudo". Acharam que estava louco. Brincadeira de criança, é só disso que essa gente entende: brincadeira de criança - passam da placenta pro túmulo sem nem se abalar com este horror que é a vida.
Sim, eu odiava ter que me levantar da cama de manhã. Significava que a vida ia recomeçar e depois que se passa a noite inteira dormindo cria-se uma espécie de intimidade especial que fica muito mais dificíl de abrir mão. Sempre fui solitário. Você vai me desculpar, creio que não regulo bem da cabeça, mas a verdade é que, se não fosse por uma que outra trepadinha legal, não me faria a mínima diferença se todas as pessoas do mundo morressem. É, eu sei que isso não é uma atitude simpática. Mas ficaria todo refestelado aqui dentro do meu caracol. Afinal de contas, foram essas pessoas que me tornaram infeliz”. 
      Uma pessoa costumeira e acostumadamente depressiva não está tão distante do que escreveu Kléber Novartes: A pior depressão é aquela que criamos. É, por exemplo, reclamar da falta de um abraço depois de se trancar sozinho em casa”.
              
       A alma, aos poucos, vai se desbotando. Primeiro desaparece o vermelho e o amarelo, depois o laranja, o violeta e o verde, seguido do azul, do rosa, do branco... sobrando apenas o cinza. É como se os dias fossem sempre chuvosos e o sol brilhasse gris.


(texto originariamente publicado em 06/07/2013)

Joaquim Cesário de Mello