domingo, 8 de dezembro de 2019

SOMOS TODOS HAMLET

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O mais dramático e trágico dos personagens shakesperianos talvez seja Hamlet. Embora mesmo quem jamais assistiu a peça teatral ou sequer ouviu falar dela conhece a atormentada e angustiosa expressão "ser ou não ser eis a questão". A frase faz parte de um monólogo de Hamlet e é seguida da seguinte inquietação: "sofrer na alma as flechas da fortuna ultrajante ou pegar em armas contra um mar de dores pondo-lhes um fim?". Não obstante a história seja escrita em torno do final dos anos 1500 e começo dos anos 1600 a referida fala do personagem é atemporal. O conflito interno e os dilemas morais é, por assim dizer, parte da própria natureza humana. "Ser ou não ser eis a questão".
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Este parece ser o mais profundo sentido da vida humana: ser ou não ser. A indagação hamletina é feita pelo mesmo frente a um crânio de uma pessoa que ele conhecera em vida. Se o que Hamlet tem em mãos é uma sobra óssea de um esqueleto, antes ela era coberto de carne e dentro havia uma vida cheia de sonhos, ilusões, esperanças, alegrias e tristezas. Ser ou não ser é a perplexidade hesitante da vida humana frente à morte. O demais seres viventes vivem existindo, somente o homem vive existencialmente.

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Ser quem se é. Mas quem é que somos? Pensamos ser tanta coisa, já dizia Fernando Pessoa. Não podemos ser sempre o que gostaríamos de ser, porém o que podemos ser e ainda não somos. Desejar não é ser. O desejo de ser o quem não se é nos gera sofrimento. A principal raiz de um existir sofrente reside na não-aceitação de quem se é. O sublime foi feito para os santos e os heróis. Inúmeros são aqueles que passam a vida querendo ser mais do que carne e nervos. Na inutilidade de nossos ideais quiméricos distanciamo-nos do verdadeiro ser que respira em latências traídas pelo narcisismo da alma. Queremos mais qualidades do que temos. Nossas algumas competências não nos bastam. A propriedade predicativa de cada um parece menos. Nossas magníficas majestades não aceitam viver sem cedros e coroas. O mundo é meu reino, embora dele sequer seja um súdito. "Entre mim e o em mim/é o quem eu me suponho/corre um rio sem fim", escreveu o poeta.

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Quem é esse ser verdadeiro que nos habita e que dele tanto tememos, apenas porque sua autenticidade nem sempre condiz com o ideal que de nós fazemos? Quem não se aceita, com todas suas qualidades, virtudes, defeitos e limites, atrofia seu próprio desenvolvimento. Quem não se consente ser o que é busca na vida uma inautenticidade que não lhe legitima, uma máscara que lhe aprisiona sua real face. Somos o que somos e não o que idealizamos. Tornar-se algo, tornar-se alguém, é transformar o que ainda não se é, mas que pode vir a ser, em aquilo que já se é.


Resultado de imagem para autoaceitaçãoSe somos feitos de contrários e se somos diversos e adversos, que sejamos, então, inteiros. Ser é não é uma questão, porém uma aceitação. Não ser é uma negação.

Joaquim Cesário de Mello

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

CARTA AOS PSICÓLOGOS DO AMANHÃ


"Numa terra de fugitivos aquele que anda na direção contrária parece estar fugindo" 
T.S. Eliot


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           Nos anos 70 em uma aula inaugural da cadeira de Semiologia Literária do Collège de France, o sociólogo e filósofo Roland Barthes discursou:

"Há uma idade onde se ensina o que se sabe:
Mas em seguida outra em que se ensina o que não se sabe:
isso se chama pesquisar. Vem talvez agora a idade de uma
outra experiência, a de desaprender, de deixar trabalhar o
remanejamento imprevisível que o esquecimento impõe à
sedimentação dos saberes, das culturas, das crenças que
atravessamos. Essa experiência tem, creio eu, um nome ilustre e
fora de moda, que ousarei tomar aqui sem complexo, na própria
encruzilhada de sua etimologia: SAPIENTIA: nenhum poder, um
pouco de saber, um pouco de sabedoria, e o máximo de 
SABOR possível”  

         Pois é. É chegada a hora de me despedir de mais uma turma de Psicologia que, encerrando seu ciclo de graduação, em breve estará iniciando, cada um a seu modo e maneira, seus primeiros passos no campo profissional extra-acadêmico. 
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Como toda turma, isto é, todo coletivo ou todo agrupamento de pessoas, esta não foi diferente das demais, Raramente uma turma ou classe de aula se destaca acima do banal, do comum e do normal. Porém, em toda e qualquer turma ou sala de aula, há sempre um ou outro que se diferencia, aqueles que se destacam. Sim, comumente há aqueles mais dedicados, mais compromissados, mais curiosos, mais esforçados, mais entusiastas, enfim, mais estudiosos que outros. Uma sala de aula é um conjunto heterogênico de alunos e estudantes. Tem aqueles que só vão se formar, tem outros que apenas estudam disciplinas e assuntos de prova; mas há também alguns que realmente amam o que chamamos de Psicologia. Estes, sem sombra de dúvida, serão os psicólogos do porvir. Outros não sei, provavelmente alguns sim, provavelmente outros não. E assim é feita a vida.
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Aos psicólogo do amanhã, do mais breve amanhã, aqui me aparto e me despeço com a certeza de que um dia direi orgulhoso "o psicólogo fulano de tal estudou comigo". Orgulhoso não por ter sido professor dele(a), porém honrado de poder ter participado e testemunhado um dos seus momentos germinais. Todavia, saibam eles (se é que já não sabem), que não foi ali, naqueles estreitos horários semanais de sala de aula, que eles começaram os psicólogos que serão. Você, meu caro ou minha cara colega, iniciou seu futuro profissional quando lá atrás desejou um dia estudar e ser psicólogo. Eu diria mais, foi antes até. O psicólogo que já há em você teve inicio na sua própria história pessoal que lhe levou a desejar ser o psicólogo e o profissional que você será. Suas alegrias, suas tristeza, decepções, realizações, frustrações, experiências e vivências, seus sofrimentos e seus traumas, suas superações, sua resiliência, seus fracassos, tudo isso trouxe-lhe até a FAFIRE e a esse momento terminal de faculdade.
         Não é porque estão a terminar um ciclo que vocês estão encerrando algo. Não. Vocês estão apenas continuando, pois ser psicólogo não é um título, papel ou função, mas um interminável gerúndio. 
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Sei que não estarei aqui quando cada um de vocês chegarem à minha idade atual. Mas, espero que de alguma forma ainda possa estar minimamente em suas memórias, pois, assim como vocês, pauto a minha existência a tentar fazer alguma diferença na vida das pessoas, sejam elas parentes, amigos, clientes/pacientes, alunos ou estudantes. Minha maior realização no exercício de lecionar não é que vocês aprendam a pensar o que penso, a conhecer o que conheço, a estudar o que estudo. Não. A maior gratificação de um professor é ver/sentir um aluno instigado, motivado e incitado em sua curiosidade, abrindo espaços frente ao novo e ao diferente, fomentado em sua criticidade e capacidade de refletir e de romper com paradigmas impostos ou nunca antes questionados. Particularmente, na minha opinião, um professor é acima de tudo um provocador. Ou, como dizia o educador pernambucano Paulo Freire, "ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção".
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Sim, tenho a ambição de ser lembrado, não porque fui (porque não sou) inesquecível, mas sim porque tentei ser o mais autêntico possível, o mais contraditório possível, o mais imperfeito possível e o mais verdadeiro possível, ou seja, aquele que pode se apresentar pelo que é (falho e fértil, adulto e menino, agressivo e afável, arrogante e humilde, adequado e inadequado, errado e certo, tolo e esperto), sem as máscaras caricaturais com as quais alguns ditos mestres escondem suas inevitáveis fragilidades e incertezas.

        Por outro lado, sinceramente, espero que me esqueçam. Não no sentido da desmemória ou do desaparecimento, mas na essência do esquecimento que nos propõe Barthes, que é a da deslembrança que nos enriquece. Como prega o Taoismo, "na busca do Caminho da Vida a cada dia se diminui algo".
         Hoje, esse algo sou eu.
Até amanhã, colegas...
Joaquim Cesário de Mello

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

PSICOTERAPIA DO PACIENTE BORDERLINE






Anteriormente publiquei, em 12/11 passado, um texto sobre a condição borderline (NAS FRONTEIRAS DO LIMITE DO VAZIO). Terminei-o falando rapidamente de algumas questões relacionadas ao âmbito da relação psicoterápica com pacientes/clientes com transtornos de personalidade borderline. Gostaria agora de dar continuidade ao assunto. Siga-me, então, quem quiser.

Uma pessoa cuja estrutura de personalidade se organiza de maneira borderline é uma pessoa que deseja ser amada incondicionalmente, amor este advindo de suas carências básicas e de suas necessidades idealizadas de ser acolhida e aceita sem limites. Evidente que uma pessoa de coração assim tão descontrolado acaba por afastar as pessoas de si, ou ela mesma se afastar das pessoas a qualquer frustração e desatenção. Vê-se, de antemão, tratar-se de pessoas que, quando em tratamento psicoterápico, tornam-se pacientes difíceis e que leva bastante tempo para que possam, de fato, estabelecer uma aliança terapêutica. Lembremos que na primeira década do século passado eram pacientes chamados de "não-analisáveis". 
O objetivo intrapsíquico em uma psicoterapia com pacientes borderlines é propiciar um espaço onde o ego possa desenvolver-se. Trata-se de atender pessoas cuja organização em seu modo de ser e existir é caótica e desorganizada, com relacionamentos interpessoais instáveis e oscilantes. Nelas estão presentes padrões de comportamento impulsivos e baixa tolerância à frustração e à ansiedade. Sua impulsividade muitas vezes se manifesta em uma conduta e caráter auto e/ou aloagressivo, o que contribui para a dificuldade em ter e manter uma relação mais equilibrada e estável. 
O modelo de atendimento psicoterápico de uma sessão semanal parece-nos insuficiente no enquadre com o paciente borderline, sendo duas sessão semanais, no mínimo, mais contraproducente. O reforçamento egóico é a meta inicial principal, evitando-se a associação livre e o trabalho interpretativo antes que o paciente demonstre um ego mais fortalecido frente a suas demandas impulsivas e mais tolerante quanto às frustrações e aos sentimentos de ansiedade. Trabalha-se, assim, com o material trazido e não diretamente com conteúdos e motivações inconscientes. Porém isto não é uma unanimidade do campo clínico, visto que há autores que sustentam o uso de interpretações precoces. Há controvérsias. 
Nossa posição a respeito entende que o manejo clínico em situações tais parte de uma mudança paradigmática, isto é, a ênfase que se dá na construção de um vínculo seguro e uma relação terapeuta-paciente razoavelmente confiável. Não é fácil, sabemos, mas este é o foco primordial, quiçá, por muito tempo, até o único. A transferência negativa só é trabalhado em condições extremas que ameacem a continuidade do próprio processo psicoterápico. Neste sentido, percebe-se a importância da utilização dos aspectos psicodinâmicos característicos de uma abordagem suportiva e de apoio. Aqui reside um dos pontos nodais da psicoterapia com pacientes borderlines: a flexibilidade entre uma postura de apoio conjugada ao enfoque na própria relação terapêutica abordando percepções negativas e não-realistas ou excessivamente idealizadas que possam perturbar o tratamento propriamente dito.
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Como escreve Rosa Cukier, em seu livro Sobrevivência Emocional: As dores da Infância Revividas no Drama Adulto,  as dificuldades da psicoterapia com pessoas borderlines são inúmeras. A sensação, diz ela, é a "de estar construindo uma casa no meio a um furacão". As respostas emocionais do terapeuta podem ser intensificadas frente a intensidade emocional e afetiva que vive o paciente. Corre-se o risco, assim, de hiperdimencionar a raiva manifesta em detrimento da vulnerabilidade muitas vezes latente, bem como o risco de culpabilizar o paciente pela própria situação, autodestrutividade, desgraça ou baixo êxito terapêutico. 
Resultado de imagem para BORDERLINENo acompanhamento com pacientes com transtornos borderline de personalidade os atos impulsivos e os acting outs são frequentes, diminuindo com o tempo e a confiança que vai se estabelecendo entre o par terapêutico. O holding é necessário para que os limites possam ser colocados e confrontados sem com isso o paciente se sinta mais invadido do que apoiado. O movimento dentro da clínica é um movimento de avanços e recuos, pois se trata da clínica da criança eternamente mal amada em busca do cuidador ideal. A barreira profissional deve ser preservada pela terapeuta a todo custo, porém isto não deve ser confundido com rigidez terapêutica ou excesso de assepsia profissional, pois são pessoas que precisam sentir a pessoa real do terapeuta. Firmeza não é sinônimo de aspereza. 
Um componente importante a se destacar no acompanhamento com pacientes borderlines é a questão de como eles se enxergam. A percepção de si é marcadamente negativa, pois são pessoas que usualmente se vêem muitos pior do que são, seja fisicamente seja psicologicamente. Tanto a autoimagem quanto a autoestima são alteradas. Há internamente uma espécie de vácuo, proveniente de uma falta segurança afetiva interior. Por isso é comum serem pessoas que necessitam avidamente de aceitação, porém qualquer minima desatenção os levam a explosões de raiva. Podemos afirmar serem pessoas sufocadoras em sua constante fome de serem amadas. Neste sentido o trabalho clínico é contribuir para construir uma melhor imagem de si e de seus objetos de maneira mais realista, coerente e integrada.
Resultado de imagem para CUIDADOS MATERNOSDentro da perspectiva de Kohut entende-se que o vínculo com um paciente borderline reproduz uma tentativa de reativar uma relação parental falha. Para Kohut a pedra fundamental da técnica psicoterápica é a empatia, priorizando trabalhar com sentimentos próximos da experiência vivenciada pelo sujeito em sua condição border. Deve-se, assim, evitar buscar significados ocultos e inconscientes, e enfocar a experiência subjetiva consciente do paciente. Todavia não se deve negligenciar questões inconscientes importantes, confrontando sempre que possível os componentes transferenciais negativos dirigidos aos outros e ao próprio psicoterapeuta. 

Por mais tumultuado e caótico que seja a organização psíquica da estrutura borderline, são pessoas e como tal trazem consigo recursos não-psicóticos que podem ser acionados a serviço de uma melhor estabilidade possível. Embora sejam pacientes muitas vezes denominados de difíceis ou de difícil acesso a psicoterapia é possível e com resultados satisfatórios. Trata-se de um acompanhamento psicoterápico em princíprio de longo prazo cujos princípios básicos resumo abaixo:
- estrutura estável de tratamento;
- posição terapêutica ativa;
- continente à raiva do paciente;
- confrontação em relação aos comportamentos autodestrutivos;
- estabelecimento de conexão entre ação e sentimento;
- intervenções no aqui-agora
- automonitoramento da contratransferência
Uma clínica desafiadora e fascinante. Um mundo humano a ser melhor explorado, compreendido e ajudado. Deixo como sugestão o vídeo abaixo, referente a entrevista da psiquiatra e escritora Ana Beatriz Silva no programa Sem Censura na TV Brasil:
Joaquim Cesário de Mello


terça-feira, 12 de novembro de 2019

NAS FRONTEIRAS DO LIMITE DO VAZIO




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Aonde o vazio persistente, contínuo e crônico na alma humana pode nos levar? Ao sofrimento psíquico e existencial, é claro. Sofrimentos advindos do vazio interno muitas vezes tendem a gerar a condição borderline de ser. Convencionou-se chamar de borderlie esse estado anímico entre a sanidade e a loucura. Não a loucura psicótica propriamente dita, mas uma espécie de loucura característica de alterações comportamentais graves e de afetos pueris encontrados muitas vezes na adolescência - o que o médico alemão Kahlbaum, no século XIX, denominava de "loucura juvenil propriamente dita". Em 1890 ele publica "Sobre a Heboidofrenia", para ele uma espécie branda de hebefrenia caracterizada por comportamentos anormais e distúrbios da moralidade, com alterações na esfera do social e da personalidade. Um adolescente hebóide é aquele que, sob um olhar ingênuo e superficial, é confundido como mal-educado, um jovem com flutuações de humor e do comportamento, que ficam facilmente irritados. Oscilam em espaços curtos entre a melancolia e a expansividade.
Resultado de imagem para borderlineMuitos termos foram utilizados desde então, tais como: "personalidade como se", "esquizofrenia latente", "esquizofrenia pseudoneurótica", "pré-esquizofrenia", entre outros. É a partir da década de 50 do século XX que o termo borderline começa a predominar e vingar. Hoje no CID-10 temos "Transtorno de Personalidade Emocionalmente Instável, tipo Borderline", e no DSM-IV "Transtorno de Personalidade Borderline".

A impulsividade sem mensuração das consequências, a imprevisibilidade do humor e a acentuada instabilidade afetiva são algumas das marcas de uma personalidade organizadamente borderline. Mas uma delas quero destacar: o sentimento crônico de vazio. O humor, os pensamentos e as ideias, as emoções e os sentimentos oscilam, vêm e vão; já o que parece permanente, como que uma tatuagem colada ao corpo, é o vazio. Rola na internet a seguinte frase atribuída a Roseli Santana: "presa em meu vazio o silêncio ecoa na solidão". Pois é, é um sentimento intenso de vazio que dói e tortura peito a dentro até o "osso da alma", vazio este cujo preenchimento é muitas vezes buscado desesperadamente em excesso vários, tais como: bebidas alcoólicas, drogas, sexo, consumo e compras. Angústia, depressão, ansiedade e vazio, portanto, são sentires bastante conhecidos por quem sofre de transtorno borderline de personalidade. 
Estudos diversos apontam para uma prevalência estimada entre 2 a 3% aproximadamente da população geral preenchem critérios diagnósticos compatíveis com o transtorno borderline. Dependendo dos critérios utilizados há estudos que apontam até cerca de 10%. E de onde brota tamanho vazio? Conhecendo-se a história pregressa de um adulto borderline encontramos quase invariavelmente forte sentimentos interiores de abandono e desamparo. De tais sentimentos, por sua vez, surgem a angústia, a ansiedade e a depressão.
O mundo interno borderline é caótico, confuso e vazio. Estamos no âmbito das primeiras identificações que faz a alma humana: as identificações primárias. Na imaturidade do ego inicial seus objetos cuidadores são frequentemente negligentes e/ou abusadores, falhando em dar proteção necessária a um ego frágil e em formação. Estimulações e resposta inadequadas por parte desses objetos colocam o incipiente ego em sobrecarga emocional cujas defesas acionadas são primitivas e, mais adiante, predominantemente utilizadas. Psicodinamicamente falando o manejo egóico de defesas primitivas dá o caráter "psicótico" de personalidade  não necessariamente psicótica. Podemos até dizer que tais carências orais infantis levam o sujeito a uma eterna busca por uma simbiose materno-filial. Em outras palavras, a insuficiência de uma relação simbiótica em um período desenvolvimental simbiótico normal (vide Margaret Mahler) mantém o self borderline como que preso ou fixado em tais necessidades narcisistas (provenientes de escassez afetiva sistemática, negligência contínua e abandonos frequentes), prejudicando assim o desprendimento evolutivo. Travado em sua "falta básica" (vide Balint) o sujeito tem, assim, dificuldade em sair desse nó simbiótico. 
Uma personalidade assim fundada na frustração da relação matricial gera em seu âmago fomes insaciáveis: fome por estímulos e fome de agarramento e aproximação simbiótica. Isto nos leva então, a melhor compreender o porque de tantas relações afetivas intensas, problemáticas e disruptivas. Tal volubilidade manifesta-se no constante apaixonar-se e desapaixonar-se. Vive-se, assim, na corda bamba da instabilidade tanto emocional quanto afetiva. Disforia episódica intensa, irritabilidade, tédio, pânico ou desespero, mudanças bruscas e dramáticas são uma constante na vida de uma personalidade borderline.
A carência é a origem dos nossos desejos. Os gregos da Antiguidade já sabiam disto. Na mitologia a mãe de Eros (desejo) é a Penúria (falta). A insuficiência é fósforo que aciona a pólvora e logo vem a explosão. No psiquismo o objeto primário interno é clivado, perdendo dessa maneira a sua continuidade afetiva como defesa à ansiedade e à angústia de viver e existir. Assim exposto, sem a defesa básica, o self borderline vivencia perto demais a angústia da morte e do desaparecimento, com reflexos em seu comportamento impregnadamente instável e muitas vezes autodestrutivo. 
O sentimento crônico de vazio, portanto, tem nome: desamparo psíquico. Houve uma ausência de internalização de uma relação de apego seguro com seus objetos primários e primordiais. O vínculo afetivo e amparador inexistiu ou foi bastante insuficiente, gerando um comprometimento significativo no desenvolvimento da capacidade de autocontrole e autoproteção. A construção psíquica do sujeito lastreou-se em base fortemente frágeis, assim formando um self vulnerável e com poucos recursos egóicos para lidar com a frustração e a ansiedade. É frequente se processar internamente uma espécie de "anestesia emocional" o que, por sua vez, justifica a sensação vivida de uma depressão sem tristeza. Trata-se de um sujeito sofrente que nem sequer pode "matar" os pais dentro de si, pois sequer há pais a serem "matados". E vazio não se mata, nem se preenche. O que se pode é aprender a conviver com ele. Difícil.
O binômio vazio-solidão é expressado em uma constante melancolia silenciosa que parece não ter fim. Uma depressão sem culpa, uma depressão anaclítica, típica de pessoa com tendência dependente e com sentimento de medo do abandono. A autodestrutividade tão visível no comportamento border (que inclui promiscuidade sexual, uso abusivo de drogas, perversão, mutilação e tentativas de suicídio) tem com base ou pano de fundo uma frusta e desesperada tentativa tresloucada de fugir dos sentimentos excessivamente dolorosos de abandono e desamparo.
É grave o transtorno borderline de uma personalidade. Não basta a utilização terapêutica de psicofármacos. É necessário uma relação psicoterápica estável, compreensiva, firme, protetora e segura. Uma rara chance de poder internalizar um objeto relacional significativo e de apego. Todavia é preciso antes formar um apego com este objeto (terapeuta) que, por sua vez, deve ser capaz de tolerar em si os ataques a ele dirigidos que só é possível no exercício de uma função continente. O manejo e a abordagem psicoterápica é, pois, uma outra história a ser contada, uma história que é uma continuidade de uma história que não se fez por ter sido interrompida desde cedo em seu nascedouro. Se vocês quiserem posso contá-la em outro post. Se quiserem...

Joaquim Cesário de Mello