domingo, 28 de setembro de 2014

A PALAVRA OMITIDA







Não me perguntem por que decidi hoje falar sobre meus silêncios. Todos temos nossos mistérios, segredos e ocultações. Todos querem ser ignorados por detrás de suas máscaras. Entre quem nos mostramos e quem de nós mesmos desconhecemos habita um intervalo de inconfidências e de privacidades impenetráveis. Não sou, pois, diferente de ninguém, afinal também trago em mim um amontoado de desejos sem objetos, de falas que não buscam ouvidos e de palavras órfãs de línguas. Tenho cá meus sigilos e meus recessos, confesso. Nem o mais íntimo dos deuses conhece meus esconderijos. Camuflei-me tanto de véus que sequer eu mesmo muitas vezes me reconheço. Apenas sei que aquilo que geralmente falo não revela um décimo de quem sou. Quando murmuro minhas cobertas interioridades quem as ouve é a surdez das paredes do quarto onde fingo pros outros que durmo. Só o escuro das madrugadas ilumina meu Joaquim clandestino.
Mas como falar de quem nunca falo? Que palavras empregar na ausência do hábito de seus usos? Como irei, então, me desabitar se prefiro o abrigo aconchegante do interior restrito dos meus contidos cômodos? Não quero a zoeira do burburinho de outras vozes, nem o ruído estrangeiro de contrários passos que não sejam os meus. Eis, portanto, senhores e senhoras meu atual dilema: falar com a mudez silente e taciturna dos meus calados, pois de longe ou de perto ninguém é assim totalmente sincero.


Penso em utilizar-me da poesia, pois, como escrevia o poeta Paul Claudel, um "poema não é feito dessas letras que eu espeto como pregos, mas do branco que fica no papel". Logo, aqui estou: vestindo-me de versos e prosas, simulando-me de vocábulos e letras, enquanto meu avesso se desnuda no oposto do que escrevo. Escrevo para me reconciliar com o menino que no refúgio de minhas profundezas balbucia vocábulos que o adulto não expressa. Escrevendo interrompo-me das aparências e me revelo nas entrelinhas do texto, na pausa suave das vírgulas, no soluçar respirante dos espaçamentos das palavras, na cadência ondulante do ritmo das linhas, na supressão inconclusa das reticências. Escrevo como Marguerite Duras também escrevia que "escrever é também não falar. É calar-se. É gritar sem ruído".

Como um rio tenho minhas nascentes e exsurgências de onde brotam as raízes mais verdadeiras dos meus mais fingidos frutos. "Quem me vê assim cantando não sabe nada de mim" (Cacaso). Olhe-me o gesto sonegado que verás o que digo. Escuta minhas ofegações que ouvirás o arfar do bafio das minhas desinquietações. Perceba o retirar das boca-fechadas que entenderás o linguajar das almas e o tinir das entranhas, inclusive as minhas. Somos todos feitos - sem exceção - de zumbidos, murmúrios e sussurros que transpiram invisíveis pelos estreitamentos de nossas superfícies. Ninguém é tão esfinge assim que um dia não possa ser decifrado. E por que ainda me acoberto? Por que me esconder se corro o risco de ser descoberto? Ou será que temo falar e não ser escutado? Será por isso, então, meu deus!; será que me faço ser ignorado por medo de ser ignorado? Não fui feito para o desdém nem para ser desprezado. Sou não sabido pelos outros para não me tornar desconhecido. Prefiro ficar sozinho e assombrado em um quarto escuro do que gritar por alguém e ninguém vier me socorrer. A solidão dos espaços externos me apavora. Recolho-me ao calor da minha companhia para evitar o silêncio das multidões.
Se viver é apenas ser vivido, como dizia Fernando Pessoa, então eu vivo sendo outro, construindo biografias de quem fui sem nunca ter sido e desejando-me em coisas e eventos que só terei em meus mais dormidos sonhos. Minha subjetividade é assim um intransbordante oceano em busca de uma praia. Sequer sou um orvalho a respingar em flores, embora em minha intimidade seja como em Miguel Torga onde "meu coração tem quantos versos quer". Por isto me nego a fazer versos, apenas para não ser poeta. Afinal, que poeta seria se não estaria mais alto do que estou? No máximo seria uma metáfora, mas isto eu já sou.

Não é fácil falar de mim, logo eu tão desprovido de me expor. Sei falar as palavras diárias, as mesmas e banais palavras costumeiras que pratico cotidianamente no mascarar de mim. Sei escrever textos pra me distrair e preencher vazios, então não me pergunte o que quero dizer, porém apenas veja porque escrevo. Talvez escreva, como diz Saramago, porque não quero morrer. Mas se não quero morrer porque me engano de viver? Ah!, seria mais simples se minhas fachadas não fossem fechadas, e se minhas máscaras fossem viradas ao contrário. Todavia sou uma contradição desmedida ao recear aventuras e me aventurar em medos. Meu paradoxo? Ser exatamente quem não sou.

Basta, não adianta. Não consigo ir além das retóricas empoladas e decorativas nas quais refino sutilmente todas minhas pobrezas como se feito de ouro fosse. Se por fora sou barroco, por dentro sou campestre. Se me exagero de adornos é para dissimular meus desalinhos. Se me rebusco grandioso é pra proteger o menino. Se construo palácios é porque moro em casebres. Se me mostro abundante é apenas porque sou insignificante. Por isso me desculpem. Em meu vocabulário não tenho o termo mais certo. Ou talvez porque ainda não inventaram uma palavra que me defina e me redima. E assim continuo sendo uma inexprimibilidade à procura de algum significado, um personagem a mais em busca de um autor.


Joaquim Cesário de Mello

domingo, 14 de setembro de 2014

SOLIDÃO EM CORES




Pode parecer estranho que um blog dedicado a articular Arte e Psicologia quase nada tenha dispensado em relação às artes plásticas. Hoje não. Hoje empregaremos este espaço dominical para falar da obra e dos sentidos nela contidos do artista norte-americano Edward Hopper (1882, 1967), famoso por retratar a solidão dos centros urbanos. Embora focado no estilo de vida americano do início e meados do século XX, sua picnografia é atual e espelha o cotidiano das metrópoles e das grandes cidades modernas por onde transitamos e desperdiçamos nossas vidas em banalidades rotineiras e comezinhas frivolidades habituais. Na contramão do modernismo imperante à época, Hopper nos revela, com traços nítidos, firmes e claros, o silêncio dos vastos espaços vazios e a insular presença humana, onde o individualismo é alçado à sua quintessência e somos com ele levados às fronteiras da incomunicabilidade humana. 
Suas figuras são solitárias e melancólicas, e no realismo de suas cenas somos convidamos a espreitar imaginativamente o interior e a particularidade da inquietação do mutismo aparente das imagens congeladas dos instantes passageiros que por tantas vezes contemplamos ser ver em frações milionésimas de segundos do nosso dia-a-dia agitado. O jogo de luzes entre o claro e a penumbra, bem como o isolacionismo entre as pessoas e o soturno dos gestos, paralisam intimidades fechadas em si mesmas em desligamentos afetivos silentes e incomunicantes. Tudo á tão impregnado de gigantesco retraimento e solidão.

A frieza manifesta e acentuada dos indivíduo parece esvaziar qualquer humanidade presente não fosse o ensimesmamento profundo de seus personagens debruçados e absortos em enigmáticos pensamentos. Como se eles fossem esfinges a serem decifradas, Hopper nos propõe mergulhar na subjetividade dos labirínticos misteriosos de suas almas em meio à vacuidade solene e taciturna da ausência de expressividades emotivas. Não há relações. Ou não há ninguém, apenas paisagens desabitadas; ou estão sós; ou estão sós diante uns dos outros. Seu realismo quase figurativo é na verdade uma grande obra poética sobre o distanciamento humano cercado de concretos, asfaltos, vidros e humanos.

Janelas, vitrines e vidraças são onipresentes. Sua ubiquidade não é à toa. Abertas ou fechadas, vistas em suas interioridades ou vistas de fora, as janelas não somente perpassam a luz ou as sonegam, mas também e principalmente representam metáforas de olhares a espiar a  nudez dos espaços internos de tantas vidas anonimamente estagnadas. Às vezes ao transparecer a luminosidade externa parece com ela tocar docilmente a solidão dos viventes e dos desanimados. Em outras, semicerradas, convoca-nos a fantasiar o que é vedado nossas pupilas enxergar. Narrativas ocultas protagonizam a cena como que roubando do evidente exposto histórias invisíveis cujos segredos e incógnitas são tão desconhecidos como desconhecidos são as pessoas gravadas em suas telas.

Na velocidade das áreas urbanas pessoas convivem impessoalmente umas com as outras como uma multidão de estrangeiros. Passamos uns pelos outros sem ois e sem adeuses. Exprimidos em exíguos espaços citadinos estamos juntos sem estarmos próximos. Em nossos perímetros há tanta gente que não pode caber tanta gente com a gente. Na overdose de pessoas ao redor, calamo-nos como se a disjunção comunicacional de nossas almas funcionasse como um antídoto ao excesso de rostos e corpos. Porém, solidão é solidão: seja nas cidades, seja em zonas rurais. Como experiência subjetiva o sentir solidão independe do isolamento objetivo. Trata-se de uma experiência psicológica desagradável que muitas vezes denota alguma deficiência relacional do sujeito que a sente. Pense no sofrimento contido nesta frase de Fernando Pessoa: "a solidão desola-me; a companhia oprime-me". 

Claro que o panorama das multidões urbanas e das escassezes solidárias, onde o individualismo confunde-se às vezes com diminuição de diálogos emocionais mais maduros, gera vivências solitárias diversas. Solitário é aquele que vive esquecido ou se sente esquecido. Na etnografia das sociedades urbanizadas as psicopatogenias dos conglomerados humanos possuem tipologias com marcas ou salpicos da industrialização e do ambiente.A solidão em grupos tem lá suas nuances. As esquinas desertas e o iluminar dos quartos vazios de companhias encontradas em abundância no conjunto da obra de Hopper são imagens aguçadas e áridas do tema abordado. Há algo de opressivo na banalidade frívola das intimidades espiadas, como se o tédio imperasse tanto ou mais do que o oxigênio da atmosfera eivada de distanciamentos afetivos. Quando há mais alguém em cena elas se beiram como uma porta fechada e uma rua deserta.

A tão decantada solidão urbana nos remete à imagem de um ser humano compulsoriamente cercado de outros e incomunicável com seus vizinhos. Todavia, lembremos mais uma vez: a solidão está dentro da pessoa e não em seu redor explicitamente. O distanciamento das proximidades e os rostos sem faces emolduram a sensação de vazio e isolamento internos. Evidente que nas paisagens urbanas apinhadas de gente pode-se observar, aqui e acolá, os solitários peregrinando pelo cantos e estreitos da vida. Os personagens que perpassam nas telas de Edward Hopper manifestam a indiferença e a silenciosidade de quem ali está alheio e abstraído na miudez das tarefas cotidianas.
A solitude é diferente da solidão. Solitude é querer ficar só consigo mesmo. A capacidade de se estar só consigo mesmo é uma referência da maturidade psíquica e emocional. O "eu sou" é sinônimo assim de "eu estou só". É como diz Clarice Lispector: "e ninguém é eu, e ninguém é você. Esta é a solidão". No sentido de solitude, portanto, o estar a sós consigo próprio possibilita aprofundamentos e descobertas. É o que analogamente também descreve Rilke ao afirmar: "uma única coisa é necessária: a solidão. A grande solidão interior. Ir dentro de si e não encontrar ninguém durante horas, é a isso que é preciso chegar. estar só como a criança está só". 

Não sei se as pessoas retratadas por Hopper estão tristes por estarem sós como imagino que estejam. Talvez ali esteja projetado a minha própria solidão e melancolia. Talvez. Mas é exatamente aí que reside a pungência criativa e genial do artista: deixar-nos antever nos mistérios da impenetrabilidade dos pensamentos de suas figurações os vazios que estão tanto dentro quanto fora das telas.

Joaquim Cesário de Mello

domingo, 7 de setembro de 2014

Três filmes

Venho assistindo a poucos filmes, inclusive, tenho escutado dos críticos de cinema que estamos passando por uma má fase de produções cinematográficas - arrisco em dizer que essa má fase se extende a outras artes, que, contudo, não falarei aqui - talvez em outro momento. Nessa escassez, assisti a dois filmes que, apesar de polêmicos, pouco me impactaram: "Ninfomaníacas I " e "Azul é a Cor mais Quente". Não são necessariamente filmes ruins, contudo, fazem parte daqueles tipos de produções que esquecerei  daqui há uns dois ou três anos.

O primeiro, do diretor Lars Von Trier - que muito admiro - é o mais fraco, inclusive, para o tema que, suponho,  se propôs problematizar. Achei mal construído. Não basta ter cenas fortes, intensas de violência ou sexual - recursos, aliás, explorados nos dois filmes - para se caracterizar a perversão com pensou Trie. É preciso entender a lógica, se assim posso chamar, da perversão. O funcionamento perverso não obedece à lógica explicativa como fez, ou tentou fazer, a protagonista do filme. Aliás, o discurso da personagem não é de uma ninfomaníaca, mas de uma outra posição, posição de quem pensa como deve funcionar uma ninfomaníaca - enfim, o lugar do diretor. E como pensou? Pensou como ma pessoa que narra atos inenarráveis e ostenta-se da ausência de sentimento culpa.   A uma verdadeira ninfomaníaca, o filme passa como  comédia romântica ou  um dramalhão com uma ou outra cena instigante. 

Exageros à parte, sabe-se que a ninfomania, como parte da estrutura perversa, não se inscreve na dimensão moral do certo ou do errado, do amor ou da paixão. Até a palavra "prazer" não bem se adéqua ao objetivo da ninfomania  A palavra  que melhor se aproxima da satisfação ninfomaníaca é "fissura", num sentido parecido que se utiliza na relação do dependente químico com a droga. A satisfação está além de um mero prazer, mas na execução de algo que não se tem controle ou domínio -  dito muitas vezes como é "algo maior do que eu desejo".  Há, na verdade, uma compulsão, uma espécie de necessidade urgente e inefável por realizar algo danoso ou transgressor - no passado chamava-se "vício", etimologicamente uma "falha" que se deixa dominar pelo objeto. A verdadeira ninfomaníaca dificilmente se identificaria com a hesitante e moralista personagem do filme - É difícil fazer um filme agradável com esse tema. Li a duras penas a "Filosofia na alcova" de Sade, e pude perceber que a crueza do texto faziam-me questionar o sentido, ou o propósito, dessa literatura. Contudo,  o asco do leitor parece funcionar como termômetro da eficácia do texto sadiano no sentido da perversão. A obra literária se alimenta de palavras, a perversão as economiza, ou as troca por atos. Sade sabe bem transformar palavras em atos.

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Quanto ao filme francês, "Azul  é a Cor mais Quente", comento que se os personagens fossem mais "convencionais", e se retirasse uma ou outra cena mais picante - enfim, os elementos mais explorados do filme - seria um filme que não demoraria a ser exibido em canais abertos. O que parece dar o tom provocante ao filme é justamente os desdobramentos de uma relação  homoafetiva - provocação que julgo conservadora. O  que se constata, irremediavelmente, é que a orientação sexual não faz uma relação ser melhor que outra - nem faz um filme melhor que outro. Se os personagens fossem um casal "hetero", esse filme chegaria com maior rapidez à sua irrelevância - falta-lhe originalidade, falta-lhe argumento ou roteiro que o dê destaque. 

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Depois de assistir a esses dois filmes, vi,  por acaso, um terceiro que não  gerou polêmicas ou discussões, mas que achei  interessante. Interessante porque discorre de  maneira satírica sobre os apelos das expressões artísticas contemporâneas, justamente desses tempos magros de produção. O filme: "A Grande Beleza".  Embora não  tenha sido uma proposta para grandes públicos, merecia maior divulgação -   mesmo sendo premiado com o Oscar de melhor filme estrangeiro de 2014  (prêmio que nem sempre é interessante),  se manteve desconhecido. Um dos erros começa pela classificação do filme: comédia. O filme traz algum sarcasmo, alguma ironia, mas está longe de ser uma comédia - esses engessamentos classificatórios pouco ajuda quando o filme é de boa qualidade.  Se pudéssemos  classificar os filmes pela qualidade: dividindo prateleiras -  as prateleiras dos ótimos , dos bons, dos regulares e  sofríveis - nos seria mais úteis. 

 "A Grande Beleza" traz a pesada tarefa de repensar as produções artísticas. Na vida do melancólico personagem, Jap Gambardella, um escritor de um livro só,  observa-se sua contemplação das manifestações populares das artes e das recordações pessoais, indo das mais grotesca às mais pedantes.  A honestidade artística do personagem, faz com que se crie mal-estar entre  amigos e seus pares, num momento cultural em que tudo é forçado para o conceito de arte.

 Dono de um excelente texto narrativo, o filme lembrou-me outros, principalmente, outros filmes italianos, especialmente dos elementos bizarros e caricatos do cinema de Fellini. Assisti-lo fez-me caminhar no tempo, o mesmo tempo em que, no  filme, o personagem tenta resignar-se e acertar-se perante seus paradoxos da vida. Que paradoxos? Os de sempre: a juventude e a velhice, a beleza e a feiúra, a arte e o cotidiano , a vida e a morte

Marcos Creder