domingo, 15 de dezembro de 2013

GLADIADORES


Por volta dos anos 1930, Freud comentou para uns de seus colegas psicanalistas sobre a queima de livros provocada pelos nazistas em praça pública em Berlim: “hoje queimam livros, no passado eram pessoas” . Infelizmente Freud estava errado, pois o que aconteceu foram as duas coisas, queimaram-se livros e pessoas; os nazistas levaram à câmara de gás e ao crematório milhares pessoas, em sua maioria judeus como o próprio Freud.
Esse acontecimento e muitos outros  da História, que envolvem violência extrema, trazem indagações: será que o processo de desenvolvimento social  “evoluiu” contendo os excessos da violência? Será que continuamos mais ou menos violentos? Será que estamos ainda no mesmo parâmetro de agressividade desde o dia em que pusemos os pés no mundo? É impossível se ter uma resposta para tais perguntas e possivelmente haverá defensores, com algum refino, de cada uma das proposições - pois há sempre há método nessas defesas, sejam elas as mais sensatas as mais escabrosas.  Enfim, o que se pode dizer é que não existem teorias que dê conta a todas as variáveis do comportamento violento. Nada impede, contudo,  que se possamos trazer especulações.


Sou pouco interessado em jogos de futebol, mas não pude deixar de assistir aos atos de violência cometidos entre torcidas num jogo no Paraná.   Assisti ao o que todos viram, e se indignaram: uma das mais grotescas cenas de violência já exibidas na televisão. A cena em si, fez-me lembrar outra cena que vi há muitos anos, uma cena do início do filme "2001: Uma Odisséia no Espaço" - um maravilhoso clássico dirigido por Stanley Kubrick. A cena a que me refiro ocorre  no início do filme: dois bandos de humanóides, na pré-história , disputam territórios. A luta é vencida pelo grupo que utiliza armas rudimentares, pedaço de ossos. Não há linguagem ainda nesse primatas, apenas sons de chimpanzés. Pois foi na semelhança com esses selvagens que revivi nos videos das torcidas de futebol no episódio da Arena Joinville. O fato da cena não ter áudio contribuiu sobremaneira para a minha analogia.




A ideia de comparar atos de grupos de humanos contemporâneos com as tribos ou hordas  primitivas não é novidade, e  possivelmente, nesse caso da Arena,  já se deve ter ter gerado publicações. Nessas matérias, em geral,  acrescentam-se um sem número de depoimento dos especialistas: sociólogos, psicólogos, psicanalistas, advogados, juízes, autoridades policiais etc. A pergunta que  em geral se faz - a grande indagação - é  se chegará o  tempo em que tais violências vão fazer parte do passado.


Há uma conhecida correspondência entre o físico Einstein e Freud que foi intitulado na obra de Freud  de “Por que a Gerra?”. são duas belas cartas escritas,  em que  Einstein  tenta buscar no  saber da psicanálise as explicações para a guerra e os atos de violência.  Freud certamente não “iria ganhar o prêmio nobel da paz” haja vista a franqueza da maneira pessimista com que respondeu. Era-lhe improvável que chegaria o dia em que os atos de violência seriam banidos da vida humana. Freud argumentou que que a natureza instintiva ( ou pulsional - como queiram) obedece as normas da natureza animal  -  “É isto o que se passa em todo o reino animal, do qual o homem não tem motivo por que se excluir”.  Obviamente que acrescenta-se na nossa subjetividade elementos simbólicos, capricho exclusivo do humano, que tentam dar sentidos, muito vezes incompreensíves, ao ato de violência.  No mundo animal podemos eleger o domínio de território para propiciar primordialmente a luta pelo alimento. No humano, parafraseamos a frase da música do titãs: “a gente não só quer comida, a gente quer comida diversão e arte /  quer saída para qualquer parte”. Freud nesse caso não tem a mesma ingenuidade ou mesmo idealismo que teve ao comentar sobre a queima de livros:

 



De acordo com nossa hipótese, os instintos humanos são de apenas dois tipos: aqueles que tendem a preservar e a unir — que denominamos ‘eróticos', exatamente no mesmo sentido em que Platão usa a palavra ‘Eros' em seu Symposium , ou ‘sexuais', com uma deliberada ampliação da concepção popular de ‘sexualidade' —; e aqueles que tendem a destruir e matar, os quais agrupamos como instinto agressivo ou destrutivo. Como o senhor vê, isto não é senão uma formulação teórica da universalmente conhecida oposição entre amor e ódio, que talvez possa ter alguma relação básica com a polaridade entre atração e repulsão, que desempenha um papel na sua área de conhecimentos. Entretanto, não devemos ser demasiado apressados em introduzir juízos éticos de bem e de mal. Nenhum desses dois instintos é menos essencial do que o outro; os fenômenos da vida surgem da ação confluente ou mutuamente contrária de ambos. Ora, é como se um instinto de um tipo dificilmente pudesse operar isolado; está sempre acompanhado — ou, como dizemos, amalgamado — por determinada quantidade do outro lado, que modifica o seu objetivo, ou, em determinados casos, possibilita a consecução desse objetivo. Assim, por exemplo, o instinto de autopreservação certamente é de natureza erótica; não obstante, deve ter à sua disposição a agressividade, para atingir seu propósito. Dessa forma, também o instinto de amor, quando dirigido a um objeto, necessita de alguma contribuição do instinto de domínio, para que obtenha a posse desse objeto. A dificuldade de isolar as duas espécies de instinto em suas manifestações reais , é , na verdade, o que até agora nos impedia de reconhecê-los.


Podemos tirar várias conclusões desse fragmento, mas destaco a relação de amor e ódio, tão próximas com afetos e ao mesmo tempo tão distante como conceitos. Ao observar a "guerra"  na Arena Joinville  vi que ali se rivalizavam  ”clãs” que tinham paixões simbólicas ( times de futebol) mas que deixaram de sê-las no momento em que as palavras e os gritos foram insuficientes ou simplesmente transbordaram em agressões físicas. 

A palavra é simbólica, o ato é real. Se chamamos aquele lugar de ARENA , remetemo-nos à época do ato em que a palavra foi criada (arena em latim significa areia -  a areia onde era derramado o sangue dos gladiadores no Stadium) O que talvez diferencie aqueles que estavam lá  na Arena  dos que se indignaram, seja um terceiro elemento além do amor e do ódio: a internalização da lei - algo que vem nos faltando e se faz sempre necessário.


Marcos Creder