domingo, 27 de julho de 2014

Hannah e suas verdades




Há algo de religioso no campo do conhecimento humano, mesmo nas mais racionais - se é que existem - das ciências. Há crenças religiosas e crenças científicas. Nietzsche afirmou que tanto a ciência quanto a religião não traziam “verdades” absolutas, pois os saberes carregam erros e mitos - a ciência, no entendimento do filósofo, seria um “erro útil”. O mitólogo Joseph Campbell, disse:  “a ciência é prosa, o mito é poesia”, Esta frase sugere  que, mesmo sendo clara e minuciosa, há algo de ficção na ciência. Por outro lado, o mito traz verdades.

Assisti, num desses programas de TV enfadonhos, aos argumentos de dois arqueólogos defendiam hipóteses opostas sobre o aparecimento  do ser humano nas Américas. o primeiro afirmava que o primeiro ancestral americano teria surgido nos Estados Unidos; o outro, no Brasil (especificamente no Piauí). Os defensores respectivamente eram norte-americano e brasileiro. Observava-se, com clareza, que as defesas traziam, sob supostos argumentos científicos, o desejo de vestir a camisa de suas nações. Os dois teóricos, com admirável retórica e argumentação, respaldavam suas hipóteses e restava a nós, telespectadores, escolher a bandeira que iríamos defender. O que se teorizava não estava dentro do pressuposto da neutralidade científica, mas no desejo, na paixão, do cientista. Ah! a hipóteses mais aceita  desse impasse arqueológico na comunidade científica, pendia para a origem norteamericana. Pois é... Existem nos Estados Unidos religiões que afirmam que Jesus Cristo, antes de nascer em Belém, teria vivido numa outra encarnação no continente norte-americano.
Os defensores dos saberes mais diversos, desde as psicologias, física quântica, astronomia, ciências políticas, das ideias marxistas,  capitalistas, fascistas passam por sentimentos e paixões que estão além, muito além, da  neutralidade.

Na psiquiatria ou psicologia, costuma-se categorizar anomalias nos atos de crueldade ou de destruição humanas. Se um sujeito se explode por alguma causa religiosa no Oriente  ou afirma que sua vida irá se findar em onze de setembro, certamente, deverá ser julgado como louco.  Se outro, atira uma criança, sua filha, da janela do apartamento, haverá de ter um transtorno mental ainda mais grave. Se o jogador de futebol esquarteja a ex-mulher, especialistas discorrerão sobre sua perturbação psíquica.

Serão todos degenerados, loucos?


Poucos teóricos tem capacidade de se distanciar, mesmo que momentaneamente, dos sentimentos e desejos atrelados à sua hipótese. Hannah Arendt é uma dessas exceções.  Na ocasião que assistiu ao julgamento de Eichmann, nazista refugiado na Argentina, nos anos 1960, Arendt pensou diferente do que pensou am maioria. Para se ter uma ideia da gravidade do crime, Adolph Eichmann foi responsável pela edificação de uma das maiores máquinas de extermínio do século XX: O campo de concentração. Eichmann coordenou o destino dos judeus, levando-os à “Solução Final” nos campo de Auschwitz, onde cerca de 1,3 milhão de pessoas foram assassinadas.

Ao capturar o nazista, havia se encontrado um monstro - a própria encarnação do demônio ou para os cientistas, um grave doente mental; para Hanna Arendt nem  uma coisa nem outra. Eichmann, no seu entendimento,  era uma pessoa comum, um burocrata, talvez com algum limite de inteligência, mas surpreendentemente normal, ou melhor, terrivelmente normal. Ao afirmar isso, Arendt compraria uma briga sem tamanho com a comunidade judaica - Arendt era judia - e com todos que se horrorizaram com o nazismo. Hannah Arendt concordava com punição exemplar do nazista,  mas, por outro lado, desmistificava a ideia do maníaco-demoníaco.

Eichmann, como outros assassinos, fazem parte de uma sociedade em que o mau é "banalizado". Uma sociedade da banalidade do mal não é tão rara nem exclusiva do nazismos ou do facismo, é mais corriqueira e contemporânea do que se imagina. Essa teria sido a maior causa da controvérsia e repulsa aos escritos da filósofa: saber que os sujeitos criminosos podem estar mais próximo de nós do que imaginávamos. Portanto, é mais alentador colocá-los no lugar da maldição ou do degenerado e esquecer que outras verdades possam existir.


Marcos Creder

Recomendo aos leitores que assistam ao filme Hannah Arendt, filme muito pouco divulgado.

domingo, 20 de julho de 2014

APRISIONADOS DO AMANHÃ




O amanhã é incerto, isto é certo. Não se tem exata certeza do que no futuro irá ocorrer. Tanto pode ocorrer coisas boas quanto coisas ruins.O que está por vir e por acontecer gera em nós, cada um ao seu modo e maneira, expectativas, esperanças e também receios. O futuro é para o ser humano um enigma ou um mistério. Quem não gostaria de saber antecipadamente o que vai acontecer, até mesmo para se prevenir. O ainda-não é fonte tanto de esperanças quanto de medos. Principalmente quando temos medo de no amanhã sofrermos, sofrermos de novo sofrimentos passados.
Quando alguém é acometido por uma forte crise de ansiedade esta lhe gera sentimentos intensos de medo. É o que acontece em situações psíquicas denominadas de "síndrome do pânico". Tal transtorno é caracterizado por uma crise abrupta de medo sem causa ou motivo aparentes, nem muito menos por ameaça ou perigo iminente real. O cérebro é banhado de adrenalina e o organismo é todo preparado para a fuga. Vertigem, vista turva e sensação de desmaio são frequentes que, conjugados com a elevação do batimento cardíaco, sensação de falta de ar e hiperventilzação, levam o indivíduo acreditar e a temer que pode vir a morrer. Embora de fato inexista ameaça à vida o forte incômodo provocado pela ansiedade descontrolada levam-no a sentir o pavor em morrer subitamente. A intensidade sintomática é de no máximo 5 minutos (uma eternidade para quem a vive), porém, após o "piripaque", fica-se um medo residual: o medo de voltar a ter medo. Tal sequela resulta em fobia, mas precisamente em agorafobia. A antecipação ansiosa da ansiedade pode gerar tal mal-estar que, por sua vez, pode originar novo ataque de pânico. É como certa vez escreveu o escritor francês André Gide: "o presente estaria cheio de todos os futuros, se o passado não projetasse sobre ele uma história".
O medo de voltar a sentir o medo profundo que gera o pânico muitas vezes pode levar o indivíduo a se isolar progressivamente em sua casa e condicionar reducionisticamente o seu cotidiano, a ponto de só se sentir seguro fora de casa quando acompanhado por outra pessoa. A síndrome do pânico, assim, passa a tomar o colorido de um círculo vicioso onde o medo de se ter medo gera novamente o transtorno temido. Estabelece-se, portanto, um sistema psicológico retroalimentador onde o futuro é visto como ameaçador de uma nova crise que até acontece pelo tanto pavor de se ter medo.
Quando o amanhã é o suposto momento da dor, do desconforto e do sofrimento, quando antecipatoriamente projetamos um sofrimento anterior em um tempo posterior, o futuro passa a ser uma época assombrada por assombros fantasmáticos, um lugar temido de onde o sujeito tenta evitar se escondendo em um presente cuja vida se circunscreve de maneira limitada e tolhedora. Ao contrário do que dizia Charles Chaplin ("a vida é maravilhosa se não se tem medo dela"), a vida é sentida como perigosa, ameaçadoramente perigosa, mais perigosa até do que os perigos normais de qualquer vida. O advir passa a ser abjeto e odiável, não porque seja mau, mas porque é incerto e na incerteza do que virá o medo passa a dominar como uma certeza de que o próprio medo retornará.
Uma pessoa que um dia foi acometida por um súbito ataque de pânico transforma-se, na maioria das vezes, em uma espécie de hipocondríaco. Na hipocondria propriamente dita - também conhecida por nosomifilia - é descrita como um estado psicológico onde o indivíduo tem a falsa ideia de que tem alguma doença grave e, assim, fica obsessivamente "ligado" em ruídos irrelevantes do corpo como se os mesmos fossem sintomas da suposta doença que ele acredita ter. Algo parecido acontece, pois, com quem sofreu anteriormente de pânico: fica minuciosamente se auto-observando à procura de um mínimo sinal que indique a possibilidade de uma nova crise. É como se o minuto seguinte da vida fosse quase sempre um minuto nefasto e fatal. Olha-se para a frente pelo espelho retrovisor.
O filósofo grego Epicuro dizia que a pessoa feliz é aquele que lembra o passado com gratidão, alegra-se com o presente e olha o futuro sem medo. Não é o que acontece com quem vive prisioneiro do futuro. O passado é lembrado como traumático, o presente é vivido em constante estado de expectativa sofrida e o futuro é encarado com assombro. A experiência traumática um dia vivenciada transforma-se em expectação ansiosa de uma catástrofe iminente. E é como escrevemos acima: a ansiedade assim gerada passa a ser um gatilho ou disparador de possíveis novos surtos de pânico. O que lá atrás um dia surgiu de maneira infundada é agora fundado em crenças de novas ocorrências de perda de controle, sensação de desmaio e morte, ou até de enlouquecimento. O corpo e o futuro, pois, são vistos como perigosos.
Um trabalho para fazer frente e aprender a lidar e a superar tal situação inclui a combinação, se necessário for, de psicofármacos, além de psicoterapia. Evidente que psicoterapicamente há de se visar uma reestruturação cognitiva, com vistas a dirimir as crenças e pensamentos disfuncionais que lastreiam o transtorno de ansiedade e a fobia. Treinar a respiração, desenvolver técnicas de relaxamento e a dessensibilização são métodos utilizados no tratamento do embatimento sintomático. A isto tudo se deve associar um trabalho voltado à natureza e às raízes encobertas da síndrome, afinal não se está frente apenas a uma doença ou um doente, mas frente a uma pessoa e uma personalidade. Não se trata tão somente de uma biologia neuroquimicamente desorganizada, porém também de um ser humano historicamente construído, com seu ego e seus mecanismos defensivos. Conhecer as dificuldades de simbolização, as vicissitudes dos afetos e os conflitos do mundo interno do paciente/cliente são imprescindíveis para uma consolidação eficaz da melhora do quadro clínico, Diria até que mais do que melhorar, é necessário mudar.
Mais do que alívio sintomático, portanto, faz-se essencial dar sentido ao sofrimento a partir da própria história e passado do sujeito. É imprescindível, pois, subjetivar sua sensação de desamparo que subjaz aos ataques de pânico. É fundamental pensar as emoções ao invés de querer se livrar delas. Livrar-se de emoções incômodas não é sinônimo de que elas nunca mais vão voltar. Há de se consolidar um self mais coeso e um ego mais fortalecido e melhor capaz de lidar com suas faltas e carências, sem a ilusão narcísica de um ideal protetor onipotente. Uma pessoa mais psicologicamente aparelhada a lidar e manejar com as incertezas e não seguranças da vida.
Em termos psicoterápicos e clínicos é relevante o cliente falar mais de si, entrar em contato com seus sentimentos (inclusive os aversivos), melhorar sua auto-obervação e consolidar uma boa aliança terapêutica. Isto resulta em mudanças atitudinais significativas, tais como estreitamento das relações de intimidade, fazimento de novas relações sociais, desenvolvimento de habilidades e potencialidades, acréscimo de respostas maduras para resolução de problemas e obtenção de reforçadores intrínsecos e sociais. Eleva-se, portanto, a autoestima - base do equilíbrio psíquico e fortalecimento pessoal.
Libertando-se do temor do amanhã pode agora o sujeito continuar rumo ao crescimento (pessoal, social, profissional, afetivo, familiar, financeiro, etc.) caminho este antes obstaculizado pelo medo que o inibia e o aprisionava. É como afirma a escritora francesa Françoise Sagan: "só fechando as portas atrás de nós se abrem janelas para o porvir". E se o futuro depende em muito do que fazemos e como vivemos o presente, um presente sem o excesso de medos infundados nos leva a um futuro encorpado de esperanças.

Joaquim Cesário de Mello

domingo, 13 de julho de 2014

o dia vira-lata


Hoje eu pretendia falar mais um pouco sobre artes plásticas, iria dizer algo sobre as “instalações” na arte contemporânea. “Instalações”? o que são “instalações”? Seria, grosso modo,   um tipo de obra de arte que compartilha com o ambiente,  o ambiente em que nós não somos apenas observador, mas parte do cenário. No teatro existe algo semelhante, explorado por Berthold Brecht, que se denominou de a queda da "quarta parede", somos na peça expectadores e atores. Mas deixarei de falar nisso para falar de algo supostamente banal. Do placar de jogo de futebol - logo eu? - e a ferida narcísica deixada no brasileiro, eterno orgulhoso, onde seus jogadores  são são heróis ou salvadores da pátria. De certo modo, não me distâncio da queda da quarta parede de Brecth: fazemos de um jogo o cenário incerto de nossas vidas.

Marx - o Groucho, comediante, e não o Karl Marx - disse que um país que necessitasse de heróis e salvadores da pátria não merecia ser salvo. É uma frase dura, mas que retifica e nos implica nas escolha, inclusive, de nossos governantes - que nunca serão salvadores da pátria.



Acompanhei outros momentos de tristeza nacional. A morte do presidente Tancredo Neves e de Ayrton Senna são algumas lembranças que vem a mente, duas comoções nacionais em que se via multidões caindo em lágrimas, depoimentos emocionados. "Nada, nada mesmo, se compara” dizia meu pai em tom solene assistindo à televisão “ nada se compara à derrota do brasil na copa de 50”. Estranhei o comentário, contudo, não havia como discordar, meu pai estava lá no Maracanã no dia sombrio em que o Rio de Janeiro já tamborilava a festa da vitória. O time do Brasil? "O melhor do mundo", bastava empatar. Fez o primeiro gol, terminou, contudo, perdendo do Uruguai por 2 x 1. O silêncio se estabeleceu como se tivesse morrido um parente próximo, o choro convulsivo se disseminara das arquibancadas e esparalha-se pelo país. 

Tive impressão que outro parente morreu na última terça-feira, uma morte dolorosa e, para muitos, vergonhosa, como se  tivesse morrido de uma morte ridícula.


Assisto pouco a jogos de futebol,  e, as vezes que vejo, são na Copa do Mundo. Irão surgir inúmeras teorias explicativas que justifiquem a derrota de 7x1.  Somos fadados a querer explicações para tudo que nos ocorre e haverá explicações, falarão do “estado psíquico” dos jogadores, da falta de empenho, de coordenação, de gerência, de política esportiva. Chegarão as teorias   de conspiração que venha a nos consolar. Haverá de surgir  os profetas do passado, “um pai de santo já havia dito",   metáforas semelhantes a de Nostradamus haverá de surgir.  Haverá até nome de síndrome para esse acontecimento, mas esquecerão  que em tudo que nos ocorre existe algo que não temos o menor controle: a contingência. Mesmo que fóssemos os melhores, os mais hábeis, os mais aptos - o que não me parece o caso -  nem sempre acontecerá o previsível, nem sempre teremos 100% de êxito. No caso de terça-feira, somou-se a essa contingência à falta de aptidão - em parte perdemos porque fomos piores, mas se pelo contrário fóssemos aquele time do mundo de 1950, ainda sim, um átimo de infortúnios leva ao inesperado.     Dominamos pouco o que nos ocorre, não controlamos as inúmeras variáveis que estão a nossa frente. Podemos, a depender da aptidão, até prever um tendência, mas jamais um caminho linear.  Nessa terça,  eis o acaso dando mãos ao infortúnio que - que tem lá seu parentesco com a incompetência e nos presenteia com o inexplicável. Esqueçamos. Haverá na história de cada um, cinco minutos trágicos, haverá o dia em que parafraseando Nelson Rodrigues, seremos vira-latas. Vira-lata que fracassam frente aos pastores alemães.

Voltarei a falar… das instalações em outro momento - afinal, não sei nada de futebol.  

Marcos Creder