domingo, 31 de julho de 2016

A NOSTALGIA DE SER FELIZ

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Você tem mais de 35 anos? Tem? Pois bem, o canal de serviços streaming Netflix recentemente estreou a nova série produzida por ela "Stranger Things". Em estilo saudosista Stranger Things é uma espécie de mix de filmes como ET e da série televisiva Arquivo X. Há várias menções diretas e indiretas a películas que marcaram o cinema de entretenimento dos anos 80, tais como: Poltergeist, O Enigma do Outro Mundo, Contatos Imediatos do Terceiro Grau, Os Goonies, entre outros. 
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A trama é ambientada no início dos anos 80 e é impregnada de alusões à cultura de então. Logo no início um quarteto de crianças estão jogando Dungeosn & Dragons, um clássico jogo de tabuleiro criado em 1974 ao estilo role play game (RPG). Tem de quase tudo da época, videogame Atari, mobília, vestuário, músicas, latas de coca-cola, aparelhos de rádio amador, walk takes, sintetizadores, fitas K7, pôsteres, discos de vinil e toca-discos 2 em 1. Até a atriz principal da série foi ícone daqueles tempos, Winona Ryder.
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Filmes ou seriados à parte, a nostalgia é uma sensação humana que sentimos por coisas relacionadas ao passado. Tal sentimento de saudade, com pitadas de tristeza e melancolia, nos é causado pela sensibilidade de que nos falta algo. A própria etimologia nos remete à isso: em grego nostós quer dizer "regresso à casa", enquanto o termo álgia significa "dor/sofrimento". A distância, a falta e o afastamento de algo querido nos abate com o desejo do retorno, seja de pessoas, lugares ou momentos. Na nostalgia há um quê de saudade idealizada do tipo "eu era feliz e não sabia".
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O poeta português Francisco Bugalho declamava "minha saudade não larga/certa casa abandonada./E sinto, na boca, amarga,/essa lágrima chorada/quando a deixei". O que jamais é esquecido e um dia foi querido, quando lembrado, é como se trouxesse de volta ao presente o passado. Há algo de continuidade no sentimento da nostalgia como se ela fosse uma ponte ligando o ontem ao hoje. Em estados nostálgicos o presente parece escapar do nosso campo perceptivo, resgatando-se, pois, da memória o sentimento ainda vivo do passado. Muitas vezes não deixa de ser um fenômeno psicológico de escapismo, isto é, um evadir-se dos tormentos e aflições dos acontecimentos recentes para buscar refúgio em algo anterior e já findo, agora bastante idealizado. Como disse certa vez Clarice Lispector, a nostalgia de súbito nos captura como se fossemos pego em flagrante.

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Herdamos dos negros escravos a palavra "banzo" que falava da tristeza dolorosa que sentiam de seu país de origem ("saudade da aldeia"). Não que ao nos sentirmos nostálgicos fiquemos com a depressão psicológica dos antigos escravos, porém muitas vezes um sujeito nostálgico torna-se sem perceber como se vivesse em um cativeiro do passado. Seja lá como for, a certa sofreguidão que nos acomete é como nos versos de Florbela Espanca: "nesse País de lenda, que me encanta,/ficaram meus brocados, que despi..."
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Há algo de doloroso no retornar das memórias que nos evoca o que aqui chamamos de nostalgia. O escritor alemão de meados do final do século XVIII e ínicio do século XIX Johann Paul Richter dizia que "a memória é o único paraíso do qual não podemos ser banidos". Sim, só pode existir nostalgia se houver memória, é claro. Contudo podemos confiar piamente em nossa memória?  Freud, por exemplo, já nos ensinava que não possuímos memória do nosso passado como ele foi, mas sim sim como recordamos hoje do que ontem nos foi. Em outras palavras, nossas lembranças é sobre o que foi e não o que foi propriamente dito. Nossa mente, mais precisamente nosso cérebro, não é um computador onde arquivamos nossas fotos dos tempos idos, porém o que a nossa mente guarda é o que ela acha que viu, como ela significou o acontecido, o que nos impressionou à época, impressões essas, inclusive, que ficam "registradas" com tintas emocionais que muitas vezes distorcem a cena como ela de fato ocorreu. Além do mais evocamos o passado através do presente, e entre ambos os tempos subjetivos muito tempo cronológico se passou. Muita coisa psicologicamente se esgarça no corroer dos dias, meses e anos.
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Eu mesmo, em meus momentos saudosos de nostalgia, percebo a evasão do aqui-agora conjugado a um toque de idealização do passado, passado este revivido memorialmente como uma paradisíaca idade de ouro. Talvez seja isso o que quis dizer o poeta Ruy Espinheira Filho com estes versos: "penso na noite como um rio profundo/e lembro coisas deste e de outro mundo./Outros mundos, aliás, que a vida é vasta/como diversa. E mesmo assim não basta". É deste mesmo poeta o sugestivo poema Revelação: "Ai que somos felizes/agora/mas não tanto/como amanhã, no passado". Parece que na nostalgia olhamos o passado de maneira higienizada e imaculada de impurezas.
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Ah!, essa danada da nostalgia. Nos pega melancólicos a sonhar com um lugar que não existe mais ou que até mesmo nunca de fato existiu. Reconheço, muito mais nos outros e muito menos em mim, o caráter fantasioso do passado frente ao presente. O agora que resmungamos e reclamamos pode se transformar no ontem em que no hoje dizemos "eu era feliz e não sabia". Este murmurar contra os dias que vivemos encontra eco no passado quando no passado tivemos bons momentos, momentos até considerados felizes. A nostalgia só tem real sentido no sentido que encontramos nos versos musicais de Vinicius de Moraes que assim cantava: "quem já passou/por esta vida e não viveu/pode ser mais, mas sabe menos do que eu/porque a vida só se dá/pra quem se deu/pra quem amou, pra quem chorou/pra quem sofreu, ai".
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É, pessoal!, o antigamente sublime e quimérico nunca poderá voltar, até porque ele bem possivelmente não foi exatamente assim como dita ao nos dizer nossa memória que nos exibe um pretérito teatralizado de recordações impecáveis. Resta-nos o consolo, contudo, de saber que se o ontem não foi lá tão perfeito assim, por sua vez sinaliza que algo nos foi bom, mesmo que eu fosse (quase) feliz e não soubesse. Fica apenas uma pergunta que agora me faço: será que atualmente sou feliz e só saberei na posteridade?

Joaquim Cesário de Mello