domingo, 29 de janeiro de 2017

O MEIO, O FIM E O COMEÇO

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Sim, ainda é tempo de um restinho de férias; ao menos de férias escolares/acadêmicas. Pra muitos época de sol, praia, campo, viagens e badalações várias. Pra outros cuja existência profissional excede as paredes colegiais, assim como eu, a vida continua com certas rotinas diárias. Porém com a folga da docência abriu-se algumas janelas temporais cotidianas. Em parte utilizei-as pra ver um tanto do cinema que se faz por aí além das cercanias hollywoodianas dos shoppings e praças afins. Nada de cinemão. Vou à cata dos alternativos e dos independentes. Convencionou-se chamar filme independente aqueles que são produzidos fora dos grande estúdios da indústria cinematográfica, geralmente realizados com baixo orçamento. Há algo de underground neles e isso, particularmente, me atrai. Aliás, janeiro é mês do Sundance Festival de Cinema. Fiquem ligados.
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Nesta atual temporada de caça encontrei despretensiosamente Too Late. Filme de estréia de Dennis Hauck, cuja trama é urdida de forma não linear (quem é acostumado ao estilo hollywoodiano vai estranhar e zonzar). Com certo estilo noir meio trash Too Late é fracionado em cinco partes de 22 minutos cada, rodado em 35 milímetros techniscope, sendo que cada parte é filmada sem cortes (plano-sequência). O ardil estilístico é curioso e inteligente. O movimento de câmera passa a ser agradável e inusual. Seduz-me o maneirismo engenhoso e bizarro com que é tecido filmicamente a textura narrativa visual da história.
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No início do século XX surgiram revistas de papel barato (pulp paper) geralmente dedicadas às crônicas policiais e histórias de ficção científica. Tais folhetins ficaram conhecidos em inglês como pulp fiction, expressão esta que chegou até nossos tempos graças a um filme de 1994 de Quenti Tarantino de mesmo nome. Em Pulp Fiction - Tempo de Violência Tarantino também quebra o ordenamento cronológico da história. Too Late, por sua vez, parece beber em fontes pulps e brinca com estereótipos dos filmes policiais americanos. A aparente desconexidade dos diálogos no aproxima da fronteira entre o coloquial supérfluo e o absurdo. Some-se a isso tudo uma certa dose de esquisitice e bizarrice e temos um coquetel insólito com leve sabor tarantiniano. Não sei se Tarantino é fonte onde Hauck bebeu, mas que há uma certa simulação e presunção com ele lá isso tem.
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O recurso da fragmentação do enredo e narrativa não é novo no cinema, nem teve início com Tarantino. Montar e desmontar o tempo cronológico de uma história faz com a obra cinematográfica seja um outro filme dentro do mesmo filme. Um quebra-cabeças vai se armando, peça por peça, e o que era pra ser começo é o meio, o meio é o fim e o fim pode ser o começo. Nos últimos anos o diretor Alejandro Iñrritu e o roteirista Aguillermo Arriaga já fizeram isso com Amores Perros, 21 Gramas e Babel. Too Late segue a linha com a desagregação de um texto único em cinco tiros (sub-textos) em singulares planos-sequência. Legalzinho para uma tediosa pseudo-férias. Acho que vale a dica, a conferir no canal Netflix. Enquanto isso, abaixo, o trailer original em inglês;


Joaquim Cesário de Mello

domingo, 22 de janeiro de 2017

A alma da pré-historia

Há uma passagem em um  texto de Nelson Rodrigues que conta que, quando conversava com o dramaturgo Oduvaldo Viana Filho - o criador da série “A Grande Família” - o jovem Vianinha teria dito, melancólico,  que o teatro estava com os dias contados. Nelson, irônico, diz aos amigos que o teatro “inventou” de acabar logo nos tempos de Vianinha, e ainda, para atender seus caprichos.
Sou meio cético com os pensadores do “mundo contemporâneo”. Não que eles estejam errados em suas teses, mas acredito que talvez exista algum exagero na visão não “essencialista” do humano, e por essa razão, veem como se estivéssemos muito, mas muito longe de nossos ancestrais,  no longo percurso da história da humanidade.   Somos sim diferentes dos nosso ancestrais egípcios, dos gregos ou dos romanos, e dos diversos povos que dominaram o planeta, mas isso não nos tira alguns elementos que se cruzam minimamente e mantém algo de   essência, ou de ao menos mais duradouro, no ser humano - características  gerais, não só biológicas,  mas comportamentais, que perduram desde que fomos elevados à categoria de homo sapiens.   Feliz ou infelizmente, suponho que  não nos desprendemos completamente de nossos antepassados.   Os teóricos da  contemporaneidade, contudo, relativizam praticamente tudo, sob a hipóteses de que somos constituídos por  eventos de construção social.

Pois bem, mantenho o ceticismo e ser cético, não necessariamente, me põe em posição contrária a esses discursos. Concordo com muitas opiniões, contudo, eventualmente, acho uma ou outra declaração  de alguns entusiastas no mínimo ingênuas. Vi, por exemplo,  um psicólogo, de certo reconhecimento, dizer que somos completamente diferente dos nossos avós…”somos um novo sujeito”, concluiu.  Posso até concordar que mudanças ocorreram e certamente  ocorrerão, mas, francamente, quando falamos de fatos que ocorreram há quarenta anos, tendo como parâmetro  uma existência de milhares de anos, chego a pensar que nós tendemos a pensar o mundo como se ele tivesse a idade de nossos parentes - um pouco mais, um pouco menos.  Quando se usa a referência de quarenta, cinquenta ou cem anos, talvez estejamos falando de um grão de areia  em   uma extensa praia. Só para se ter uma ideia, supõe-se que temos o mesmo arcabouço  biológico há pelo menos  150 mil anos.  O Homo sapiens sapiens, assim mesmo dito duas vezes (como preferem falar os estudiosos de pré-história) ,tem o mesmo padrão de funcionamento biológico do sujeito que acabou de atravessar a rua compenetrado com um smartphone .  Quais são as características desse funcionamento: nos afastamos do mundo animal, incorporamos  a religião ou o misticismo, trouxemos a criação artística e a ciência ao nosso cotidiano.   Até hoje carregamos esse baú pesado que, penso estamos longe de largar.

Para quem tem interesse  em saber um pouco mais desse longo capítulo de nossa história remota, recomendo o livro A Pré- história da Mente de Steven Mithen. É um verdadeiro estudo arqueológico da mente humana desde nossos ancestrais.  Esse texto  tenta explicar a evolução da mente mais arcaicas dos primeiros hominídeos,  que tinham a mente dividida em módulos cognitivos, até a  mente  integrada do homem moderno. O livro se utiliza de vários elementos de informações arqueológicas para se construir uma teoria evolucionista da mente moderna e de como chegamos a essa complexidade no largo percurso da pré-história. A mente moderna, propõe o autor,  está preparada naturalmente ao pensamento artístico, ao religioso e ao científico - tudo ocorre em razão da aquisição da linguagem - um processo bastante complexo, aliás. o resultado disso é que nossa mente é constituída de crenças - única característica que, de fato, nos diferencia da mente de outros animais.

Desconsideramos - e isso suponho que faz parte do nosso incorrigível narcisismo -  o longo tempo que antecedeu a história da civilização. Temos uma tendência, igualmente narcísica, de nos horrorizarmos com as mudanças de alguns padrões sociais. Mas... Sejamos modestos: continuamos na “essência” (pura provocação) os mesmos seres que vieram ao mundo a primeira vez há de 150 mil anos. falar de 40 anos atrás é ridículo. Talvez se dermos o valor necessário as informações que a pré-história tem a nos trazer, possamos construir uma teoria psicológica que, em parte, dê conta de uma subjetividade não tão volátil, mas do campo do “perfeitamente ou demasiado humano”. O autor nos adverte: “se quiserem conhecer a mente humana, não procurem apenas psicólogos ou filósofos, certifiquem-se de também procurar os arqueólogos”.

Marcos Creder

domingo, 15 de janeiro de 2017

AS HORAS TERMINANTES

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Em O General e seu Labirinto Grabriel García Márques narra os últimos meses de vida de Simón Bolivar. Dilemas pessoais, amorosos e político se misturam nestes últimos instantes daquele que ficou conhecido como "o herói latino-americano". Além do mito García Márques nos expõe um ser humano frágil, envelhecido e contraditório. Trata-se de um livro sobre a descida ao inferno de um personagem real literariamente desnudo como uma espécie de um cavaleiro de triste figura, um Dom Quixote Marqueseano. No cinedocumentário Allende em Seu Labirinto, dirigido por Miguel Littin, algo de análogo se processa, dada as devidas proporções. O Allende apresentado é heroico quase homérico. Em meio ao desespero de suas últimas horas, cercadas de traições, insídias e intrigas, há também espaço para a lealdade, a dignidade e a integridade de princípios e valores. Por vezes caricato e com falas clichês e personagens estereotipados - como é muitas vezes comum em docudramas - Allende em Seu Labirinto vale mais pela curiosidade e desvelar histórico do que um grande filme. Pelo contrário, é um filme menor com uma grande história verídica, mas que serve um pouco para imaginar o quão devem ter sido elevadamente tensas, confusas, agoniantes e aflitivas as ansiosas horas terminates.
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Salvador Allende foi na minha adolescência e começo de juventude um mito e um nome proibido. Talvez tenha sido mais mito exatamente por ter sido proibido. Presidente eleito do Chile (entre 1970 e 1973) em plena guerra fria entre capitalismo x comunismo, Allende era um político marxista e foi o primeiro chefe de estado socialista da história da América do Sul. Diferente de Fidel Castro e Che Guevara, que acreditavam na instauração do socialismo pelo uso das armas, Allende confiava ser possível chegar ao socialismo pela via democrática. O seu estreito tempo de governo ficou conhecido como a via Allende para o socialismo, Nacionalizou bancos e minas de cobre (principal riqueza chilena) e tentou uma ampla reforma agrária no país. Pressionado pela oposição de direita e, principalmente, pelos Estados Unidos (governo Richard Nixon) criou-se aos poucos um cenário político-econômico propício a um golpe de estado militar. E foi o que aconteceu em 11 de setembro de 1973.
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11 de setembro de 1973 começa para Allende às 6:20 hs. com o tocar do telefone e sendo avisado que a Marinha se sublevou a partir do porto de Valparaíso. Uma hora depois Allende vai ao palácio presidencial (La Moneda) empunhando um fuzil Ak-47, presente de Fidel Castro, com vistas a resistir. E assim o filme Allende em Seu Labirinto e a roda da história se inicia naquele hoje distante 11 de setembro de 1973.
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"Não vou renunciar¹ Colocado numa encruzilhada histórica pagarei com minha vida a lealdade do povo. E lhes digo que tenho a certeza de que a semente que entregaremos à consciência digna de milhares e milhares de chilenos não poderá ser ceifada definitivamente. Eles têm a força, poderão nos avassalar, mas não se detém os processos sociais nem com o crime nem com a força. A história é nossa e fazem os povos", discursou pela última vez Allende através de uma estação de rádio às 10:10 hs. de 11 de setembro de 1973. Menos de uma hora depois começa um dos episódios mais dantescos e tetricamente surreal que pode presenciar minha geração à época: o bombardeio ao Palácio La Moneda.
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O significado de labirinto é uma intricada combinação de corredores e/ou passagens onde é difícil encontrar a saída. Labirinto também significa uma coisa complicada, confusa, de difícil solução. Simbolicamente labirinto é enredamento, e é isto que o filme em questão aborda: o novelo em que o governo de Allende se emaranhou. Politicamente o destino do mesmo caminhou para a tragédia. Porém a tragédia gerou uma desgraceira violenta: um dos golpes de estado mais violento da América Latina e a longeva ditadura de Augusto Pinochet. (1973-1990). "Posso escrever os versos mais tristes esta noite", versou certa vez o poeta e Nobel de Literatura Pablo Neruda, que veio a falecer doze dias após o golpe.
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Polêmico em sua versão dos fatos Allende em seu Labirinto tem uma narrativa clássica que se desenvolve linearmente em um ambiente claustrofóbico cuja tensão se eleva a cada minuto. Não é um filme de entretenimento, nem muito menos de lazer dominical, porém uma análise da trama política de um jogo de traição e sedição. Tem o mérito de ofertar aos jovens de hoje uma significativa parte da história que lhes antecedeu, possibilitando, assim, que a história do amanhã não repita em farsa o que o ontem vivenciou como tragédia.

Joaquim Cesário de Mello