quarta-feira, 28 de maio de 2014

VALE A PENA VER DE NOVO

Encerrado mais um semestre letivo, aproveitaremos o espaço das quartas-feiras para reeditar antigos textos dos colaboradores e dos coordenadores deste blog que já tem mais de dois anos de vida. Vida longa, pois...

(editado originariamente em 21/04/2013)

O HOMEM ÀS AVESSAS


     




     O poeta é por natureza um psicólogo e o psicólogo é por ofício um poeta. Ambos buscam o por detrás das aparências, o profundo das superfícies. Ambos perscrutam o significado indelével e indizível das subjetividades e a desnudez dos sentimentos ocultos. Ambos xeretam o interior das coisas e no encontrar do impalpável transformam espanto em palavras, gestos e versos. Ou como escreve Mário Quintana, "ser poeta não é apenas dizer grandes coisas, mas ter uma voz reconhecível dentre todas as outras”. Seria diferente com o psicólogo? Afinal, ambos, são como nos dizeres de um outro poeta, Paul Éluard: "muito antes é poeta aquele que inspira do que aquele que é inspirado”. Ou o que nos ensina Jung não é pura poesia? (ou seria pura psicologia?): “Quem olha para fora sonha, quem olha para dentro desperta”.
                Ah, esses poetas e esses psicólogos! Entendem como poucos ou como ninguém que o homem, embora queira ser de ferro, é feito de carne e sonhos. E mais uma vez vou à procura de Jung, principalmente quando esclarece e afirma: “Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana”Ah, como queria ser mais poeta! Ser mais psicólogo e ser mais eu do que eu! Passar de mim e ir às nuvens e conversar com meus anjos. Ah, por que não sou mais poeta? Por que não consigo ser mais psicólogo? Sou tão limitado de mim que chego até me assombrar dos profundos que desconheço. Cá dentro, onde rarefeitamente me visito, entendo o que canta Vinicius quando canta: “quem já passou por essa vida e não viveu/pode ser mais, mas sabe menos do que eu/porque a vida só se dá pra quem se deu/pra quem amou, pra quem chorou, pra quem sofreu.
                Sim, triste é aquele que vive sem poesia, pois não conhece a psicologia da vida e assim não vive, somente sobrevive. Quero a loucura lúcida de que fala Quintana, pois é certo, como diz Shakespeare, que “enquanto houver um louco, um poeta e um amante haverá sonho, amor e fantasia. E enquanto houver sonho, amor e fantasia, haverá esperança”. E a esperança – lembra-me Aristóteles – é o sonho do homem acordado.
                Ah, Deus, dê-me o arder da claridade na retina dos olhos ao invés do assossego acomodado e quieto das sombras. Quero escapar das cavernas platônicas e quero escutar o silêncio inquietante das pulsões - as vivas e as mortas. Deixar de lado o cotidiano e perambular tateante os corredores desiluminados do tempo, e me encontrar ali – eu e você – onde o tempo não tem tempo, e juntos nos abraçar em um abraço sem fim, tão infindável quanto o mais desejante dos desejantes desejos.
                É, Freud já sabia. Ele mesmo reconhece e afirma que “aonde quer que eu vá, eu descubro que um poeta esteve lá antes de mim”. Não há nada mais poético, pois, que ser psicólogo. Não o psicólogo burocrático, um barnabé da ciência, mas aquele que se depara com o verso quando enxerga e apalpa a alma. É no encontrar dos espíritos que o humano se revela. E é lá, onde minha alma toca a alma alheia e esta a minha, que nasce um poema. Se assim não fosse não versaria Florbela Espanca que ser poeta é “morder como quem beija”.
                Em psicologia se busca mais do que o sentido do que se pensa e das palavras, procura-se, feito quem cata, o sentir e seus sentimentos. O homem em toda sua humanidade é posto como que de cabeça para baixo. É adentrar através da alma como quem atravessa espelhos, seguindo coelhos. E assim o que é frugal se torna denso, o que é prosaico se torna homérico, o que é matéria se torna etéreo e o que é rasteiro e pedestre se transforma em assombro, sumo e espanto. Faz-se psicologia como quem converte prosa em verso. Assim, tanto o poeta quanto o psicólogo propõem a conversão do olhar.
               Para os gregos antigos a verdade se chamava Alétheia, e Alétheia é desvelamento. Não é à toa que a influência helênica na Bíblia é vista quando se afirma“e conhecereis a Verdade, e a Verdade vos libertará”, pois os gregos da antiguidade tinham em sua mitologia o rio Lete, em cujas águas quem delas bebesse ou tocasse experimentariam o total esquecimento. Também sequer é à toa quando Santo Agostinho em sua retórica platônica nos ensina: “não queiras sair para fora; é no interior do homem que habita a verdade”.
                O mistério só é mistério quando dele se desconhece. O pensador e poeta Níkos Kazantzákis nos fala sobre o andar inseguro por meio do invisível:
“Ouço uma ordem dentro de mim:
- Cava! Que vês?
- Homens e aves, águas e pedras.
- Cava mais! Que vês?
- Idéias e sonhos, relâmpagos e fantasmas.
- Cava ainda mais! Que vês?
- Não vejo coisa alguma! Só a Noite, muda e espessa como a morte. Deve ser a morte.
- Cava, cava!
- Ai, não posso atravessar a muralha negra! Ouço vozes e prantos, ouço bater de asas do outro lado!
- Não chores! Não chores! Não é do outro lado! As vozes, os prantos e o bater de asas são o teu coração!"

O que é, pois, do homem que não olha a vida com olhos de poeta? O que ele vê quando vê uma folha caída de uma árvore? Uma folha caída de uma árvore. O que ele vê quando vê um óculos esquecido em um sofá? Um óculos esquecido em um sofá.  Ou quando vê um outro chorando? Uma pessoa chorando. É isso o que ele vê: fenômenos e coisas, tão somente. Carece ele enxergar sentindo o imóvel e invisível que se esconde por detrás do evidente transitório da existência e de seus conteúdos. Os sutis e finos cordéis que nos movimentam e nos movem são imperceptíveis aos olhos do corpo e da face. É necessário ser poeta, filósofo e psicólogo (ou tudo isso junto e algo mais) para atravessar o árido deserto das aparências e encontrar o oásis encoberto da vida que só a alma pode encontrar.
                E por não querer ser um poeta de um mundo caduco, como dizia Drummond, vou ao quarto ao lado para de soslaio observar a mulher que dorme na cama junto ao espaço do meu vazio, e vê-la ali, absorta em seus sonhos, não como um corpo coberto de fronhas e lençóis, mas como puro sentimento.
                Ah, como queria ser mais poeta! Transformaria esta visão em poesia, e meus afetos em minha mais própria e mais íntima psicologia

Joaquim Cesário de Mello

domingo, 25 de maio de 2014

Psicopatologia é o Tema

Um dos instrumentos mais importantes para o jovem estudante de psicologia e de medicina, que estão estudando o sofrimento humano, é o conhecimento de psicopatologia. Existem várias formas de se pensar a psicopatologia, desde as formas mais  descritivas,  influenciada por psicopatologistas da fenomenologia alemã, às mais compreensivas de influência da psicanálise.  A primeira, a Psicopatologia Geral, aprofundada por teóricos bastantes influentes no meio psiquiátrico, como   Kurt Schneider  e o filósofo Karl Jarspers privilegiaram a descrição conceitual de várias alterações psíquicas, hoje  um instrumento importante para a avaliação clínica do paciente com transtorno psíquico - como se sabe,  em psiquiatria, não se tem ainda algo que mensure  as alterações psíquicas - um exame, uma ‘dosagem”  qualquer -, enfim, o único instrumento que temos para o diagnóstico  é a  nossa percepção (o ouvir e o olhar)  descrevendo o fenômeno sob a forma de conceitos. Já as formas mais compreensivas tentam, por assim dizer, interpretar esse fenômeno. Para os psicopatologistas gerais, por exemplo, a alucinação tem conceito que envolve, nitidez, crença e falsa percepção, entre outras coisas, e o seu conceito se desdobra minuciosamente em várias subformas e especificidades. uma pergunta não rara: “Que importância tem isso?” ao contrário do que se pode imaginar, essas  minúcias, muitas vezes, fazem  diferenças importantes entre os transtornos psíquicos, e podem levar a caminhos completamente diverso.  Já para os psicopatologistas de influência da psicanálise, o que é mais relevante, é saber qual o sentido da imagem percebida - a imagem alucinatória. essa forma de entendimento também é de extrema relevância. 

Desde que entrei no saber da psiquiatria  que percebi que esses dois territórios, psicopatologia geral e psicanalítica, dificilmente dialogavam.  Com raras exceções,  ou se era de um lado ou se pensava de outra maneira.  Na verdade, não havia apenas a falta de diálogo, mas um litígio entre os saberes, algo que chegava ao sectarismo, como se esses saberes divergentes fossem  crenças a serem defendidas com o respaldo apenas do desejo de defender.  Sempre pensei de modo diferente: essas  duas formas de entendimento apesar de aparentemente excludentes, são na verdade colaborativas. O que cria uma tensão, muitas vezes, é a forma que esse saber foi construído. A psicopatologia de Jaspers, por exemplo, vem da experiência de observação de graves pacientes hospitalizados, enquanto a psicopatologia freudiana, deu-se, pelo menos de início, em casos de neuroses menos graves, e por essa razão, estava mais perto do mundo da  normalidade - parafraseando o próprio Freud, era uma “psicopatologia da vida cotidiana”, que tentava compreender o fenômeno num continum normalidade/anormalidade. A Psicopatologia Geral é um saber quase direcionado para o profissional médico, enquanto a psicopatologia psicanalítica era mais voltada para a área de humanas.


Há cerca de uma década que se tentou criar uma interlocução, entre essas psicopatologias, denominada de campo da Psicopatologia Fundamental,   com proposta de aproximação dos diferentes modos de pensar o sofrimento psíquico. A expressão Psicopatologia Fundamental foi  uma expressão cunhada pelo psicanalista francês Pierre Fèdida e, talvez, por ter vindo de um psicanalista,  provavelmente, muito provavelmente, foi um dos motivos que fizeram  esse  campo ser  desconsiderado pelos psicopatologistas psiquiatras. 

Psicopatologia da Vida Quotidiana  «€10.00»Um fato que agrava ainda mais  essa situação é que, acrescenta-se a esse conflito que expus acima,  um terceiro complicador  que julgo ser de imensa gravidade. Há uma tendência de parte dos jovens iniciantes em desconsiderar tanto um saber quanto o outro, e   se apropriar de instrumentos mais simplificados como os manuais de diagnósticos e escalas de avaliação.  Esses instrumentos que vem sendo popularizado no meio “psi”, foram idealizado para facilitar o diagnóstico em psiquiatria e dar um formato mais objetivo ao sintoma psiquiátrico. Na verdade, foram concebidos para instrumentalizar pesquisas e padronizar diagnóstico, mas nunca se propuseram a  substituir o ensino da psicopatologia. No entanto, o que vem cada vez mais se observando são novos profissionais que desconhecem as Escolas descritivas e/ou  compreensivas, e partem para um critério avaliativo superficial, com tentativas vagas e infrutíferas  de mensurar e de objetivar o fenômeno psíquico. O resultado disso: o alargamento do já distante universo da subjetivação - um fato que já se observa, em parte, de outras áreas da medicina.

Hoje se vê, guardando as devidas proporções, poucas publicações em psicopatologia, eventualmente se encontra aqui e ali, um ou outro texto resumido, ou  esquemáticos. Mas no meio dessa aridez, na contramão dessa tendência   tive a boa surpresa de ler um livro que será lançado no sábado, dia 31 de Maio, na FAFIRE. No livro “Temas de Psicopatologia” do psiquiatra Ivo Rosas,  pode-se observar um resgate à leitura de uma psicopatologia como era descrita pelos clássicos e, acrescenta-se ainda, graças a longa experiência de docência do autor, uma explanação minuciosa com vários relatos de vários casos ilustrativos. Esses casos, muitos inclusive, personagens da literatura ou do cinema, fazem da leitura do livro ainda mais agradável e prazerosa - fato raro em textos  de psicopatologia.  Esse destaque dado ao cinema e a ficção é de extrema relevância, uma vez que observamos cada vez mais produções que envolvem algum tema do sofrimento psíquico. O livro não se propõe a ser  um manual de psicopatologia geral, pois trata apenas de alguns temas dessa área do conhecimento, e esse fato, fez com que os conceitos de funções e alterações psíquicas fossem mais aprofundado mais bem descrita e incansavelmente ilustrativo.  apesar de,  como diz o autor ,ser um apanhado de vários autores e conceitos já consagrados da psicopatologia,  o texto não perde a originalidade, pois a forma como escrita reconstrói a didática e aglutina saberes das funções psíquicas estudadas. Recomendo

Marcos Creder