domingo, 17 de setembro de 2017

Tirem as crianças da Sala: sobre o cinema nacional PARTE II

Em um dos artigos publicados na década de 1960, o dramaturgo Nelson Rodrigues escreveu que estivera em São Paulo com os amigos Otto Lara Rezende e Hélio Pellegrino para assistir uma apresentação de uma de suas peças. Disseram-lhe na ocasião que o teatro paulistano apresentava releituras extraordinárias, inusitadas e inteligentes de peças consagradas, inclusive do teatro clássico. Nelson, após a apresentação, confuso e atônito, não  conseguia reconhecer a  sua peça, somente  o esmagamento do seu texto -  que como soube depois foi uma  reestruturação de sua peça construída pelo diretor e pelos atores, todos cultos e inteligentes. Angustiado, o dramaturgo desabafou: sejamos burros.

Algo semelhante ocorre com o cinema nacional. Na verdade, somos muito pretensiosos e supostamente inteligentes na nossa produção cinematográfica - beiramos à arrogância e a arrogância tem poucos serviços a prestar à arte.  Nossos filmes são intimistas, silenciosos, complexos, “cabeças”, com intencional desejo de  provocar inquietações e reflexões geralmente as mais dissonantes e escabrosas - algo, aliás, muito bem vindo quando a provocação funciona. Somos, contudo, muito infantis para isso.  Se Lars Von trie, ou Haneke conseguiram ter sucesso com cenas de maior crueza, ou de maior polêmica, nossos diretores tendem a não obter mesmo sucesso, pois nossas cenas, pela má construção, são poucos convincentes, algumas vezes desnecessárias. Vejamos uns exemplos.

No filme Dogville de Von Trie, mostrou-se várias cenas de estupros, que apesar de gerar repulsa no espectador, incorporou a ideia do enredo de que a cena se prestava  a desvelar a crueldade, não só daquelas pessoas, mas da humanidade. Recentemente no filme Aquarius duas cenas - menos agressivas que um estupro - quiseram trazer à tona ideia de semelhante crueza,  mas foram percebidas (corretamente) pelo público  como apelativas - muitos julgaram pornográfica, eu, particularmente, achei-as engraçadas. engraçadas por quê? Porque em todo momento que se tenta exagerar no elemento  trágico ou no grotesco, o cômico,com sua leal pastelança, atravessa-se na frente - aliás, é muito comum cenas de ação do cinema nacional se desdobrar em aventuras semelhantes às  de Didi Mocó e Os Trapalhões. Percebi que o diretor de Aquarius quis, por si só, chocar, sem que houvesse uma harmonia entre a intenção do filme e o seu desejo particular. As cenas são de um casal transando na praia de boa viagem, vista da janela da protagonista e um rendez vous, uma orgia sexual realizada no apartamento vizinho, maquinada pelos seus inimigos.

Aquarius é um desses filmes que mostra exatamente a situação que se encontra nosso cinema. Aliás, foi premiado e ovacionado pela crítica nacional e internacional. Isso, contudo, não impede que eu tenha lá minhas ressalvas. Depois que Bob Dylan ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, sinto-me  autorizado a não ser tão cauteloso ou ter tanto respeito às academias.  O roteiro de Aquarius circula entre o discurso politicamente correto, o maniqueísmo e a infantilidade ideológica tendo como pano de fundo a expansão imobiliária da cidade - aqui não discuto o fato de trazer ideais de esquerda, pois poderia ser, seguindo a mesma batuta, uma precária produção de direita - confesso, no entanto, que tive, mais uma vez, vontade de rir nas cenas  em que o cenário  do Recife assemelhou-se à uma nova versão de Buena Vista Social Club,  dando ao  Recife uma atmosfera  cubana, especialmente, na miséria - por um outro momento, pensei ouvir pessoas falarem castelhanas.

Os  personagens de Aquarius, caricatos e clicherosos, seguiram a receita dos filmes maniqueístas, que costumam problematizar a eterna luta entre  o bem e o mal. As produções comerciais norte-americanas estão repletas de filmes parecidos.   Podemos dividir Aquarius em duas grandes personagens: a personagem  principal, a pessoa do bem, representada por uma senhora de classe média, solitária, mutilada por uma mastectomia, amargurada com as suas precárias relações afetivas - algo impulsiva, no entanto. O  outro personagem  são os outros - assim mesmo em plural - são os personagens que representam  o mal,  são os “tubarões” da construção civil, os donos e funcionários das grandes construtoras - sujeitos de extrema ruindade e de desejos cruéis, oriundos do capitalismo inescrupuloso (no filme, todas as palavras dessa última frase são redundantes).

O diretor acreditou que a metáfora  da divisão da praia entre o bairro de Boa Viagem e o bairro do Pina, separados por cano de esgoto, como a sua  grande sacada, o seu grande trunfo para mostrar uma cidade dividida entre o lado rico e o lado pobre, lado capitalista e o lado não capitalista, o lado do  mal e o lado do bem. Desse modo, essa dicotomia revelaria o Recife e suas tensões sociais. Achei, contudo, esse argumento meio bobo, a própria protagonista morava no lado do Pina, supostamente o lado mais pobre e não deixou de sofrer severas retaliações  dos interesses capitalistas da expansão imobiliária. Além do mais, não podemos classificar a solitária senhora como pessoa miserável. Longe disso, vivia de aluguéis de apartamentos nada modestos. Se o objetivo de Aquarius foi trazer discussões cabíveis - apesar de não gostar de filmes pedagógicos - teria formas mais criativas de fazê-las. O Recife e as pequenas metrópoles  tem grandes questões a serem aprofundadas, incluindo questões relacionadas a  ocupação  do espaço urbano e as desigualdades sociais.   Aquarius, no entanto, não soube ocupar adequadamente esse espaço de discussão, preferiu o discurso caricato e o  proselitismos adolescentes.

Por falar em adolescentes, ou melhor em crianças, um outro filme me veio à mente enquanto assistia ao drama pernambucano. Up: Altas Aventuras, um filme de animação, pouco pretensioso e mais burro, muito mais burro, como diria Nelson Rodrigues, que Aquarius. A animação que explora os mesmos temas, aluta entre o bem e o mal e a chegada da expansão imobiliária.  no caso de Up as soluções são fantásticas, para fugir dos seus inimigos o protagonista, idoso de 78 anos, literalmente decola numa aventura magica e sem precedentes.  Muitos, na ocasião, questionaram se “Up” seria um filme dirigido ao publico infantil, haja vista seu tônus melancólico. pergunto-me, Aquarius seria um filme voltado aos adultos?

Guilherme Leão        

Há m

domingo, 10 de setembro de 2017

A PERFEIÇÃO IMPERFEITA






                  Ninguém é perfeito, dizemos isto, sabemos disto. Todavia vivemos aqui e acolá cobrando certas perfeições dos outros, da vida e de nós mesmos. Realmente ninguém é perfeito.
Perfeição pode ser definida como ausência de erros, falhas ou defeitos. Ideal? Sim, pois somos seres idealizantes. E idealizamos a perfeição porque temos ciência da imperfeição que nos acomete. Ou como escreve Fernando Pessoa: "nasce o ideal da nossa consciência da imperfeição da vida. Tantos, portanto, serão os ideais possíveis, quantos forem os modos por que é possível ter a vida por imperfeita. A cada modo de a ter por imperfeita corresponderá, por contraste e semelhança, um conceito de perfeição. É a esse conceito de perfeição que se dá o nome de ideal.".

Sim, no fundo no fundo idealizamos a perfeição. Buscamos a perfeição, cobramos perfeição, cobramo-nos perfeitos. Alguns menos, outros mais. E outros, ainda, até demais. São destes últimos - o que almejam a perfeição mais perfeita - que dedicaremos as linhas abaixo. Falo das personalidades organizadamente anancásticas. Anancástico é um termo que se refere à preocupação obsessiva, razão pela qual são também denominadas de personalidades obsessivas-compulsivas. 


Tem gente que confunde um transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) com uma personalidade obsessiva-compulsiva. No TOC as ideações obsessivas e os comportamentos compulsivos são egodistônicos, isto é, são aspectos que contradizem à própria pessoa. A pessoa os sentes como algo estranho a si e querem se livrar disso. Já a personalidade obsessiva-compulsiva é egosintônica, isto é, tais aspectos são sentidos e percebidos como fazendo parte do ser da pessoa, do seu jeito, e não lhes perturbam. A atividade mental, assim, está em sintonia com o ego ou, em outras palavras, em consonância com a imagem que o sujeito tem de si próprio. Isto posto, continuemos...


Uma personalidade, qualquer ela, é um conjunto de características que marcam uma pessoa. Tais características psicológicas formam um consistente padrão de comportamento, maneira de pensar, sentir e agir que são recorrentes ao longo do tempo. Uma personalidade, qualquer ela, é formada gradualmente pela combinação e interação de vários fatores, tais como a história de vida, a genética, a relação com o ambiente e a cultura. Quando tais padrões se tornam rígidos, inflexíveis e permanentes independente do contexto, falamos, então, de um transtorno da personalidade. A rijeza caracterológica leva o sujeito a um conflito de ajustamento, resultado de um prejuízo adaptativo e causando nele mesmo e nas pessoas que lhe estão mais próxima incomodação e sofrimento.

Uma pessoa cuja maneira de ser, pensar e agir gira em torno do perfeccionismo se neurotiza ao se sentir constantemente insatisfeita com seu desempenho nas várias esferas da vida. É diferente de alguém que se esforça para fazer as coisas bem feitas, por exemplo, pois uma personalidade perfeccionista extrema a questão, podendo até deprimir por pequenos erros e mínimas faltas. Gasta-se, assim, uma carga emocional muito grande ao se buscar freneticamente a excelência. O perfeccionismo em seu exagero se torna um problema, ou é ele mesmo um problema, visto que o EGO IDEAL cobra do EGO REAL metas inatingíveis e na frustração de não conseguir corresponder ao incorrespondível gera ansiedade e sentimentos depreciativos e depressivos. 

Para se sair da escravidão do perfeccionismo que o psiquismo se colocou é necessário de início aceitar e compreender que seus padrões de cobrança são bastante elevados e que, muitas vezes, podem ter raízes infantis. É, possivelmente, um trabalho mental de longo prazo, pois vida transformar o que antes era egosintônico e egodistônico. 
O desejo humano de perfeição se não for bem manipulado e manuseado pelo EGO vem a se tornar um inimigo pessoal interior. Há uma batalha interna do si consigo mesmo. Em termos psicodinâmicos entre o SUPEREGO (em seus aspectos auto-idealizantes) e o EGO. 

O nível de ansiedade de uma pessoa perfeccionista é elevado, visto ele não conseguir cumprir seu exagerado padrão de exigência. Com isto ele(a) pode deixar de fazer muitas coisas pelo medo de errar. Do ponto de vista cognitivo há uma formação de pensamento rígida que lhe dificulta o processo adaptativo a diversas e diversificadas situações. Pessoas que pensam que somente serão aceitas e/ou amadas sendo perfeitas tendem a sentir ansiedade e vergonha e, assim, apresentarem um comportamento ou evitativo ou esforço por fazerem tudo de maneira perfeita. Qualquer mínima ocorrência de algo que dê errado passam a se culpabilizarem por não terem sido perfeitas. Vê-se aqui uma predominância do pensamento onipotente sobre o Self e o campo perceptivo. A necessidade de estar no controle absoluto de sua vida é, inevitavelmente, desestabilizador frente a qualquer situação onde não impere sua ânsia patológica de segurança plena. 

Aceitar as imperfeições da vida e de si mesmo, evidentemente, é o grande passo para atenuar o alto nível de sofrimento psíquico. Para tal é necessário compreender os motivos que levam ao comportamento perfeccionista e admitir que o perfeccionismo não é uma qualidade, porém gerador de dificuldades. Seja lá qual for a raiz de cada um, a base sempre é uma baixa autoconfiança. Educação autoritária, superproteção, pais perfeccionistas, várias podem ser as influências ambientais ao desenvolvimento de uma personalidade obsessiva a partir da infância. A história pessoal de cada um revelará.
Resultado de imagem para imperfeição humana

Não somos perfeição, sabemos. Ninguém é perfeito, dizemos. A própria busca da perfeição denota a mais pura imperfeição. Fico mais uma vez com as palavras do poeta Fernando Pessoa, principalmente quando diz que "adoramos a perfeição, porque não a podemos ter; repugna-la-íamos se a tivéssemos. O perfeito é o desumano porque o humano é imperfeito". Talvez por isso, também, esteja certo o escritor inglês Oscar Wilde ao afirmar que "não é o perfeito, mas o imperfeito, que precisa de amor". Pois é, até a perfeição tem lá suas faltas e suas imperfeições. 


Joaquim Cesário de Mello