terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

O INVISÍVEL AMOR DA DISTÂNCIA PRÓXIMA





Só ele dela sabe o cheiro. Os outros conhecem apenas seu perfume e a essência das espumas e dos sais de banho que lhe aromatizam a pele alva, límpida e branca, como branca é a neve. Ninguém, além de si, sente a fragrância das flores que seu corpo ainda jovem exala: cheiro verde das plantas e de suas imobilizadas sexualidades vegetais. Fosse ele de menos idade, bem menos idade, haveria de pronunciar seu nome no estalar da língua dos apaixonados, ao invés da boca sempre fechada, hermeticamente aprisionando sentimentos impronunciáveis. No adiamento constante das expressões, olha-a no diário dos seus dias com entristecidos olhos de monólogos.
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De onde senta, por detrás da mesa e do trabalho, observa-a passar evaporadamente como uma noite de domingo. Adora ver o deslizar de sua mão em seus cabelos compridos como se fosse dele o toque e a carícia movimentando desejos. Quisera ser as roupas que a vestem só para juntar-se ao corpo dela e abraçar-lhe com a suave fúria dos que acasalam. Não importa se é linda ou bela, já que a possui tão logo ela passa, afinal aquela iniciante mulher, que em breve também envelhecerá, ocupa-lhe o olfato e a vista na intimidade negada de uma cumplicidade incorrespondida. Pois em todo o tempo em que a presencia passar não foram mais que duas vezes que se falaram. Na primeira, ele tossiu; na segunda, gaguejou – suspiros amorosos do infeliz homem que somente ele conhece o amor. Porém, antes assim: não fosse o sonho restaria o tédio a desertificar a alma e o pouco resto de sua memória.
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O sonho o puxa para frente ao mesmo tempo em que a memória o retrai para trás. Em meio a fluxos e refluxos é ele alguém de instantes, encarcerado a um presente constantemente transitório, precário de possibilidades. Sua atualidade é o curto espaço espremido pelas virtualidades das lembranças e das expectativas em que vive seu invisível amor. Quando amanhã o atual for ontem (toda atualidade traz em si sua inatualidade e seu fim), carregará dela somente recordações de sonhos irrealizados, pois é ele igualmente, e sempre enquanto ainda existir, um ser faminto de suas tantas e tantas impossibilidades.
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Ama-lhe ele em todos os momentos dos seus momentos um incansável e silencioso amor amar de impresenças. As exterioridades inexprimem interiores onde lá, na ruidosa mudez deteriorante dos órgãos, conhece unicamente ele o fervilhar consumidor dos apaixonantes afetos. No íntimo de si não há qualquer solidão, mas a companhia infinda daquela jovem mulher que não fora do seu arbítrio desejar e com a qual ocupa-se inteiro completamente, a tal ponto que não há mais sequer lugar para outro sonho que não seja ela. Quem o presencia assim costumeiramente desacompanhado há de confundi-lo com um homem só. Não sabem eles que nas praças, ruas, praias, cinemas, restaurantes e localidades várias, encontra-se ela nele, na irreciprocidade egoísta de um sentimento amordaçadamente lacrado. Quem o olha assim costumeiramente só nunca há de saber que ali está alguém que vive acordado para dentro, como se a vida lhe fosse o oposto de fora.
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O amor dorme no coração do homem um sono de insônias, somente velado por calados pensamentos que o devoram com tamanha fome e martírio que lhe é a dor muito mais uma companheira. Ah, soubesse ela daquele tanto afeto decerto surpreender-se-ia ao descobrir, por detrás do silêncio de poucas amabilidades e diversos olhares discretos, a chama impagável a queimar o peito anonimamente oculto no desconhecido de um homem, cuja única função era estar ali, naquele obscuro canto de uma vida, amando-a com a limpidez transparente quase visível das coisas invisíveis.

Resultado de imagem para solidão, pinturaQuem sabe um dia (o que seria de nós acaso não esperássemos dias?) ela o veja enfim em sua singularidade infinda e aceite então suas mais inconfessáveis ardências. Quem sabe um dia, quando a maturidade já lhe encobrir o cheiro adocicado das flores e ele não mais estiver sentado em seu birô de anos, possa ela enxergar no habitual do seu discreto canto o vácuo deixado pela inevitável ausência, e sentir saudades daquele amor que de tão verdadeiro jamais ousou fazer-se notícia. Quem sabe um dia...

Joaquim Cesário de Mello

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

BIOGRAFIA INTERROMPIDA

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Já li em algum lugar que todas histórias de amor um dia terminam. Terminam porque o amor acaba. Termina porque a pessoa amada morre. Todas histórias de amor, assim, estão fadadas ao luto.

Resultado de imagem para perda. pinturaDomingo passado perdi um amigo. Domingo passado um amigo faleceu. É comum se dizer "ele se foi". Sim, Agamenon se foi; não sei se para o Céu dos cristãos ou para a Valhala dos vikings, mas para mim ele se foi para dentro de meu interior, lá no fundo mais íntimo e privado da minha memória onde estão delicadamente guardadas as lembranças mais estimadas e queridas. De dentro de mim ninguém as retira, nem a morte, pois as levarei para onde for, até mesmo para o infinito da minha mais completa inexistência. 

Resultado de imagem para morte, pinturaDói, dói muito perder um amigo cotidiano, até mais do que um parente ou um amigo de outrora ou distante, mesmo que eles sejam também amados. Um amigo cotidiano é um amigo do compartilhamento, é um amigo do costumeiro, da confidência e do fiar sutil e airoso do terreno gerúndico onde continuamos a edificar nossas histórias. Perder um amigo assim é como interromper abruptamente um pedaço da nossa biografia, uma lacuna que terei que levar para o resto da vida como um texto interrompido no meio de uma página incompleta através de uma involuntária reticência. Não sei o que seriam os anos a mais com esse amigo, apenas sei que seriam anos de mais histórias e narrativas biográficas. Alguma coisa se descontinuou no amanhã do meu futuro.

Resultado de imagem para amigos, pinturaAgamenon, habitual e popularmente conhecido como Aga, não era divino nem demônio. Era um homem falho, comum e incompleto como todo mundo. Com suas manias, seus caprichos e veleidades tinha lá alguns defeitos e um outro tanto de qualidades. No somatório do seu jeitão de ser era único, ímpar e singular. Em nenhum momento houve e jamais haverá um outro Aga semelhante. Ele era tão original e diferente quanto eu, e nós fazíamos um par inédito e inimitável. Não sei dizer em palavras que parelha nós fazíamos, apenas éramos camaradas e companheiros de parte de uma mesma viagem. Uma mescla quase exótica de temperamentos e diferenças distintos que deram certo. 

Resultado de imagem para amizade orientalO poeta e filósofo espanhol Miguel de Unamuno certa vez escreveu que "cada novo amigo que ganhamos no decorrer da vida aperfeiçoa-nos e enriquece-nos, não tanto pelo que ele nos dá, mas pelo que ele nos revela de nós mesmos". Sim, Aga me fez conhecer um Joaquim que não conhecia: mais gentil, mais carinhoso, mais tolerante, mais doce, mais comparsa e mais brincante. Eis um Joaquim que ele me deixou de herança. 

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Sequer sei se aqui  escrevo adeus ou até breve. Porém, seja como for a despedida ela não me é indiferente. Adeus ou até breve ambos são acenos que carregarei pela vida inteira. Como quisera ter o dom dos poetas para exprimir em versos os sentimentos e afetos que ora me confundem e se mesclam. Talvez lhe dissesse que quando for o momento da minha partida não te deixarei a saudade que agora sinto. Mas a nostalgia triste que me encobre somente existe porque construímos laços e enredos de aprazimentos e alegrias. Afinal, ninguém sente saudades de coisas ruins e indigestas, mas sim daquilo que nos foi bom e nos deu deleite. Se és um homem que deixa saudades Aga, assim o fizestes porque construísse em existência a saudade naqueles que permanecem.

Resultado de imagem para enterro, pinturaQuando por ocasião do sepultamento do meu pai declamou o poeta Audálio Alves: "Por que doá-lo ao chão e não ao vento/mantê-lo sob o solo, e não levá-lo/de quanto te faz tão mudo e desatento?// Partir da vida às rédeas de um cavalo,/dobrando às mãos o amargo da partida,/freando o eterno às curvas do intervalo." Sim, meu querido Aga, quisera ser assim tão poeta.

Para mitigar as lágrimas do meu menino digo-lhe que você se transformou em uma estrela a brilhar no céu escuro das noites claras. E quando olho pra constelação das minhas tantas ausências Aga é hoje, sem dúvida, a estrela que brilha mais próxima. 

JOCA
(Joaquim Cesário de Mello)