domingo, 18 de fevereiro de 2018

O NARCISISMO SEGUNDO ELE MESMO: UMA INTRODUÇÃO

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Comumente utilizamos a expressão narcisismo de forma pejorativa, principalmente quando queremos dizer que alguém é muito egoísta, vaidoso e com excessivo apreço por si mesmo em detrimento aos outros. Porém ao estudo do psiquismo humano o termo tem conotação e utilidade distintas. E quem deu sentido para tal foi Freud em 1914 quando escreveu "Sobre o Narcisismo: uma Introdução". Texto fundamental ao abrir novas perspectivas sobre o nosso funcionamento mental. Ao espaçar esta nova vereda Freud iniciou o desembrulhar do que é o mais substancial e medular para a constituição do sujeito humano.
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Todos nascemos narcísicos. Todos nascemos narcísicos porque a mente em seu estado primitivo sequer conhece a existência de qualquer coisa que lhe seja externo, isto é, a mente prematura tem a ilusão infantil de que só existe ela e somente ela. Embora um bebê sozinho não exista, como afirmou Winnicott, o bebê ainda não tem a percepção de sua mais completa dependência de seu cuidador (mãe). Sequer podemos falar que nos momentos iniciais do desenvolvimento psíquico haja egocentrismo, afinal, em termos psicodinâmicos, uma estrutura psíquica comparável ao ego inexiste no prelúdio da vida extrauterina. Como diz Freud, o eu não é inato e resulta de novas ações psíquicas. Considere que os instintos sexuais já existem desde o nascimento. O que irá acontecer a uma mente rudimentar em desenvolvimento é que tais instintos têm como objeto o próprio corpo e suas sensações (autoerotismo). É deste autoerotismo que se desenvolve o primeiro passo para a formação de um ego dentro da mente. Nestes termos a libido voltada a si mesma forma uma fase intermediária entre o autoerotismo e um ego capaz de se relacionar com seus objetos. Teoricamente Freud postula é que o psiquismo originariamente investe sua energia sexual (libido) em si próprio, ou mais precisamente no ego iniciante. Assim, o ego é objeto da próprio pulsão psíquica. Como diz Freud, originariamente são dois os objetos sexuais do ser humano: ele mesmo e quem cuida dele. Acontece que quem cuida dele (objeto materno) será uma descoberta psíquica gradual. É como se disséssemos que para a mente quem vem primeiro é ela mesma... e mais ninguém. 
Resultado de imagem para objeto anacliticoOs primeiros objetos sexuais de uma criança são derivados de suas primeiras experiências de satisfação vividas com as pessoas que cuidam dela. As necessidades físicas e pulsionais de um bebê se apoiam neste primeiro tipo de relação, que Freud denominou de relação anaclítica. Anaclítico vem de anaclisia que significa posição horizontal (deitada). Assim sendo, anaclítico diz respeito a forte dependência emocional. Um bebê se relaciona com seu objeto cuidador de maneira anaclítica. E é claro que o objeto cuidador, o primeiro objeto investido de libido, representa a mãe. Por isto a citada afirmação freudiana de que os dois primeiros objetos sexuais do ser humano serem ele mesmo e a pessoa que dele cuida enquanto bebê ele é ou foi.
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Para melhor compreender a questão narcísica primária Freud postula que a energia psíquica inicialmente voltada à própria mente (denominada por ele de "libido de ego") vai se transformar em grande parte em "libido de objeto", isto é, quando o psiquismo começa a perceber a existência do mundo externo e seus objetos e passa a investir libidinalmente neles. Porém isso não significa o abandono do narcisismo, haja vista o narcisismo agora haver se deslocado em direção ao objeto. Expliquemos melhor: a libido inteiramente voltada ao ego dá psicologicamente uma ilusão narcísica de onipotência, completude e perfeição (ego ideal). O ego ideal seria, portanto, a mente se achando possuidora de toda perfeição, idealização e valor. O ego ideal representa psiquicamente a grandiosidade ilimitada do narcisismo primário, ou seja, mesmo em uma mente já amadurecida o ego ideal persiste como uma instância superegóica "herdeira do narcisismo infantil". Vejamos nas palavras do próprio Freud:

"A este eu ideal se consagra o amor ególatra de que na infância era objeto o eu verdadeiro. O narcisismo aparece deslocado sobre este novo eu ideal, adornado, como o infantil, com todas as perfeições. Como sempre no terreno da libido, o homem se demonstra aqui, uma vez mais, incapaz de renunciar a uma satisfação já gozada alguma vez- Não quer renunciar à perfeição de sua infância, e já que não pode mantê-la ante os ensinamentos recebidos durante seu desenvolvimento e ante o despertar de seu próprio juízo, tenta conquistá-la de novo sob a forma do eu ideal. Aquilo que projeta ante si como seu ideal é a substituição do perdido narcisismo de sua infância, no qual era ele mesmo seu próprio ideal".

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O surgimento do amor frente aos objetos exteriores não extingue em nossa mente seu natural narcisismo. O que acontece com o amadurecimento do ego é o seu afastamento do narcisismo primário. A megalomania da vida mental infantil primeva cede espaço frente à realidade e ao princípio de realidade. A magia das ilusões mentais e a onipotência das ideias nunca é de fato totalmente abandonado pelo psiquismo que mesmo em um indivíduo adulto traz consigo o seu ego ideal e ideal de ego. Ambos são legatários mentais do narcisismo genuinamente infantil.

Resultado de imagem para ego ideal e ideal de egoHoje em nossa mente amadurecida reside resíduos daquele ego oceânico dos tempos do narcisismo primário. A isto chamamos de ego ideal. Mas igualmente forma-se na parte superegóica da mente o ideal de ego, sendo este o que herdamos de nossas identificações do período infante em relação às figuras parentais. Lembremos que uma criança não apenas idealiza seus pais, bem como seus pais de alguma forma também idealizam seus filhos pequenos. Assim, enquanto o ego ideal é a imagem psíquica da própria onipotência e perfeição narcísica, o ego ideal é consequência da descoberta mental de que não se é onipotente nem perfeito, com o consequente deslocamento da libido (antes voltada ao próprio eu) para os objetos parentais, agora narcisicamente investidos. Em minhas palavras diria, em resumo, que o ego ideal é a representação psíquica de si mesmo como perfeito, enquanto o ideal de ego é a representação psíquica dos pais (objetos) como perfeitos e que assim se idealiza ser tão perfeitos e onipotentes como os pais. Tanto o ego ideal quanto o ideal de ego estão contidos em lugares ocultos de nossas mentes nos cobrando um ideal narcísico que, infelizmente, o nosso ego real jamais poderá alcançar. À medida que o primeiro (ego ideal) "se acha" o segundo (ideal de ego) é o que se quer ser. O ideal de ego é consequência da identificação narcisista com os pais ou seus substitutos.
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Finalizamos esta pequena introdução com a definição que Laplanche e Pontalis apresentam sobre o assunto: “o narcisismo primário designa um estado precoce em que a criança investe toda a sua libido em si mesma. O narcisismo secundário designa um retorno ao eu da libido retirada dos seus investimentos objetais". Pois é, em Freud o narcisismo primário é o narcisismo normal dos primeiros tempos da mente humana que toma a si mesma como objeto de amor. Já o narcisismo posterior, isto é, o narcisismo secundário seria um retorno do investimento libidinal depositado nos objetos (mundo externo) de volta ao ego. O narcisismo secundário é o narcisismo propriamente dito que vemos em situações megalomaníacas e psicóticas. Mas isto é tema para continuarmos nossa introdução em post outro a ser publicado em breve.

Joaquim Cesário de Mello

domingo, 11 de fevereiro de 2018

Bartleby: O Estrangeiro



Os literatas costumam dizer que as histórias do mundo  já foram contadas, apenas as repetimos com pequenas variações. Os enredos originais são releituras de roteiros anteriores e esses roteiros, variantes das lendas e mitos de nossos ancestrais. Podemos, então, afirmar que não há histórias originais no mundo das artes? De fato, quantas “Odisseias”, quantos “Romeus e Julietas”, quantos “Hamlets”, quantos “Reis Lears”, quantos “Édipos Reis”, quantos “Quixotes” ou quantas “Bovarys” são reescritos na literatura. O “osso” da repetição, eterno temor dos escritores é incansavelmente roído. O escritor criativo é aquele que tenta, na melhor das hipóteses, pervertê-lo deixando-lhe algumas ranhuras, sem, contudo, fraturá-lo (a fratura desfaz o “osso” e leva consigo o enredo e seus conflitos). Quanto as ranhuras, podemos chamá-las de estilo.

Há quem, ingenuamente, se esquive do texto de Machado de Assis porque aqui e ali encontrou um personagem da literatura russa ou um formato narrativo semelhante aos de Eça de Queirós; há quem deixe de lado Clarice Lispector pos acreditar que plagiou os existencialistas, há os que escamotearam Nelson Rodrigues por inspirar-se em Ibsen. Reafirmo-lhes, contudo, que não há obras originais: Dante inspirou-se no texto de São Paulo, Virgílio em Homero, Flaubert em Cervantes, Garcia Marques em Kafka, Mary Shelley no Mito de Prometeu. Uma das obras mais importantes da literatura não tem originalidade alguma: “Fausto”. Goethe se inspirou no mito popular para escrevê-lo.  Thomas Mann, depois de dois séculos, escreveu “Dr. Fausto” acrescentando ao mito nuances e elementos literários ao mito.


Pois se não há originalidade, toda obra é plágio? Não. Plágio é cópia, é fac-simile, é “print”. A literatura precisa de estilo.  Se a história se repete, a estética acrescenta-lhe um, ou vários, pontos.

Personagens também se repetem. Um personagem não é uma pessoa, mas um mosaico de sujeitos. Não é fácil encontrar na vida cotidiana um personagem literário, pois, em verdade, eles não existem. Existem apenas como metáforas falantes. E, foi na metáfora do nihilismo, do vazio existencial, do esvaziamento do sentido de viver, que dois consagrados personagens da literatura se imitaram ou se repetiram: Bartleby (da novela “Bartleby: O Escrivão”, de Herman Melville) e Mersault ( do romance “O Estrangeiro” de Camus).

Reli estes textos e jamais havia imaginado a semelhança. As narrativas, contudo, são bem diferentes e essa diferença dará o clima, o tônus, aos textos. O texto de Melville tem como narrador um senhor advogado dono do escritório que contrata Bartleby como copista; Mersault, o personagem de Camus do “O Estrangeiro” é o próprio narrador. Bartleby está diante e em vias de confronto com o chefe, ao se portar sua passividade; o outro, Mersault, atiça o mais enigmático dos personagens: nós, os leitores.

Bartleby e Mersault são personagens que, esvaziados de desejos e plenos arrogâncias, despertam, nas suas indiferenças, um sem número de inquietações. São dois sujeitos que se unem na apatia e na insolência e, essa atitude de blasé, provoca no  narrador (em Bartleby) e no leitor (em O Estrangeiro) um nihilismo incontinenti, e escancara as portas de lugares até então encobertos pelos véus de nossas ilusões. Bartleby e Mersault são representações desse deserto de significações, são personagens e metáforas do indelével e do inefável. São mortos-vivos funcionais,  são a parte silenciosa de todos nós que, por ausência de palavras, nos angustia.

O sofrimento humano se expressa pela angústia. Angústia como sintoma, angústia como fenômeno existencial, angústia como resultado da ausência de sentido. Os conhecidos ataques de “pânicos”, de certo modo, são a manifestação dessa angústia/ansiedade - de repente, o sujeito é tomado pela ideia de mortificação ou de enlouquecimento e assiste, simbolicamente, à sumária cena do seu aniquilamento – ou como diria Kierkgaard, do seu desespero. Pois o desespero é a fronteira, o parapeito, entre a  angústia  e a morte.

E assim esses dois personagens vem  nos inquietar e nos  tirar do lugar, reservando-nos um silêncio atormentador que  nos expõe aos nossos conflitos. Seus silêncios se desdobram em ruídos ou barulhos interiores - onde terminam as palavras, inicia a imaginação.

Nelson Rodrigues num pequeno conto da "Vida como ela é" traz  um personagem igualmente silencioso, um sujeito prestes a se casar com uma jovenzinha, que, feliz, nada tem a se queixar do futuro marido, com exceção de seu jeito silencioso. A jovem mulher nos preâmbulos desse incômodo, ouve, como consolo, de uma de suas tias que o melhor marido é aquele que não fala. Ela, contudo - desculpem o spoiler - obedecendo o drama Rodriguiano, terminar por cometer suicídio, sob o argumento de que o silêncio do noivo, já marido, era-lhe insuportável e lhe gerava pensamentos atormentadores. Um deles, a ideia de que o rapaz tramava o seu assassinato. Não suportou, se matou. A angústia, mas uma vez, vem anunciar a fronteira da morte, do aniquilamento, e, antes que isso venha a ocorrer, elimina-se a morte pensada, interrompendo-se a vida.

Destemidos da ideia de vida e morte,  Bartleby e O Estrangeiro, do mesmo modo, fazem uma missa de corpo presente dos descampados da condição humana.

Marcos Creder