domingo, 30 de abril de 2017

Das inverdades de nossas lembranças

Suponho que sem memória não haveria sentimento de existência humana, também imagino que nossa existência psíquica é um dos grandes deformadores de nossas recordações. Muito provavelmente algum de nós já viveu aquela experiência de retornar para um lugar que se frequentou na infância e nos depararmos com um sentimento de decepção. O lugar da imaginação, a depender de nosso estado de espírito, parecia maior ou menor, acinzentado ou colorido, iluminado ou escuro. A decepção vem do fato de que não conseguimos ser inteiramente fidedignos com a imagem mnêmica que guardamos em nosso psiquismo. Infelizmente (ou felizmente) jamais haverá  completa fidedignidade.

Muitos estudantes ou iniciantes na área “psi” se sentem inseguros quando ouvem relatos do passado remoto de seus pacientes e não sabem julgar se seus relatos são reais ou fantasiosos. São  relatos importantes, eventualmente graves, traumáticos, alguns até passíveis de denúncias, que angustiam aquele que narra e aquele que escuta.  No entanto, para esses casos, mesmo os mais complexos sugiro, antes de tomar qualquer atitude formal ou eventualmente precipitada,  que se escute com mais minúcias esses sujeitos. Freud no final do século XIX, após escutar inicialmente tantos relatos de mulheres seduzidas pelos pais teve dois pensamentos: ou a sociedade europeia é franca e veladamente perversa, ou essas mulheres estariam mentindo. Felizmente Freud recusou essas duas hipóteses e problematizou o que veio a se desenvolver como Fantasia.     

Após se queixar de sua clínica, ironicamente, em correspondência ao amigo Fliess,  Freud disse: “não acredito mais na minha neurótica”. A lógica da descrença fez com que se  começasse a estabelecer o campo da Fantasia. Essa lógica, por assim dizer,  deu validade a uma nova forma de pensar o funcionamento da memória humana, a forma deformada que aqui julgo dominante.

Nossa memória não se restringe apenas às vivências de experiências e de condicionamentos, nem tampouco nossas recordações são armazenadas de maneira neutra ou aleatória - suponho que nem os animais com algum alguma inteligência sigam esse padrão de funcionamento que lembra os bancos de dados de um computador .  As nossas impressões mnêmicas são fortemente influenciadas por elementos catatímicos. Em Psicopatologia Geral, catatimia é o evento emocional que interfere numa determinada função psíquica - por exemplo, temos muito mais facilidade de criar ilusões sob a influência do medo.

Em geral  as situações de extremo desprazer ou de extremo prazer são fortes marcadores de recordações. Nessa nuvem prazer/desprazer encontra-se o desejo e o resultado, a Fantasia. A Fantasia é a síntese de uma recordação marcadamente subjetiva. A Fantasia lembra o conceito psicopatológico de Ilusão Mnêmica em que as recordações são deformadas por razões  subjetivas.  No entanto, de certo modo, o funcionamento do psiquismo humano é povoado por recordações fantasiosas. Esse fato fez com que a psicanálise cunhasse o conceito de realidade psíquica. Essa realidade, comandada pelo desejo, pela  privação ou pela  frustração ganha o valor de verdade para seus narradores. Mesmo que inconsistente com a realidade objetiva, a realidade psíquica  tem leis próprias, leis circulam pelo inconsciente e que tentam dar  soluções entre prazeres e desprazeres, e por fim, dar alguma vazão ao desejo - o desejo possível.  Na recordação infantil que citei acima,  deformamos as imagens de ambientes e situações em razão  do nosso desejo  em querer de volta aqueles dias que nos fizeram felizes, ou minimamente, que nos fizeram crianças.  

Marcos Creder

domingo, 23 de abril de 2017

A SUÉCIA NÃO É A SUÉCIA

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Cresci ouvindo que a Suécia tinha o maior índice de suicídio do mundo. Sim isso era fato há cerda de cinquenta anos atrás. Hoje disputam o tétrico índice a Lituânia, a Coréia do Sul e a Guiana, nesta ordem. Também cresci vendo clandestinamente as chamadas "revistas suecas" que, na verdade, eram revistas pornôs, a maioria proveniente da Dinamarca e da Holanda. Cheguei ao cinema denominado de arte primeiramente através dos filmes do diretor sueco Ingmar Bergman. A Suécia convivia, portanto, nas entrelinhas do meu desenvolvimento adolescente. A Suécia para mim era (e é) um país distante onde acreditava só existirem louros civilizados, de cultura avançada, um país rico e sem pobres e/ou mendigos nas ruas, e que em todas as casas havia nas paredes um relógio cuco. Ilusões juvenis, hoje sei.
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E eis que novamente a Suécia invade as frestas do meu cotidiano. Cerca de um ano e meio atrás magnetizei-me com um seriado televisivo sueco (precisamente uma coprodução sueco-dinamarquesa) cujo título é A Ponte, um drama policial cuja história decorre nas cidades de Malmö (Suécia) e Copenhague (Dinamarca), cuja terceira temporada inteira a Globosat levou ao ar em 2016. Øresund, este é o nome da ponte real que liga a Suécia e a Dinamarca através do mar Báltico. É nesse espaço de fronteira de clima quase gélido que vamos presenciar a clássica caçada policial aos misteriosos crimes em série que povoam o habitat dos detetives Saga Norén (pelo lado sueco) e Martin Rohde (pelo lado dinamarquês). Além das performances imanizantes dos bons atores que interpretam os personagens principais, até aí nada de mais. Contudo, a trama é bem urdida, cheia de reviravoltas bem boladas, em um ritmo cadenciado bem ao estilo europeu.
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Como pano de fundo temos a Suécia como palco central, mais precisamente a cidade de Malmö com população em torno de 300 mil habitantes. É aqui que a Suécia dos meus anos juvenis vai se desvanecendo. Ruas praticamente desérticas de pessoas, combinando com a frieza climática nórdica. A algidez ambiental perpassa para o jeito sueco de ser. Embora o excesso de politicamente correto predomine muitas vezes, nem tudo é flores por aquelas bandas. Há drogados, mendigos e sem-tetos. Parece que nem tudo é assim tão róseo quanto pensava sobre o Estado de Bem-Estar da Suécia. O padrão econômico médio geral pode ser elevado para os padrões brasileiros, porém lá também existe injustiças e disparidades sociais.
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Mesmo que o gênero investigação policial seja comum no universo televisivo, em A Ponte temos uma série com identidade e personalidade próprias. O roteiro é intrigante e instigante, mas quem rouba a cena é a atriz Sofia Helin na pele da personagem Saga. Ela dá veracidade a Saga, que sofre de uma espécie de Síndrome de Asperger. Algo autista Saga tem dificuldades significativas no trato e na comunicação social. Sua interação social é desajeitada ao ser direta, sem senso de humor e verdadeira, magoantemente verdadeira, incapaz de pequenas "mentirinhas sociais". Seu dialogar é curto e grosso, e ela não entende como lidar com afetos, afeições, toques, carinhos e abraços. Isolada em uma "bolha" de contornos autistas, ela vive exclusivamente para o trabalho, o que a transforma em uma excelente detetive. Parte da origem de sua introversão e introspecção é paulatinamente revelada ao longo das três temporadas até agora filmadas. um show à parte. Para quem gosta de adentrar na psicologia de um personagem, como eu, é um deleite.
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Embora o enredo não faça diretamente menção à síndrome de asperger, os indícios de sua manifestação são vários, tais como: comportamento peculiar, ausência de contato visual nas interações pessoais, atenção e concentração obsessivos, falta de empatia, dificuldade em compreender seu próprio comportamento como socialmente inadequado, coordenação motora um tanto robotizada, prestar atenção nos detalhes de maneira analítica, déficits de interação social, inteligência superior à média. Como disse acima, a personagem de Saga dá um tempero picante à série.
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Pois é, a Suécia retratada pelos próprios suecos não é a Suécia dos meus sonhos pubescentes. Vai ver que se um dia for para lá vou conhecer uma terceira Suécia. Välkommen till Suécia.

Joaquim Cesário de Mello




domingo, 16 de abril de 2017

O novo ruído de Scorsese



Conheço alguns grupos de pessoas que em feriadões ou épocas  festivas optam por se distanciar dos contatos sociais refugiando-se em retiros espirituais. Alguns, além do contato com  pessoas,   privam-se de alimentos, privam-se de palavras. Esses lugares prezam por preceitos pacifistas, valorizam a espiritualidade, e o desapego aos bens materiais e são, em sua maioria, inquestionavelmente influenciados pelas religiões e seitas orientais. Seus seguidores tratam os valores humanos e as religiões ocidentais com ar desdenhoso como se fossem irremediavelmente materialistas e violentos. O cerne dessas  filosofias orientais seria o pacifismo. Alegam  que os cristãos, apesar de pregarem a paz, foram em outros momentos da história, tiranos. Citam as fogueiras, a caça às bruxas e as máquinas de tortura da Inquisição. Eles tem razão, os cristãos  foram realmente violentos. Talvez eles deixem de ter razão quando se sentem privilegiados e diferenciados por serem orientalistas ou budistas.  Na  nossa ingenuidade, somos dados a nos  envolver e a nos  ludibriar  pelas mitologias dos panteões religiosos e  somos seduzidos e, por assim dizer, encantados pela crenças de que existe, ou que venha a existir, uma religião verdadeiramente pacífica. Cabe lembrar que as religiões são praticadas pelos seres humanos e a humanidade tem uma inquestionável história de atos de violência.


Acho que foi, pelo fato de  trazer à tona esses dissabores, que  o filme “Silêncio” de Martin Scorsese, andou à margem do cinema de premiações e de academias. Não vi nenhuma referência ao Oscar ou a Cannes - deve ter, contudo, outros motivos para esse distanciamento das luzes da indústria cinematográfica. Assisti quase que por acaso, inclusive.

O filme é longo, profundo e segue a batuta do seu título:  o silêncio e, em paralelo, o mais ruidoso dos paradoxos, revela, nas missões jesuítas pelo Oriente, especialmente no Japão  do século XVI, uma outra inquisição, a inquisição budista. Isso mesmo, a inquisição budista... e como toda inquisição religiosa, de extrema perversidade e intolerância. O que se observa no filme, em verdade, é a luta religiosa servindo como pano de fundo aos embates  frente às ameaças à hegemonia política do Oriente. Naquela ocasião, a religião se confundia e se misturava com o Estado, assim como ocorreu na Idade Média com o cristianismo e ocorre nos dias de hoje com as religiões muçulmanas.  Essa mistura, aliás, de religião com o Estado, apesar de ter sido útil ao processo civilizatório, não deixa de ser um nicho de intolerância e de perversidade.
Mas o filme vai mais além. Destaca-se, por exemplo, o quanto a crença religiosa, como detentora da “verdade”, é arrogante e impiedosa, assim como são os seres humanos donos da verdade. Deus, em paralelo, assim como no mito de Jó, revela-se no filme, com o seu incômodo silêncio. Silêncio que leva os personagens a questionarem sua fé, Deus não traz sua voz perante as injustiças, Deus não parece interceder em infortúnios, Deus pareceu ter nos abandonado, o mesmo desamparo revelado por Cristo nos últimos momentos de sua crucificação.


Enfim, Scorsese, assim como no seu polêmico e maravilhoso filme, “A Última Tentação de Cristo” traz de volta suas reflexões acerca da crença religiosa e, principalmente, do desamparo do qual todos somos submetidos, fruto da consciência de existência. Deus como disse Lars Von Trie, parece que nos abandonou como uma criança abandona por tédio, um brinquedo  ainda em movimento.

Marcos Creder   

domingo, 9 de abril de 2017

AVE URBANA

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Ameaçou um canto
que era mais que um canto:
era um grito.

Empinou o bico
com inútil arrogância,
agitando as penas
como se fosse feliz.

Olhou o mundo
que flutua por trás da janela,
abriu as asas
um tanto desacostumado
e num último arrebatamento
chocou-se entre as grades.

Resignado,
recolheu-se ao seu canto habitual
e, fechando as asas e os olhos,
sonhou grandes vôos.

Joaquim Cesário de Mello