domingo, 26 de novembro de 2017

ENQUANTO O OUTONO NÃO VEM


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O calor é de tal forma abrasante e úmido que uma simples brisa, dessas raramente vindas de onde termina o mar, ao invés de abrandar a febre da tarde, enche-me ainda mais de quentura com seu bafo cálido e inodoro de maresia. Fosse eu, por acaso, uma estátua em uma praça não me findaria de ferrugens e sim de derretimentos. Caio-me em gotas a pingar a camisa já encharcada pelos minutos antecedentes - uma tempestade se esvai de mim. Decerto não sou nuvem, mas também me constituo de nebulosidades e líquidos. Interessante observar que, quanto mais me fastio de aquecimentos, mais me ocupo de cigarros; talvez queira me secar por dentro e depois transpirar fumaças. Em minha autópsia não encontrarão alma e sonhos, somente cheiros de nicotina e farelos de cinzas.
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Ao início me incomoda a camisa molhada colando-se ao corpo. Logo, rendido a inevitabilidade de certas coisas, acostumo-me tanto a sua pegajosidade que já não diferencio a minha pele das minhas roupas (mais tarde, ao banho, relutarei em me desfazer de mais um pedaço de mim). O suor escorre da testa ao peito como rios a percorrerem seus leitos. De tempos em tempos alguma gota ousada modifica seu destino e rumo, ora umedecendo-me os lábios sedentos d'água, ora repousando em salpicos nas quase transparentes lentes dos meus óculos. Quanto à boca, a língua sente o sal me aumentando a sede; quanto aos óculos, embaço-os na vã tentativa de limpá-los com a manga da camisa tão ensopada quanto eu. As paisagens ao redor ficam assim nevoadas, qualquer um pode ser quem espero, a menos que se aproxime a pertos palmos e com o toque me desfaça dos enganos. Por isso, sou míope. Quando me amedronto das ausências, preencho-as com vultos equivocados das morfologias disformes das minhas limitações (houve épocas em que pensei usar lentes de contato, mas elas não me livrariam dos embaços das lágrimas). Viver de de enganos geralmente é melhor do que os reconhecimentos. Não resistiria um segundo a mais, não fosse a possibilidade da ilusão e suas conseqüências em meus contentamentos.
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Torra-me o sol sobre mim e o chão que aos meus pés me sustenta. Em meio a ardências, aguardo-lhe após o horário combinado. Há dúvida em mim - o que, sem dúvida, não me é de todo inusitado, afinal sou um ser nublado e de tantas dúvidas que chego até mesmo a duvidar se agora estou aqui -, não sei se me liquefaço pelo calor do dia ou pelo incêndio da espera. O tormento da espera é irmão do da procura.
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A cada minuto pesa-me ainda mais a suada camisa e, temendo-me afundar como uma âncora em um mar de mim, percorro as duas esquinas que me separam do resto da cidade. De lá pra cá e de cá pra lá, delimito desinquieto meu espaço no paralisado tempo dos postes e dos cruzamentos. Quantos quilômetros tem um instante de uma vida? Os passageiros da minha restrita calçada me são companhias nos diálogos do silêncio, até o sinal abrir novamente e seguirem seus trajetos sem olharem para trás. Incontáveis as pessoas que por mim passaram, enquanto permaneço na indefinição dos meus aguardos. Quero o consolo das memórias, pois só assim, creio, elas me levam em suas lembranças, lembranças do momento em que me conheceram caminhando ansioso nas imensidões das minhas indecisões. Será quem espero já não também passou na exata hora em que olhava buscante o meu lado esquerdo? Os óculos continuam embaçados, turvando-me a vista e minhas frentes. Eles me são insuficientes. Necessito urgente de microscópios.
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O que faço além de derreter lentamente no envelhecimento do dia? Pensar. E pensar é como o suor: pesa. Diminuo meus passos pouco a pouco, já não trago a velocidade de quando cheguei. Se cada pensamento pensado é um pensamento esgotado, o que me sobrará quando não mais tiver sequer um pensamento? Pudesse eu deixar de pensar, deixaria de existir. Contudo, não pensaria em quem espero e nem nas duas esquinas em que me cerco. Por isso, repito, sou míope e penso. Pensando posso esperar, esperando posso sonhar, não fosse este calor danado debaixo de um sol depois do meio-dia.

Joaquim Cesário de Mello 

(texto originalmente publicado no Jornal do Commercio, em 04/10/98)

domingo, 19 de novembro de 2017

Das metáforas da paixão

Em visita ao Arquivo Público Nacional, surpreendo-me com os escritos do passado. Engana-se quem imaginou que  me refiro aos tempos remotos, dos mil e oitocentos ou mil novecentos e pouco, tempo em que a língua portuguesa era mais formal e as fotografias praticamente inexistiam. Falo de notícias relativamente recentes,  do final do século XX e início do XXI, publicadas na nossa infância ou juventude, onde as gravuras e as fotografias começaram a ganhar cor.

Folheio. As notícias passam e, com o passar dos anos, as manchetes se tornam ingênuas; anúncios comerciais envelhecem e -  como a velhice humana - aqui e ali se ridicularizam; notas fúnebres de famílias numerosas transpiram retórica hipócrita: "o inesquecível, a enorme perda, o trágico desaparecimento". Páginas dos classificados dedicam-se notas pessoais, agradecimentos religiosos, aviso de achados e perdidos, busca de parceiros sexuais ou de amizade sincera, e declarações de amor. As frases eram curtas, os pensamentos sumários, pois anunciar era caro - as palavras nesse tempo custavam dinheiro. Imagino que a humanidade sempre ambicionou a se mostrar e a fazer declarações públicas. Chegam, eventualmente, ao constrangimento.

Procuro notícias do mês de junho, deparo-me com  páginas dedicadas aos anúncios do  dia dos namorados. Leio as declarações de amor com todas alegorias e metáforas que lhes são inerentes - aliás, sem metáforas não há amor, pois o amor é  um encantamento, um arranjo de palavras, que soa original apenas para quem as escreveu. O amor solicita, clama, por originalidade e cai em insólitos lugares comuns. Uma dessas declarações, na verdade uma carta, me chama atenção:


Prezada Ana Irma,

Pensei muito se você deveria ou não tomar conhecimento do que lhe falarei. Pensei e não encontrei respostas definitivas. Decidi,publicar no jornal para que todos saibam então. Prezo por sinceridade. Adianto: ser sincero é um ato de coragem, às vezes causa constrangimento.


 Você me  encantou -  bastaria dizer-lhe isso e encerrar por aqui esse bilhete, ou poderia passar horas e horas traçando minúcias de cada detalhe da bela mulher que há em você. Bela sim! Você dissemina uma beleza espontânea e franca que só poucos podem entendê-la. Como é difícil ser belo e simples ao mesmo tempo, não é verdade? pois é seu retrato falado, agora escrito.

Sinto-me próximo à você, como se fôssemos velhos conhecidos - sim, antes de lhe conhecer, já conversávamos, já avistávamos uma paisagem, líamos o mesmo livro, ouvíamos a mesma música, combinávamos o carnaval.Perambulasse escondida no meu desejo desde muito tempo. Eu pensava que você não existia e assim, de repente, me aparece como se morasse desde muito tempo na casa ao lado fazendo barulhos na minha imaginação. Tao perto, ridiculamente tão perto.

    Adoro saber que você está no mundo perto dos meus olhos.

    Despeço sem assinaturas. Não posso assinar essa carta - não seria prudente, não seria ético. Solto apenas essa reunião de palavras, pois seria injusto deixá-las caírem no mundo.
 



Emocionei-me não apenas com o conteúdo (que não é ruim), mas com algo escasso nos dias de hoje, o amor romântico: o amor que não acontece, que talvez jamais acontecerá, mas que está consolidado na escrita. Quem seria esse rapaz, ou esse senhor, que só deixa tornar público apenas a parte aflitiva e irrealizável de sua paixão? Qual o sentido dessa confissão ao anonimato? Essa carta me fez lembrar a inutilidade das cartas de amor, como a carta de uma personagem de Fernando Pessoa, uma mulher, que depois de morta, declara-se - numa espécie de testamento - apaixonada pelo serralheiro. Qual o propósito disso? Cartas de amor foram feitas para doer, para se desatar em sofrimento? Ou ainda, foram feitas para comover aqueles que de algum modo partilham de um sentir inalcançável?

M .Creder

domingo, 5 de novembro de 2017

O tédio embarca



Em mais uma viagem ao Recife, tive oportunidade de comprar, ainda em Guarulhos, um desses livros de aeroportos. Geralmente os  aeroportos transbordam-se em biografias, guias turísticos, best-sellers. Cascavilhando aqui e ali, eis que encontro um autor que tenho lá minhas ressalvas em relação aos seus textos: Alain de Botton, uma espécie de "popstar" da filosofia com forte atração no território literatura. Alain de Botton faz, ou tenta fazer, da filosofia, um sofisticado manual de auto-ajuda -  o que, em essência, nunca deixou de ser  - deixando claro que não vende a ideia de que a filosofia traz felicidade. Comprei-lhe, então, “A Arte de Viajar” e embarquei - o título facilitou  a comprar, contudo, não se lê  qualquer coisa por impulso. Havia outros interesses.

Vejo o mundo habitado por uma turba de entediados -  incluo-me entre eles. É difícil explicar o que vem  levando a disseminação dessa epidemia de tédio, mas  especulo que um dos motivos encontra-se justamente no seu paradoxo, na oferta maciça de produtos anti-tédio. Como explicar isso? Dou um exemplo: nada mais tedioso, entre os dispositivos de entretenimento, que a TV a cabo ou os canais de streaming. Quando eu tinha em mãos  meia dúzia de canais abertos, não hesitava em paralisar no primeiro que me interessasse e me divertir. Contudo, quando sou convidado a visitar centenas de canais de um pacote "Super Premium", sou tomado por angústia. Mesmo que esteja assistindo a um bom filme, não me tranquilizo, inquieto-me. Sinto-me culpado por estar desperdiçando canais provavelmente melhores. Não resisto, e no meio de uma cena que julgo dispensável, saio do filme teclando o controle remoto à procura de programas imperdíveis. Após um demorado “looping”, frustado, retomo o filme, que esgarçado pelo tempo que gastei minha curiosidade, dispersou-me o interesse. Enfim, é assim que tédio começa a despontar,  tento procurar outros filmes em outros canais, refaço “loopings” e constato que  o meu entretenimento deixa de ser o filme e passa a ser a busca.


Um dos remédios mais propagandeados contra o tédio é viajar, contudo, Alain de Botton, lança-o para o rol das drogas entediantes. A descrição de suas viagens  intercaladas por viagens de famosos da literatura, seguem o mesmo ritmo do meu controle remoto dos canias de streaming. De Botton questiona, já no início, o sentido de ir às Bahamas para presenciar a imagem bizarra de um coqueiro solitário à beira mar. De Botton se mostra muito hábil em descrever o sentido(ou o não sentido) ou as metáforas envolvidas com a hábito de sair de casa e partir para o desconhecido. O livro traz, como foi dito, várias impressões de outros escritores: o fascínio de Flaubert pelo Egito, o espírito nômade de Baudelaire,   a viagem solitária nas pinturas de Hooper, a romântica aventura científica de Alexander von Humboldt, o tédio experienciado por J.- K Huysmans.


Estamos nos entorpecendo de viagens e o conhecido ato de tomar o primeiro avião, após apontar o dedo aleatoriamente no globo terrestre para conhecer novas paisagens, novos climas, novas etnias e novos costumes, mais uma vez entrou no rol dos excessos do mundo - excessos que culminam no tédio.  Alain de Botton me apontou isso e acabou com mais essa ilusão.


Há quem defenda que viajando estamos reacendendo nossos lado ancestral nômade, onde os homídios perambulavam num mundo escasso em alimentos, fato que incorreu em longos percursos migratórios. Toda viagem ancestral foi, em essência, um imenso turismo gastronômico. Mesmo com o fim do nomadismo, continuamos movidos por impulsos que nos fazem aventurar por lugares desconhecidos e alimentar expectativas de felicidade, mesmo que a felicidade represente uma abstração arquitetônica ou uma curiosidade religiosa - neste aspecto o turismo moderno é herança dos peregrinos, guardou-se o legado de que, no deslocamento, se estabeleça uma espécie de  purificação. Contudo, a banalização do turismo fez, o ato de viajar, deixar de ser a metáfora da transformação pessoal. a banalização veio da sociedade do excesso.

Uma viagem turística a uma cidade, na verdade, está muito longe de ser uma viagem de reconhecimento de uma cidade de realidade. O turismo criou cidades ilusórias e acolhedoras, demarcadas por caricaturas, por alimentos que sequer fazem parte do cardápio de seus habitantes e por paisagens que formam logomarcas de souvenires. O turismo como hoje é concebido, resulta de sobreposições de abstrações. abstrações, contudo, dirigidas e focadas em imagens exteriores que tamponam provisoriamente as nossas eternas escuridões.

Guilherme Leão