domingo, 23 de dezembro de 2018

ANACRÔNICO & CONTEMPORÂNEO

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Parece bem contraditório algo antigo ser novo. Ou seria o novo que é antigo? Sei lá. Estamos de férias e não vamos complexizar a vida que já em essência tão complexa e contraditória. É por isso mesmo, por estarmos de férias, que vamos sugerir assistir um filme, porém não qualquer filme, mas sim um filme que durou cerca de seis anos se construindo e que décadas depois está sendo exibido incluído. Trata-se de um filme de Orson Welles, falecido em 1985.

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Mas que é ou quem foi Orson Welles?, pode perguntar alguém que pouco conhece de cinema e mais de pipoca em salas de exibição em shoppings centers. Segundo o Wikipédia (para quem gosta de wikipédias) Orson Welles "é considerado um dos artistas mais versáteis do século XX no campo do teatro, do rádio e do cinema". Para quem não sabe Welles foi uma pessoa decisiva na história do cinema, autor, inclusive, de Cidadão Kane (seu filme de estréia), considerado por muitos o melhor (ou um dos melhores) filme já produzido na arte cinematográfica. Com este inusual filme Orson Welles inovou a estética do cinema em termos de narrativa, ângulo de câmara, exploração do campo fílmico e edição não linear. Gênio!

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A genialidade de Orson Welles pode ser agora usufruída tanto pelas novas gerações quanto pelas mais antigas. Eis que temos disponível na Netflix O Outro Lado do Vento. Um filme que à época (década 1970) teve vários percalços de ordem de produção e, inclusive, de disputa judicial e outros tipos de entraves. A própria produção do filme (somente agora "concluído" com investimento da streaming) já daria outro filme.
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Pelo acima exposto é dispensável comentar o anacronismo se formos levar em consideração ao tipo de cinema que se faz hoje, porém é indispensável vê-lo para perceber (e aprender) o manejo dos discurso cinematográfico (visual principalmente) e o estilo atemporal de se fazer um cinema do tipo "papo cabeça". É quase obrigatório assisti-lo com alguém e depois comentá-lo. São várias as interpretações possíveis. São vários os filmes dentro do filme.
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Se alguém por aqui já ouviu falar e ainda não sabe o que é "cinema autoral", eis agora a oportunidade. Um filme, pois, para se deslumbrar e, quem sabe, pensar. 
A conferir...

Joaquim Cesário de Mello

domingo, 2 de dezembro de 2018

A ÁRVORE DOS AGUARDAMENTOS


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      Havia há muito a mulher o deixara. Jamais se soube os motivos de sua repentina partida, pois de sua boca nenhuma palavra dita sequer a respeito. Remoía em mudez a calada esperança daqueles que não suportam saudades. A cada “o que aconteceu?”, “o que houve?”, “o que se passou?”, fechava-se ainda mais como uma ostra a resguardar sua pérola. E como é peculiar à natureza humana a insustentabilidade das interrogações, de logo se trocou pelas levezas das exclamações. Por dias e dias e semanas a fio, inúmeras foram as histórias geradas de tamanho assunto; tantos boatos, tantos rumores, tantos mexericos e versões, tudo servia e se moldava à curiosidade da vizinhança. As mentiras, de pronto, ocupam o vácuo das verdades desconhecidas.
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       O tempo e o silêncio são erosivos às bisbilhotices alheias. Esvaem-se as histórias, resta o mito, depois… o esquecimento. Contudo ele, negado de transitoriedade e de lutos, deixado às lembranças edificara seu despovoado contorno com certezas quase insanas. Dizia a si só e somente a si que ela voltaria, um dia, com a mesma face meiga rubra de sol e olhos constantes, e aquele sorriso farto com o qual o envolvia que nem o mar ao afogar o rio.
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Em sua longa espera cotidiana a descrevia pra si diariamente, detalhadamente, como se para se assegurar que os anos podem ser apenas alguns dias. Feito uma Penélope invertida tecendo invisíveis tapetes, soterrou-se em seus escombros de memórias, perdendo os parentes, os amigos, os conhecidos… até que mais ninguém soubesse ou falasse de seu triste abandono.
     
Resultado de imagem para CEMITERIO, PINTURA       Porém, conquanto se nutrisse de inúteis aguardos, houve momentos em que chegou a relutar das intermináveis esperas. Receoso, então, da demora e do cansaço, evitava pensar na morte dela, visitando aos sábados os cemitérios da cidade. Peregrinando de túmulo em túmulo, de jazigo em jazigo, vendo e revendo lápides, buscava não buscar encontrar o nome dela. Havia nele um ar de contentamento, embora o fingisse bem, todas as vezes que de lá se retirava, enquanto os outros chegavam levados de culpas e lágrimas. Felicitava-se assim pelos cadáveres que não tinham seu sobrenome. Foi dessa época, inclusive, seus derradeiros e restantes amigos, entre coveiros e mulheres rezadeiras.
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       Quando já decorado conhecia todos os mortos, seus apelidos e suas datas, enraizou-se no apartamento habitado de si, isolando-se dos entardeceres e das chuvas, sabendo agora, com uma certeza cada vez mais certa e inquebrável, que a morte a ela não chegaria. Eterna a mulher em sua ineternidade, existia ele somente de recordações, alheio ao falecimento das presenças e ao envelhecimento do sofá e das poltronas da sala onde permanecia em inalterável aguardo, nunca se permitindo ao sono – hábito costumeiro dos que não precisam das portas e das chegadas. Misturando-se aos segundos, solidificou o tempo a tal ponto que se um dia ela retornasse (o que era por demais improvável), seria como se estivesse ido apenas à esquina tomar sorvetes ou comprar um maço de cigarros.
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      Quem pudesse vê-lo em tão comovida espera o pensaria dormindo de olhos abertos frente à porta, cercado de desertos e poeiras. Mas ninguém mais o viu desde então, até que um dia, muitos e muitos dias após o dia em que ela o deixou, arrombaram-lhe a porta dos seus devaneios, e não era ela. Surpresos, jamais entenderam a inconcebível visão de encontrar plantada no centro da sala aquela árvore gasta de seivas e sem frutos, cheia de musgos, com seus ramos crescidos por sobre os braços da poltrona, como alguém que quisesse abraçar o vento.


Joaquim Cesário de Mello

domingo, 4 de novembro de 2018

SOLITUDE INANIMADA




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No sofá 
o óculos esquecido
me olha,
e grita,
abandonado
no absurdo medo
das coisas mortas.


Joaquim Cesário de Mello

domingo, 28 de outubro de 2018

POR DETRÁS DOS VIDROS


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Penso-me protegido
por detrás das vidraças de minhas janelas
aqui onde ventos não me assanham cabelos
nem o frio das ruas me arrepiam a pele.


Como se nada me atingisse
vou-me iludindo de infinitudes
e são tantos e tantos os intermináveis dias
que haverei um dia ou de romper
os limites quebradiços dos meus espelhos
ou sucumbir sufocado de infância e eternidade.

Engordo-me em armaduras de cristal
sem saciar nenhuma fome ou sede
e enorme vou ficando de tão cheio
das imensidões das lembranças inapagáveis.


Como quisera por um breve instante
passageiro e repentino até
poder deixar de ser eu e minhas inquietudes
e respirar sem o abafado cansante das interioridades.

Resultado de imagem para HOPPERGostaria assim liberto de mim
dissolver-me líquido e lento
como esta furtiva lágrima
que me escorre a face e ninguém vê
nem mesmo a mulher que me dorme 
ao lado.


Joaquim Cesário de Mello