domingo, 26 de março de 2017

O SENHOR DA POEIRA E DAS SOMBRAS




Logo ao passar pela porta que o separa do mundo dos vivos, ficou parado um instante como que suspenso em meio àquela atmosfera bolorenta impregnada de fungos mofando móveis, objetos, quadros, livros e as outras coisas que preenchem e circundam todo o espaço amplo da sala. Tudo é tão antigo e gasto que parece ser a casa um enorme museu a conservar o que ainda resta dos últimos vestígios de uma remota civilização desaparecida (passado tem o cheiro desagradável do envelhecimento da história). Ali, onde mora o desusado tempo, reside também o pai e seus consumidos e antiquados trastes, todos esquecidos por tudo que a eles da casa é fora, não fosse o filho ocasionalmente revisitar o homem que lhe era mais o guardião de sua distante meninice. Enquanto houver velhos (esses diminutos adultos de ontem) a frequentar, haverá alguma infância a ser revisitada ainda mais uma vez, de novo.


Infelizes aqueles que não têm velhos, pois lhes sobram apenas a insonoridade monótona dos álbuns de fotografias. Ao fechar a porta, cortando feito uma lâmina o domingo, uma lufada de ar levanta e espalha a poeira antes sossegada em seu repouso quase secular sobre a superfície rígida das coisas. No azular da sala mal iluminada pelas frestas envidraçadas das janelas fechadas bailam granulados fantasmas acordados pelo repentino vento – em breve retornarão a quietude das planícies onde tomarão a forma inanimada das peças e dos objetos domésticos.
Resultado de imagem para VELHICE, PINTURAO filho aguarda antes de dar o primeiro relutante passo através de tantos espectros paternos, enquanto o vê, aos poucos, surgir do fundo da penumbra, vindo como quem vem das trevas, trazendo consigo a escuridão dantesca das memórias. Embora fosse o pai de estatura baixa e franzino corpo curvilíneo, frágil como uma capa de livro bastante manuseado, sua sombra é grande, imensa e gigante, a encobrir todos os móveis e utensílios da sala e ao filho que ali estava. Um homem de passadas curtas e gestos tremulamente delicados, contrastando com o heroico guerreiro do menino de outrora.
Do cavaleiro antes andante, não ficou armaduras, escudos, elmos, lanças ou espadas; o que continua é somente a magra silhueta quase imobilizada que lembra o desenho em preto e branco que ilustrava as estórias de Cervantes. Talvez até não tivesse aquele livro, eram tantos os livros dele, porém o filho jamais o pedira para ver, como se assim ainda receasse algum atrasado carão pelo dia em que buliu escondidamente os segredos invioláveis da biblioteca do pai.
Resultado de imagem para TEMPO, PERDASO velho homem conversa agora coisas do passado e o outro dele escuta lembranças fragmentadas como se do pai saíssem inúmeras vozes e fosse ele tantos vários. Sua voz, antes potente e hoje muito mais um sussurro, percorre uma vida: do tempo em que também fora menino, morando em engenho e tomando banho de rio, à época em que vivera um fugidio amor viajando pelos litorais do Nordeste. Conhecera praias, coqueiros e paixões. Ela se foi, como tudo ao homem um dia se vai. Ele igualmente.
Resultado de imagem para MEMORIA, PINTURAO que ficou, o que sempre fica, foram as amargas e doces recordações saudosas dos momentos irrecuperáveis, e um filho este que de vez em quando o visita, até mesmo depois dos sonhos. As lembranças idosas de um homem idoso são feitas da mesma seda filamentosa e opaca que tece o embranquecer dos olhos nublados de cataratas e de tempo. Quantas aquisições anteriores não sucumbem ao pouco brilho que nos chega à mente, esta interioridade obscura que em parte se apresenta nas narrativas, e em outra parte se oculta, se disfarça e muitas vezes se deslembra. O pai que fala e se cansa com o que de si mesmo ouve não é um homem completo, é simplesmente a porção de um pedaço de fração de uma vida inteira.
Como se o que permaneceu fosse menos, repete ele as mesmas aventuras, glórias e dissabores de aposentadas eras em que é hoje então somente o único afastado sobrevivente. Algumas vezes o filho ouve com desatenta atenção, em outras se distrai enxergando através do emagrecido corpo de amontoados ossos e relatos, encoberto pela enrugada e manchada pele que ainda lhe sustenta o pouco tanto de suas tantas sobras, o pai e o seu menino que ambos foram muito antes do que agora. Sentado naquela quebradiça e encardida cadeira de balanço, é ele, assim como as sombras de todo o demais resto, uma mera noção rudimentar de uma melancólica e nostálgica aparência que ligeiramente parece uma esfinge a tutelar sepulcros e mortos.
Aquele homem que lhe fundara a própria história é ao filho a oralidade pulsante de sua ecoante inocência, pois rever o pai, mesmo tão velho, é redescobrir o que já não é mais descoberta com igual encanto e deslumbramento de uma criança curiosa. À hora de ir embora, beija-lhe com respeito a testa, último reduto de carinho e afeto com que reverencia sua infância ainda viva. Por possuir também as chaves, como de hábito, aguarda o pai recolher-se vagarosamente indo para dentro da casa e dos seus escuros. A poeira novamente levantada baila e por detrás dela segue um homem rumo ao seu quarto, arrastando com ele o silêncio de um garoto que de soslaio e sem acenos se despede do adulto aqui assombrado.

Joaquim Cesário de Mello

domingo, 19 de março de 2017

Uma Relação Infantil

 
Um tema muito discutido na assistência à saúde é um  dos pontos que considero  crucial e, que talvez,  seja um dos problemas mais significantes, e paradoxalmente mais desvalorizados, dos profissionais que atendem na Clínica ou nos hospitais. Trata-se da relação "profissional de saúde"  (médico, psicólogo, fisioterapeuta etc) - paciente. Acredito que dessa relação pode demandar vários acertos,  mas também muitos erros - chega-se a cogitar em artigos especializados que mais da metade dos erros médicos, por exemplo, acontecem na tensão  da relação médico-paciente. Contudo, para a maioria das pessoas, os erros que esses profissionais cometem,  ocorrem por diversos motivos: incompetência técnica, inaptidão, má formação, má remuneração, descaso, falta de “compaixão " e de princípio éticos. Argumenta-se  também  que o próprio modelo de assistência em saúde  "animaliza " seus profissionais. Esse argumentos são plausíveis e inquestionáveis, mas penso que nessa relação profissional - paciente   ainda cabe mais um elemento que vai mais além da postura técnica, ética ou das questões das políticas assistências - embora, como disse, essas  tenham relevância significativas.


Há uma tensão mais subjetiva que deve ser melhor esmiuçada e incluída nesse rol de desacertos. Esse "mais além" está no fato de que, no fenômeno do adoecer, não existe uma objetividade como se tem - ou dizem ter - em outras áreas do conhecimento.  O adoecimento está na dimensão de um sujeito (sempre) singularizado em sua  dor, sofrimento e em suas fantasias aterradoras relacionadas a vida e a morte. Esse temor às incertezas do corpo e da mente fazem  com que, muitas vezes, se utilize de defesas psíquicas remotas ou infantis. Isso porque o corpo se tornou (ainda mais) frágil e suscetível  e fez com que o sujeito revisitasse os tempos igualmente frágeis de sua existência: a sua infância. Naturalmente na infância se é mais dependente, mais exposto,  o corpo é mais manuseado e submetido aos seus cuidadores. O julgamento que a criança faz dos cuidadores são  ambíguos e arcaicos. É um misto de um ser, um“outro”, todo poderoso, que é capaz de promover e aliviar as dores e os desconfortos. São bons e ruins, acolhedores ou ameaçadores. E assim se reedita essa relação quando  se adoece, pois se precisará de mais cuidado que o habitual.

Resultado de imagem para REGRESSÃOFreud dizia categoricamente que o processo de adoecimento, seja ele qual for, tendia a provocar no sujeito reações regressivas - uma retificação importante é de que essa regressão não é um caminho de retorno no tempo, pois não se vai ao passado, mas o caminho do infantil ainda presente, um infantil contemporâneo - uma espécie de "passado" escondido nas recordações prontas para serem representadas. Para validar  isso não é uma tarefa tão difícil.    Quantos  não ficam dengosos, manhosos, ressuscitando os antigos mimos da infância quando doentes? ou ainda, quantos não  ficam birrentos, rebeldes, " trelosos" durante um tratamento médico?  No mesmo passo que a doença reedita esses sentimentos, no outro lado, no  lugar do terapeuta se retifica muitas vezes as figuras do antigos cuidadores que podem assumir as funções da amabilidade ou da tirania, ou ainda, da impotência ou da onipotência - ressalto que não há neutralidade em qualquer profissionais, haverá sempre identificações, projeções que poderão ser úteis ou danosas ao tratamento. ha texto de Luiz Cláudio Figueiredo, Implicação e Reserva, que estabelece um manejo dessa transferência. Essa variante da não neutralidade, muitas vezes, explica que um mesmo remédio  ou procedimento pode ser venenoso ou terapêutico a depender de quem o prescreveu. 

O psicanalista húngaro Balint defendia, ainda no início do século XX,  que assim como as medicações, os médicos na relação médico-paciente também teriam “efeitos colaterais”, “subdosagens”, “intoxicações” -  E, nesse presente texto,  acrescento, não só os médicos, mas todos os profissionais de saúde. Há profissionais que se ausentam ou se presentificam excessivamente, há aqueles, que na generosidade excessiva, terminam por reforçar os ganhos secundários que as doenças propiciam - a grande dificuldade, na verdade, é encontrar a medida certa, a medida terapêutica que garanta ao paciente  a condição de sujeito. Para que isso venha de fato se efetivar, será preciso ter entendimento de que assim como esse sujeito doente se fragiliza, o outro que o assiste deve cortar as asas de sua onipotência e de fantansias igualmente infantis. Esse encontro entre a fragilidade (paciente) e a onipotência (profissional) muitas vezes desencadeia equívocos, graves equívocos.  
Escuto uma história desde de que era estudante de medicina. uma história que parece mais uma anedota, mas que seria perfeitamente possível dentre as tensões da relação médico-paciente.    
Um obstetra numa maternidade pública, ao atender uma gestante, que estava sangrando excessivamente, haveria dito para o assistente que “aquela paciente estava ‘chocando’ “(um jargão médico que se refere ao estado de choque). Ao ouvir isso, a paciente queixosa, disse: "o senhor diz assim porque sou pobre, porque se fosse rica estaria tendo menino”. O que se pode pensar dessa cena? de que havia um abismo social e subjetivo entre o paciente e seu médico; o médico acreditava na compreensão do seu vocabulário, e de que a paciente reeditava seu lugar de excluída. 


Marcos Creder