domingo, 28 de abril de 2019

OLHAR DE MENINO

Por ocasião da minha primeira comunhão
em 18/10/1964


O que tu olhas menino
no fundo das tuas breves inocências?

Ainda não te habitas
os machucados de tuas perdas
que vêm depois do findar da candura,
quando o mundo desencantado
haverá de tirar de ti
qualquer resíduo de eternidade.

O que tu olhas menino
nestes teus olhos de mares verdes
até então sequer um pouco desbotados?

Teus pecados infantes
e teus pequeninos segredos
ficarão imorredouramente trancafiados
no que resta do que ficou
deste agora tão longínquo retrato.

O que tu olhas menino?
Serão os sonhos que ficaram para trás
fixamente permanentes neste lugar de ontem
que para ti é o hoje
de onde partem teus anseios
posteriormente não consumados?

O que tu olhas menino?,
senão o filho que paristes com a vida
e que hoje te devolve o olhar
com saudade de quando carregava
um imenso céu por dentro de si.


Joaquim Cesário de Mello

domingo, 14 de abril de 2019

ESCOMBROS DE UMA ETERNIDADE ARRANCADA


          Hoje meu pai é apenas um nome de rua no bairro da Várzea. Dele nada mais me resta senão as esparsas lembranças de sua presença em minha infância, além de umas caixas que minha mãe zelosamente guardou ao longo de sua rápida existência, com textos, notícias, livros, rascunhos, documentos e algumas fotos, resíduos de uma época de mim tão cedo interrompida. 
         Perdi meu pai ao final da minha meninice, quando o mundo ainda era encantado. Como bem diz o escritor, ilustrador e músico português Afonso Cruz, todos os jardins da nossa infância são o jardim do paraíso. E foi lá, no éden da minha puerícia, que ficou para sempre a sombra hoje em preto e branco daquele que nasci e continuarei filho. 

O primeiro da esquerda para direita de terno preto (Cezário de Mello), com Gilberto Freire,
Carlos Pena Filho, Cordeiro de Farias, Aderbal Jurema e outros.
(acervo: Fundação Getúlio Vargas)

          Cascavilhando as caixas onde sobram os destroços e ruínas da infância, recentemente deparei-me com ecos empacotados no silêncio tumular dos encaixotados. Do jazigo da distante aurora da minha vida, encontrei dois poemas inéditos do meu pai (que foi poeta, escritor, crítico literário, jornalista, professor universitário e advogado). Reproduzo-os abaixo não meramente como um tributo, mas também como relembrança de um Joaquim que eu quase fui.

Agora,
nas pupilas de teus olhos
goivos noturnos.
Em tuas mãos desacordadas
o beijo das estrelas.

Não vi quando partistes 
nem quando chegastes ao pressentido porto
borboleta azul.
Vejo apenas que as auroras
trazem a cor das violetas.

Não te acompanhei o voo
nem vi em tuas asas
o canto sonoro dos ventos frios
em tarde que era de verão.

* * * * *


Negros corcéis desembestados
te cortaram o imprevisto voo
num dobrar da estrada
escondida no pó.

Estão para sempre
fechadas tuas asas
borboleta azul,
como se fora uma carta
que o destino acabou de ler
e guardou num cofre.

Não sei se o relógio
venceu o tempo,
ou se teus gestos
desafiaram o encontro
que marcastes.

Se os ventos te viram sorrir
quando fechastes as asas,
se em teus olhos se fixou
o último desenho,
só a tarde guardou este mistério.

Nunca mais (agora
que tudo é silêncio)
diante do amor e do vinho
teu rosto jovem revelará segredos. 

(Cezário de Mello/1951)

Eu miúdo nos braços de minha mãe.


"A infância que já não existe presentemente, existe no passado que já não é."
(Santo Agostinho)

Joaquim Cesário de Mello