domingo, 30 de março de 2014

Da criatura que há em nossas escolhas


 Você, leitor, certamente já se perguntou por que escolheu sua profissão? Muitos de nós já temos, inclusive, algumas respostas prontas, e essas respostas trazem, algum aspecto positivo, realizador, filantrópico de nossas escolhas. “fiz arquitetura para tornar a minha cidade mais bonita; fiz  medicina para aliviar o sofrimento e promover saúde; fiz psicologia para fazer as pessoas mais felizes”. para esses bonitas reflexões trago algumas indagações: será, por exemplo, que escolhemos o que queremos ser ou somos escolhidos?   Será que temos consciência das nossas escolhas? algum trazem franqueza, escolhem por circunstâncias sociais, familiares ou econômicas, mas para aqueles que se dizem livre nas suas escolhas, trago comentários demorados.   


Não sou orientador profissional - longe disso - mas algo me chama atenção entre  o desejo, a identificação e a aptidão. Quando se escolhe algo para fazer da vida, parece haver elementos subjetivos, muitas vezes conflitivos, que ajudam a fluir ou a paralisar nossas decisões. Que quero dizer com isso? vamos a um exemplo - um exemplo muito comum do dia a dia, daqueles que estão no início da vida acadêmica. Se estamos numa pós-graduação, ou num mestrado, quiça doutorado -  quem já fez, há de concordar comigo - há momentos da nossa produção em que a capacidade de criação ou de escrita, ou mesmo de pensar, encontram-se provisoriamente prejudicadas. Nesses momentos, que não segue cronologias, pessoas protelam e adiam, flexibilizam os prazos, alguns desastrosamente desistem de seus projetos. Que fenômeno é esse? Não há respostas precisas, mas, presunçosamente, posso dizer que há conteúdos dessas produções  que entram em conflito com a nossa vida psíquica,  há algum “acontecer” na nossa criação  que faz com que alguns pontos de nossas histórias sejam tocadas.  Um encontro paradoxal: desejado e temido. Feliz ou infelizmente, não escrevemos teses apenas, deixamos nas entrelinhas uma pequena biografia e mesmo que tentemos fugir dela, no extremo oposto, corremos o risco  de fazermos ainda mais autobiografias. O caso, por exemplo, de uma mulher que quando criança  perde o pai ainda muito jovem num sofrido processo de câncer metastático - ou seja disseminadado -  e diz a si própria: jamais serei médica, muito menos oncologista, jamais quero ver cena parecida com toda essa desgraça".  E, de fato, não foi médica sequer voltou a pisar em um hospital, tornou-se advogada de sucesso. Começou a advogar nas varas civis, e, um tipo de ação começou a se tornar frequente e paralelamente a lhe interessar; as querelas judicias envolvendo assistência , ou dessssistência, dos planos de saúde. Coincidência ou não, uma das queixas mais usuais e mais conflituosas entre usuários e operadora era justamente o fato de muitos paciente oncológicos não terem cobertura  dos planos. "Isso é um absurdo! Não vejo nenhuma relação disso com a doença de meu pai, pois esse não tem mais volta, mas trabalho para as pessoas terem um tratamento decente. Isso é um atraso que atrapalha até os avanços da medicina e da expectativa de vida das pessoas”. Certamente, se as vidas fossem desde então prolongadas, seu pai poderia partilhar mais tempo de vida ao lado da tão jovem filha.  Esse exemplo parece tão simplório,   tão óbvio , tão inventado,  que pode parecer que forço uma situação para comprovar uma hipótese. Vejamos, então, exemplo mais conhecidos.


Há  um texto do século XIX que, na ocasião, impactou a literatura e a sociedade científica e, acrescento, que até os dias de hoje vem ainda provocando reflexões. O contexto em que se deu sua criação é bem interessante
. Numa casa de campo vários escritores (incluindo o poeta Byron)  se reuniram para conversar de literatura. Após discussões, que certamente beiravam o tédio, algum deles propôs uma atividade divertida. Cada um teria que produzir durante os dias que restavam da estadia, um texto, ou um esboço de texto, que fosse sombrio e que provocasse horror nos demais. O texto, naturalmente, mais tenebroso ganharia o pequeno festival. Todos foram às suas escrivaninhas e mergulharam as suas reflexões. Houve uma grande adesão àquela causa literária, inclusive,   a mulher do poeta Percy Bysshe Shelley participou com entusiasmo. Ela,  que produzia modestos poemas, construiu um texto instigante que intitulou de  Moderno Prometeu. A trama é relativamente simples e circundava a vida de um cientista  que perdeu a mãe ainda criança. Há em verdade na trama uma sucessão perdas: parentes, mestres, amigos. A idéia da morte era permeada por imensa angústia e natural lamentação. Como a juventude daquela época estava muito influenciado pelo pensamento positivista  preconizava que só com os avanços da ciência se chegaria a verdade e ao conforto , o jovem resolveu estudar com mais profundidade a biologia da vida e da morte e os elementos que mantinham as pessoas vivas. Após várias  pesquisas vem-lhe a estrambótica ideia de criar um ser imortal.     Como faria isso? estudando a moderna fisiologia, indo aos necrotérios e cemitérios onde  juntaria partes de pessoas na tentativa de construir  um outro ser, que denominou provisoriamente de Criatura. Bem, a história acho que vocês, leitores  já devem conhecer… O título definitivo foi o romance Frankenstein e a jovem mulher do poeta era a ainda  desconhecida Mary Shelley que presenteou  a modernidade com esse grande clássico - cabe destacar que há equívocos muitos freqüentes para quem conhece pouco o livro. Por exemplo, o nome Frankenstein  refere-se ao médico, o jovem criador, e não a criatura. A criatura nunca será nomeada, e a falta de nome a tornaria ainda mais monstruosa

Mas quem era Mary Shelley?  uma mulher orfã de mãe que  a faleceu  uma semana depois da jovem Mary Shelley ter nascido. Essa mãe que morreu precocemente era escritora e considerada uma das principais precussoras do feminismo britânico. Já adulta Mary Shelley tem relacionamento amoroso com o poeta Percy Shelley, que no início ainda era casado. Num espaço de dois anos entre o início do relacionamento e a escrita de Frankenstein acontece duas tragédias: o casal perde um filho por aborto e a ex-mulher do poeta se suicida. Pode observar que a criação do livro foi fertilizado pela elaboração dessas tragédias recentes e da tão presente ideia da morte. Coincidência?  O que procurava Mary Shelley quando tentava colar os pedaços de mortos e dali reparar, quiça, seus sentimentos de culpa e suas responsabilidades? Bem deixemos para as respostas ocorram na cabeça do leitor que antes de emitir qualquer opinião deverá ler Moderno Prometeu,ou melhor, Frankenstein. Adianto, contudo, que escrever o livro partiu não do desejo apenas de fazer uma obra  inesquecível para a humanidade, mas de escrever um trecho da biografia de alguns conflitos psíquicos.   

Marcos Creder  

quinta-feira, 27 de março de 2014

ESPAÇO DO COLABORADOR

Bom dia, caros colegas! 
Segue abaixo um texto que escrevi há um ano, quando conheci o Hospital Psiquiátrico Ulysses Pernambuco, localizado em Recife, Pernambuco. 



Gostaria de relatar um fato que ocorreu comigo esta manhã. Sou estudante de Psicologia e estou no sexto período. Hoje tivemos a nossa primeira visita ao Hospital Ulysses Pernambucano, aquele na Tamarineira, conhecido como o “hospital dos doidinhos”!
“Cuidado, não fiquem na parada de ônibus na frente dele, pois um doido pode chegar e te amedrontar!” Quem nunca fez uma piadinha dessas?
Um dia, estava em uma reunião familiar conversando sobre meu curso de Psicologia e alguém disse: ah, Carol! Você vai estudar Psicologia? Vai cuidar dos doidos?
Por alguns minutos, fiquei em silêncio, e uma tia que estava perto disse: “Não, meu querido. Ela vai cuidar de mentes apenas diferentes das nossas”.
Mentes sábias... Guardei na minha memória por todo esse tempo e, hoje, ao visitar o hospital, refleti muito.

Chegamos por volta das sete e meia da manhã para nos encontrarmos com o professor da disciplina Psicopatologia às oito horas da manhã. Desde que entrei já me surpreendi com a imensidão de mangueiras e passarinhos cantando pelo espaço. De início, um lugar bonito, aparentemente calmo, bem diferente daquela representação que costumamos fazer de clínicas psiquiátricas, os famosos hospícios... Que coisa boa, que leveza. Quando meu professor chegou, entramos no hospital e fomos pra uma sala de aula, para que pudéssemos nos apresentar e falar das nossas experiências com pacientes de saúde mental. Apesar de não ter experiência, estava muito curiosa para conhecer o local, conhecer as pessoas internadas, sentir a ENERGIA.
Ao iniciarmos o nosso “passeio”, atravessamos um corredor e, vez ou outra, um paciente se aproximava do nosso grupo de estudantes. Olhares curiosos, admirados. Outros tristes, angustiantes. Outros acompanhados, mas distantes. Outros engraçados, mas temerosos.

Ao conhecer o local, enquanto o professor contava a história do local e a funcionalidade das áreas, observava aqueles pacientes, aqueles outros tão próximos e tão diferentes de mim. Durante essa manhã, passamos por todas as alas do hospital. Tivemos a oportunidade de observar tudo o que estava ao alcance dos nossos olhos.
Todos os estudantes, meus colegas de curso, possuem uma boa percepção, mas vi que cada um teve um olhar diferente, um olhar único. Estou surpresa com o que aconteceu comigo, pois, enquanto observava aquelas pessoas, sentia um alívio, pois pensei: “É melhor do que eu imaginei. Apesar do receio, tudo o que vejo não irá me impressionar. Não sentirei emoção, não vou levá-los para fora comigo. Não os levarei para o meu mundo. Eles passarão por mim, e ficarão onde estão”.
Isso me deixou tranquila durante toda a visita, mesmo observando sujeitos tão distintos de mim, incomuns, únicos.
Saí de lá sem pensar. Fomos para a faculdade e assistimos à aula.
Mas, ao me deitar pra dormir agora, mil pensamentos vieram à minha cabeça. Essa noite, sai pra jantar e, na volta, passei na frente daquele hospital. E lembrei que tinha passado a manhã por lá, observando a vida de todos. Como eles estão agora? Com quem? Já comeram? Estão sendo bem tratados?
Um cheiro que eu achava que tinha esquecido penetrou na minha memória. Sinto o cheiro dali, vejo as pessoas exatamente como elas estavam, e me deu uma angústia, ao lembrar olhares profundos que alguns trocaram comigo.
De Hospital dos Alienados para Hospital Ulisses Pernambuco. Como estamos hoje, frente a esses sujeitos? O nome mudou, a quantidade de pacientes diminuiu drasticamente. Onde antes existiam em torno de 1000, hoje existem 80. Mas o mundo aqui fora mudou. Será que lá também? O que eu poderia fazer para ajudá-los, para não me tornar mecânica para essas pessoas? Lembrar que são seres humanos, de corpo e alma. Ainda são seres humanos, ainda são sujeitos. Ainda precisam de nós. Sempre precisarão de um olhar sem preconceito.

Julgamos sem conhecer, somos temerosos com o desconhecido. Falamos do outro para outro. Falam de nós para outro. Julgamos, julgamos. Medo do que não precisa temer.
Medidas compulsórias para limpar um espaço, limpar uma sociedade. Retroceder, quando precisamos evoluir. Que não percamos a sensibilidade. A vida não é fácil, não mesmo.

 Carolina Lima (estudante Psicologia/UFPE)

domingo, 23 de março de 2014

HÚBRIS: OU A MIOPIA DA ALMA




     O orgulho e a confiança exagerados têm no grego o termo húbris, que significa “tudo que passa da medida”. Tal palavra era usada na Grécia antiga para falar de quando o ser humano insolentemente desafiava os deuses, desconsideração essa que geralmente resultava em castigo. A Lei de Nêmesis (deusa da vingança) assim se escrevia:tudo que se eleva acima da sua condição, tanto no bem quanto no mal, expõe-se a represálias dos deuses”. 
Orgulho e confiança são necessários ao ser humano, porém o descomedimento das mesmas, isto é, o excesso e o exagero levam à prepotência e à arrogância. É quando a alma se embriaga de si mesma e com isto não enxerga bem a realidade e suas consequências. Não respeita os limites até dela própria. É uma falsa superioridade da alma em cuja autoafirmação desmedida encontra eco lá nas profundezas do psiquismo humano: em nossa ilusória onipotência ou desejo pela mesma.  
Embora sejamos o que sejamos na realidade, do ponto de vista subjetivo projetamos sobre nós mesmos uma imagem muitas vezes idealizada. É difícil reconhecer nossa insignificância frente à vida e ao mundo. Fere-nos a alma em nosso narcisismo inato. Ocultamos de nós próprios nossa pequenez. Disfarçamo-nos de maiores do que somos. Uns até se mascaram ainda mais de superioridade e excessiva autoconfiança. É, nosso psiquismo tem lá suas manhas e nos prega vez em quando algumas enganadoras peças.
Devemos nos regozijar e usufruir do nosso sucesso e conquistas na vida, sermos a nós mesmos até gratos por isso. Contudo devemos evitar que tal gratidão azede e se transforme em orgulho, soberba. Não sou daqueles que acham o orgulho um sentimento negativo, pois credito ser salutar se ter orgulho de si e de suas realizações. Um orgulho autêntico e pertinente tem correlação com a autoestima do sujeito. Uma boa autoestima, por sua vez, gera uma melhor autoconfiança. A questão sob comento é, e ainda é, o excesso. Excesso de autoconfiança frequentemente gera imprudência, e uma pessoa imprudente geralmente é precipitada e desacautelada. 
   

Quando a autoconfiança e a autoestima são demasiadas e transbordantes as mesmas podem estar funcionando como uma máscara protetora de uma insegurança tão proporcional quanto o tamanho da aparente autossuficiência. Já em outras pode ser sinal de estágios de euforia e elação, ou ainda manifestação de uma personalidade organizadamente narcisista.
Todos, de alguma forma, damo-nos uma importância maior do que realmente temos. Há indivíduos, entretanto, que se dão um sentimento grandioso de importância. Superestimam suas próprias capacidades e exageram suas realizações. Em seu imaginário há fantasias e anseios de sucesso ilimitado e poder. Seu eu grandioso é reflexo de uma autoimagem majestosa e imponente. Porém, sua autoestima é frágil, correndo-se o risco de facilmente se magoar ou de ter raiva quando é criticado ou quando sofre derrotas. 

Pessoas assim embriagadas acham que podem fazer tudo. Devido a um ego desmedido têm a sensação de possuírem dons especiais e quase divinos. Ruminam ideações de caráter megalomaníacos que, embora possam ser ideias e desejos aplicáveis a longo prazo, acreditam que farão ou realizarão quase em um estalar de dedos, e sem nenhum ou pouco esforço e sacrifício. Não sabem combinar a ousadia, com adiamentos e renúncias. Apesar de não existir diagnosticamente uma síndrome de hubris, percebe-se reuniões de sinais que sintomatologicamente dariam para classificar um transtorno ou algo um tanto quê patológico.
Coitada da alma humana que, na pequenez míope de sua ilusória superioridade, arrota para dentro imodestas prepotências e arrogâncias tão grandiosas como se fosse ela própria o inteiro universo. Não sabe ela, ou evita saber, que "cada um de nós é um grão de pó que o vento da vida levanta, e depois deixa cair" (Fernando Pessoa). Porém é como ainda diz o poeta quando diz que "o homem fatal, afinal, existe nos sonhos próprios de todos os homens vulgares". Talvez seja este o destino da alma humana, como bem observou Freud, vivermos como se fôssemos de ferro enquanto somos feitos de carne. Apenas que, aqui e acolá, uns querem ser de mais ferros do que os outros, e esquecem que até os ferros enferrujam. Esta é a lição de Ícaro que ao querer se aproximar do sol despencou.
Joaquim Cesário de Mello