quarta-feira, 3 de julho de 2013

SUGESTÕES DE FÉRIAS

“Os que acreditam em "formação", sabem que é preciso se preparar para a empreitada, ela é longa , é preciso austeridade, leituras e muito esforço”

J.M.Coetzee




Aproveitando o período de férias escolares, razão pela qual a coluna semanal das quartas-feiras, DIÁRIO DE AULA, não será publicada, estamos preenchendo o referido vazio com esta nova e temporária coluna SUGESTÕES DE FÉRIAS. Quem me conhece sabe que diferencio aluno de estudante. Aluno é aquele que estuda para as provas, frequenta as aulas, se preocupa com notas e tira férias em julho, janeiro e fevereiro. Adora feriados. Nada contra, pois em meu anterior curso universitário, Direito, também fui aluno. Já estudante, estuda. Isto é, estuda porque é curioso e quer aprender. Quando vai à praia, ao campo ou viaja, leva consigo livros que agreguem mais conhecimento. Não estuda por obrigação, mas por prazer. Sim, estudar também é prazer. E é para eles que estamos abrindo um leque de sugestões (livros, filmes, peças teatrais e textos vários), bem como aceitamos de bom grado dos mesmos propostas e ideias (socializemos o prazer pelo conhecimento). Portanto, sem mais delongas, vamos a nossa primeira sugestão. Que tal debater? Bom proveito, enquanto aguardamos retorno dos leitores.
     

     J. M. Coetzee é um escritor sul-africano, Nobel de Literatura de 2003. Autor de ficção, ensaios de crítica literária, memorista e tradutor. Sua obra explora temas delicados e contundentes, tais como o totalitarismo, censura e a tortura, porém não esperemos um autor que ataque diretamente à realidade. Seus personagens, muitas vezes, vivem aprisionados a monólogos, em uma luta constante pela interação entre as pessoas em um mundo onde o convívio verdadeiramente humano e o diálogo parece haver se perdido ou aniquilado pelo poder institucional. É comum seus personagens deslizarem entre o medo e a esperança, em tramas baseadas no terreno movediço dos afetos, das fantasias, dos sonhos e dos pesadelos.
     Seu último livro, “A Infância de Jesus” (2013), encontra-se recentemente publicado no Brasil pela editora Companhia das Letras. Não se trata – como o título pode sugerir – de um livro sobre Jesus Cristo, como é o caso do “Evangelho Segundo Jesus Cristo” de José Saramago, embora faça alegoricamente uso da figura emblemática de Jesus. O Jesus em questão é um garoto que, conjuntamente um outro personagem adulto, ambos refugiados e que se conheceram na jornada, chegam a uma cidade indeterminada chamada Novilla, onde recebem novas identidades (o menino se chamará David, o homem, Simón) e têm que aprender a língua do lugar. O homem e a criança se conheceram no barco de onde fogem e que os leva ao novo lar, Simón se apieda do menino sozinho que, inclusive, havia perdido um bilhete onde estava escrito quem era, de quem era filho e para que e por que estava indo a Novilla.
                Kelvin Falcão Klein, em sua resenha no O Globo escreve: “Não há dúvidas de que se trata do relato de uma infância, a de David, mas seria ele, em um universo alternativo, o Jesus que conhecemos? Talvez um dos objetivos de Coetzee seja justamente questionar aquilo que conhecemos da História, aquilo que vem de forma automática ou instintiva quando se pensa no passado. Porque a leitura de “A infância de Jesus” oferece um contínuo jogo entre expectativa e realização, um jogo exasperante, no qual Coetzee arma uma série de atrasos e adiamentos que carregam de tensão o romance”.
                Há algo de antiutopia na história, afinal a Novilla é uma cidade onde as pessoas vivem uma vida anulada de afetos, paixões e emoções; até o apetite sexual inexiste. A vida lá é, literalmente, insossa, e tudo é bastante regrado, apático e limitado. A entrada de estranhos e estrangeiros à localidade – onde devem abandonar velhos hábitos incompatíveis com esta sociedade estilo espartano de disciplina e ordem – é uma verdadeira passagem de um mundo anterior de paixões para um outro baseado nos ideais de serenidade e razão. Acompanhamos cumplicidamente a luta adaptativa dos dois a esta nova e estranha forma de se viver. E é David quem mais sofrerá as agruras e as consequências de sua inadequação a ordem social vigente, enquanto Simón tenta quixotescamente auxiliar David.
                Evidente que estamos frente uma sociedade de regime autoritário onde tudo é controlado e que serve de cenário para a infância de Jesus. Existem passagens que evocam ou insinuam sutilmente vários elementos bíblicos e, poeticamente, Coetzee constrói em tons de fábula seu romance. David resiste a aceitar a ordem aceita passivamente por todos e que busca eternizar a rotina e os comportamentos. Como o próprio Jesus da Bíblia, ele ameaça a ordem establishment. 

Quem é a mãe de David? Nem ele sabe seu rosto, nome e paradeiro. Se ela existir e estiver viva em Novilla ela também terá uma nova identidade, será uma outra pessoa. Em um trecho quando Simón é interpelado por uma funcionária do Centro de Reubicación (onde são “apagadas” as identidades antigas) esta lhe diz: “E essa mãe anônima? Tem certeza que ela quer reencontrar o filho? Pode parecer desalmado dizer isso, mas a maioria das pessoas quando chega aqui perdeu o interesse nas antigas relações.” 
Não se iluda o leitor que estamos frente a um texto fácil, afinal ele é permeado de camufladas metáforas sobre a passividade frente à vida e ao mundo hoje. A ingenuidade dos habitantes, a apatia, a falta de emoções faz parte do logos sistêmico, por onde caminham os personagens de David e Simón em busca da mãe do primeiro. Acabam encontrando uma mulher, Inês, que aceita o papel de mãe a ela delegado. Os três, assim, passam a constituir uma nova e estranha família. David – sempre recusante em abandonar seus antigos hábitos, lembranças e identidade – necessita até se fingir de “normal” para não vir a ser internado em uma escola para crianças excepcionais: os diferentes.
                O livro é uma grande jornada em busca de uma vida nova em um mundo novo, uma sociedade distópica cujo universo totalitário e estatal encontra eco em outro romance, 1984, de George Orwell. Não aceitando uma vida padronizada e ideologicamente dominada, repressora dos afetos e modeladora de comportamentos servis e ordenados, os personagens centrais procuram avidamente seu estar-no-mundo, sem com isto perderem o bem mais importante que têm: sua própria autenticidade.
                Muito mais do que uma alegoria sobre a educação de um garoto em uma sociedade, A Infância de Jesus, é um libelo sobre a mansidão das pessoas onde suas subjetividades são anestesiadas em nome de uma ordem social pacificadora dos apetites, das paixões e dos sentimentos.
                É necessário, portanto, trazermos em nós um olhar de estrangeiro.
Joaquim Cesário de Mello

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