quarta-feira, 10 de julho de 2013

SUGESTÕES DE FÉRIAS






 Julho é mês de chuva e de frio (para os padrões nordestinos). Nada como passar estes tempos cinzentos e remotamente gélidos, com um bom vinhozinho, lendo bons livros (vide última SUGESTÕES DE FÉRIAS, em 03/07 passado) e assistindo bons filmes. E é a respeito deste último que iremos propor nossa sugestão de hoje.
                Em 1995 o cineasta e músico sérvio Emir Kusturica, ganhou sua segunda Palma de Ouro no Festival de Cannes. Internacionalmente aclamado, vencedor de vários importantes festivais de cinema, além de Cannes, Veneza e Berlim, Kusturica é reconhecidamente um dos mais significativos e criativos cineastas das últimas duas décadas do século XX.
                O filme premiado a que fazemos menção é o fascinante e estonteante “Underground”, que no Brasil levou o infeliz título de “Crimes de Guerra”. O filme inteiro – de ponta a ponta – é uma longa sequência de imagens extraordinariamente fortes, magnéticas e poéticas. Utilizando do chamado “realismo fantástico”, o autor faz uma bela e contundente metáfora do esfacelamento da antiga Iugoslávia, a partir da II Guerra Mundial até meados dos anos 90.
                O filme conta – em uma narrativa ao estilo felliniano – a história de dois amigos, Marko e Crni, que lutam na resistência iugoslava contra a ocupação alemã. Ameaçados de serem pegos Crni e um grupo de companheiros se escondem em um sótão na mansão da família de Marko. Este fica sendo o único elo de ligação entre os que agora moram no subterrâneo e o mundo externo acima. Dentro do porão os guerrilheiros continuam ajudando a resistência fabricando armas. A Segunda Guerra acaba, porém Marko nada informa aos companheiros que formam uma pequena comunidade subtérrea, e fica explorando os mesmos que continuam fabricando armas que são vendidas no mercado negro. Mantidos na ilusão de que a guerra continua, passam-se décadas e no underground da casa de Marko uma nova geração nasce. Quando Crni, então, um dia sobe à realidade encontra uma Iugoslávia pós-Tito em desintegração e em guerra fraticida entre sérvios e bósnios. Percebendo-se traído Crni luta mortalmente contra Marko: uma guerra onde irmão mata irmão.
       Todo um povo vive em uma caverna platônica onde o mundo externo é apenas visto por meio de imagens e sombras ilusoriamente distorcidas, principalmente os mais novos, que lá nasceram e nunca viram de fato o mundo externo, apenas através de velhas e antigas revistas.  
        O início do filme, assim como em seu final, é permeado de fanfarras e festas. É no meio que acontecem os infortúnios e as desgraças. Alegria e drama, júbilo e tragédia, assim caminha a humanidade. Transbordante e hiperbólico, Underground exibe toda sua exuberância e exagero com muita música, barulho e confusão, uma verdadeira babel de imagens e sons onde tudo se mistura metaforicamente em uma enorme multiplicidade de sentidos, significados e significâncias. Uma história épica que retrata o desfacelar de uma nação, e ao mesmo tempo uma experiência fílmica rara e inesquecível. Na surrealidade com que é narrada a história aprofundamos nossos sentidos e nossos conhecimentos sobre a condição humana, seus enganos, seus sonhos, seus sofrimentos, suas euforias e suas patetices.
                Comovedor ao extremo, Underground enternece e emociona, enquanto enche nossas retinas e tímpanos numa miscelânea de cenas e sons, imagens e músicas, danças e festas, beijos e abraços, traições, ódios, manipulações e tragédias. Decididamente não se pode morrer sem antes ver este maravilhoso e estonteante filme.




Difícil, quase impossível, fazer uma lista dos 10 melhores filmes já realizados, tamanha quantidade, diversidade, momentos históricos diferentes, qualidades técnicas distintas, recursos linguísticos e imagéticos vários, qualidades artísticas distintas, gostos pessoais e subjetividades próprias do expectador, e por aí vai... Mas, se eu ousasse fazer minha relação, indubitavelmente, colocaria Underground em minha lista particular, principalmente pela genialidade da narrativa cinematográfica empregada por Kusturica, que bem sabe – e sabe muito – de Cinema com C maiúsculo. Humor, surrealismo e absurdo permeiam a obra. Sua complexidade impossibilita classificá-lo em uma mera categoria qualquer (drama, comédia, ação, musical, politico, suspense, etc.). A riqueza do filme é tanta que se torna impraticável querer em um post de blog delineá-la. As imagens são poderosas, as músicas encantadoras e o simbolismo implícito e explícito em cada fotograma são assombrosos. Um filme para se falar no excesso de adjetivos e superlativos. Um bombardeio de metáforas estridentes, poéticas, e ousadias surreais e simbólicas. Simplesmente, indispensável.

                Uma visão, com humor negro, da realidade humana, social e política. Como escreveu o colunista José Geraldo Couto, da Folha de São Paulo,de fato, o cineasta sérvio parece mostrar que, sob pressão, vêm à tona as tendências mais bestiais do homem, qualquer que seja a sua origem nacional ou étnica”. Uma loucura onírica onde Kusturica expõe seu amor a sua terra natal, antiga Iugoslávia. Babélico, caótico, imaginoso, animado e sombrio, alegre e triste, irrealisticamente real. Ou como já disse alguém:um poema à geografia do delírio”. O cineasta capta o cotidiano e fantasiosamente nos invade a alma com tamanha estranheza que afinal nada é estranho. 
                Abaixo o vídeo do mesmo, em espanhol, mas que você pode optar na tecla de “legendas ocultas” configurar para a língua portuguesa. Bom vinho (que tal um bom Malbec argentino ou Carménère chileno?) e uma boa companhia completam o dia/noite. 


Joaquim Cesário de Mello

2 comentários:

Felipe Lins disse...

O texto todo é bom, mas vou focar na questão do título errado do filme, pois é algo que me incomoda a bastante tempo. Ainda não sei o motivo, mas tradutores Brasileiros se dão o direito de modificar o título criado pelo próprio diretor/autor do filme. Além do exemplo do texto, posso citar Persona, de Bergman, traduzido no Brasil como 'QUANDO DUAS MULHERES PECAM' (pecado, né?!).
E L'enfer, de Claude Chabrol, (cujo título nacional pode dispensar a leitura de qualquer sinopse)'CIÚME - O INFERNO DO AMOR POSSESSIVO'.

Assim fica difícil.

literalMENTE disse...

Pois é, Felipe. Tem cada coisa, tipo:

The Sound of Music = Noviça rebelde;
Annie Hall = Noivo Neurótico, Noiva Nervosa;
Blue Valentine = Namorados Para Sempre;
Lost in Translation = Encontros e Desencontros
e por aí vai...