domingo, 14 de julho de 2013

DANTE ALIGHIERI E A LOUCURA


QUEM  lê um ou outro artigo meu, deve ter percebido que sempre tendo a repetir e recomendar algumas obras literárias.  E que sou insistente. Não será necessário  muito esforço para suspeitar que “A Divina Comédia” é um desses livros. Não me lembro exatamente quando li pela primeira vez e, suponho que uma das razões que me motivou a leitura da Comédia foi uma uma recordação de minha infância. 

 Contaram-me  de que um adolescente  da vizinhança teria lido esse livro. Tomara o volume por acaso da extensa biblioteca do pai, e desde que iniciara a folhear as primeiras páginas, desenvolveu, por assim dizer, uma obsessão pelo texto. lia e relia, tornara-se excêntrico, e por fim, enlouqueceu.  Tivera um “surto”, necessitou por toda vida ficar em tratamento médico e psicológico, chegando a, nas crises graves, necessitar de internamentos prolongados..

  Nunca o vi em crise, mas rezava a lenda que, já no primeiro surto, sob influência do texto de Dante, teria se trancado no quarto e sido encontrado, horas depois, com os olhos congelados no espelho e com  páginas do livro espalhadas pelo chão.  As interpretações para a loucura desse rapaz eram atribuídas  a densidade da “Divina Comédia”, seus poemas eram fortes e “desestruturantes” - comentaria um psicólogo. “Não tinha maturidade para tanto”, concluía. Essa relação entre loucura e esforço intelectual ainda é citada pelos seus familiares como principal argumentar da causa de sua doença mental.  

Esse fato, essa lembrança, me marcou significativamente e sempre que olhava as imagens referentes à “Divina Comédia”, principalmente as do Inferno – ilustrações clássicas de Gustave Doré –, provocavam-me medo e ao mesmo tempo uma profunda curiosidade. Afinal, que tinha nele de tão enlouquecedor? Perguntava-me. Penso que lá pelos 15 anos, tentei fazer uma primeira leitura, e, por alguma razão, achei um texto difícil e sem graça – devo ter desistido ainda nas primeiras páginas. Aos 19 anos, já estudante de medicina, reli e gostei, mas não tanto como hoje. E, por que hoje eu gosto mais? Porque algo me instigava a relê-lo, reli mais algumas vezes e, a cada nova leitura, abriam-se páginas e mais páginas de um texto cheio de nuances, nuances de uma beleza poética que só gradativamente iria ter condições de degustar.

                                               *          *          *

Há uns anos, escrevi uma peça que foi encenada algumas vezes no Hospital da Tamarineira e, posteriormente, em instituições “psis”. A peça era inspirada na biografia da poetisa portuguesa Florbela Espanca.  Centrada no poema “Maria das Quimeras”, que tivera sido escrito no momento em que Florbela estava internada em um hospital psiquiátrico. A peça iria fazer uma ponte entre o poema e o conteúdo  biográfico que havia em seus versos. O processo de criação foi relativamente simples, cruzei os dados biográficos com o cenário natural de um manicômio e essa mistura não podia dar em outra coisa: em imagens semelhantes ao Inferno de Dante. Formou-se, no desfecho das últimas cenas, uma sucessão de falas que misturavam poemas, portugueses, gritos desesperados dos loucos e citações textuais de Cantos da “Comédia”. Mas haveria mais elementos desses cruzamentos que viriam a me surpreender mais adiante.  A poesia “Maria das Quimeras” narrava as fantasias de uma poeta devastada:

Maria das Quimeras me chamou 
Alguém...Pelos
castelos que eu ergui 
P'las
flores d'oiro e azul que a sol teci 
Numa
tela de sonho que estalou. 

Maria
das Quimeras me ficou; 
Com
elas na minh'alma adormeci. 
Mas,
quando despertei, nem uma vi 
Que
da minh'alma, Alguém, tudo levou! 

Maria
das Quimeras, que fim deste 
Às
flores d'oiro e azul que a sol bordaste, 
Aos
sonhos tresloucados que fizeste? 

Pelo
mundo, na vida, o que é que esperas?... 
Aonde
estão os beijos que sonhaste, 
Maria
das Quimeras, sem quimeras...


O poema, meio infantil, fazia um apelo por sonhos e fantasias inalcançáveis – que dariam justamente o significado da palavra "Quimera".  Mas esta palavra trazia uma ambiguidade semântica que só posteriormente veio a me surpreender: a palavra Quimera também se referenciava a uma figura monstruosa da mitologia grega, uma besta de duas cabeças, de leão e de cabra (ou serpente), que soltava fogo pelas narinas e devastava as cidades. Essa monstruosidade era irmã de Cérbero, o cão de três cabeças que está descrito como “a fera-monstro mais perversa” no Canto VI do Inferno de Dante. Enfim, tudo se cruzava: o hospício, a loucura, a imagem da desesperança, o poema, a literatura e a arte.


Só depois de muitas apresentações que tive, por assim dizer,  outros insigths. Naquela peça, em algum lugar do texto, eu parecia homenagear, ou recordar aquela criança que enlouquecera com a “Comédia”.  Mas seria mesmo uma homenagem? Ou eu estaria ali, apenas relatando a minha maneira – a única forma  possível –  de ler Dante sem enlouquecer?

                                                           *          *          *


Dante encontra-se atualmente na moda, inclusive, há um novo romance de Dan Brown intitulado do “Inferno” que traz na capa a imagem do autor medieval.  Provavelmente deve ser uma daquelas tramas policialesca que pouco ou nada acrescentará à leitura da “Divina Comédia”. Recomendo, contudo, aos recifenses que não percam a exposição de Salvador Dali no Caixa Cultural, no Marco Zero, que pinta em aquarelas, cem Cantos desse maravilhoso texto. 

Marcos Creder  

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