Considerando que as aulas começarão já(!) na próxima semana, e como tinha produzido duas sugestões de férias, excepcionalmente publicaremos uma hoje e a outra na quinta seguinte, visto que necessito do espaço da sexta para editar DIÁRIO DE AULA, cujo texto será trabalhado na disciplina CLÍNICA I e II logo na primeira semana letiva. Assim sendo, vamos lá:
Gosto do futebol de Messi, deleito-me
ao escutar tango, aprecio um bom Malbec e tenho um certo enamoramento pela
literatura de Jorge Luis Borges, Julio Cortázar e Ernesto Sábato. Também me encanto pelos bulevares e pelas
livrarias várias, uma a quase cada esquina, que encontramos em Bueno Aires. Mas
o que invejo, invejo mesmo, é o cinema argentino. Um cinema inteligente,
requintado e intimista. Um dos mais conceituados do planeta, com vasta
produção, apesar da eterna e infindável crise econômica porque passa nossos
coirmãos e vizinhos. Ao contrário do nosso, o cinema argentino é cosmopolita e
se utiliza de elementos universais. Sim, há resquícios europeus.
Enumerar
as grandes e boas produções dos nossos rivais futebolísticos seria uma tarefa
herculínea. Cito apenas alguns de memória: A HISTÓRIA OFICIAL, O FILHO DA
NOIVA, NOVE RAINHAS, O SEGREDO DOS SEUS OLHOS, PLATA QUEMADA, LUGARES COMUNS, O
ABRAÇO PARTIDO, NINHO VAZIO, O PÂNTANO...
Mas vou falar de um filme que
assisti cerca de quatro anos atrás, mas que ainda me assombra a memória. Trata-se
do comovente A JANELA, do cineasta argentino Carlos Sorin. Além de diretor,
Sorin é também roteirista, escritor e produtor. Ganhou aclamação da crítica
especializada em 2002 com HISTÓRIAS MÍNIMAS, onde conta diferentes histórias que
se entrecruzam de vários personagens que viajam pelos gélidos e desérticos
caminhos da Patagônia.
Em
A JANELA, Sorin analisa a velhice, através de um octogenário escritor em seus
últimos dias de vida. Sua dramaturgia é minimalista e dela Sorin sorve, através
de pequenos e econômicos detalhes, toda pungência que seu estilo narrativo pode
nos oferecer. Antonio é o personagem principal que vive aprisionado à cama devido
as fragilidades de seu corpo e de sua idade avançada. Teimoso, parece se negar
a morrer na espera do reencontro com seu filho único que não vê há bastante
tempo. Nada nos é claramente dito do passado de Antonio, nem porque ele está
afastado do filho, de sua esposa já morta ou das outras personagens que
representam suas cuidadoras.
Com muita sensibilidade e rara
maestria Sorin retrata a finitude da vida. Impressionante a atuação do uruguaio
Antonio Larreta, que interpreta o personagem homônimo. Larreta na vida real
também é escritor e roteirista de cinema e televisão. Seu romance “Volaverunt”
foi agraciado com o Prêmio Planeta da Espanha. Com sua soberba atuação ganhou o prêmio Fipresci no
Festival de Valladolid, na Espanha.
A passagem do tempo é um
personagem de fundo. Faz-se presente no tiquetaquear do relógio, nos mínimos
ruídos contínuos, no afinar do piano, no movimento sutil do vento, nos
enquadramentos dos objetos. Há uma atmosfera bergmaniana que nos remete a
MORANGOS SILVESTRES. O distanciamento de anos e a incomunicabilidade da relação
paterno-filial é simbolicamente descrita no silêncio do piano e nos soldadinhos
de chumbo achados entre as cordas deste mesmo piano que lhe emudeciam
determinadas teclas. Decididamente o filme aborda o limiar da morte e o vazio
desta espera.
No entremear dos silêncios, das
lacunas e dos vazios, Antonio passa seus últimos dias entre a cama e a janela. A
janela, assim, representa emblematicamente a esperança do escape para o mundo
externo, onde a vida reluz em todas suas cores e calores de verão.
Impregnado de referências bibliográficas e musicais,
Sorin faz um filme singular de um velho homem em busca de decifrar o enigma da
esfinge de sua vida. Intriga, estranha, encanta e comove. Um filme de pequenos
detalhes e nuances, ou como comenta o crítico da Folha de São Paulo, Cássio
Starling, “filma, portanto, só o
essencial, os gestos, uns diálogos prosaicos e um formidável passeio pela
natureza, no qual fica evidente que busca, como seus pares de cinema argentino,
o drama sem grandiloquência”.
Quando assisti ao filme em
cinema (2009), então escrevi em um antigo blog meu: O
filme e a câmara são centrados no presente do personagem principal e dele pouco
sabemos de seu passado e história. Podemos acompanhar apenas o reviver de seus
afetos e lembranças minimalisticamente através de silêncios e olhares. Como uma
madeleine proustiana uma série de memórias são expostas sem flash backs
hollywodianos, de maneira suave, terna e lenta. Aliás, o tempo é um personagem
que impera e sombreia todo o filme, seja na condução narrativa vagarosa como um
tempo que se arrasta envelhecido, seja no fundo sonoro constante do sutil tic
tac de um relógio pendular, seja no tempo ressuscitado da memória.
Já
dizia Noberto Bobbio que o tempo do velho é o tempo da memória, pois somos aquilo que lembramos. Somos o último e o único guardião de nossas lembranças
não apagadas ou extintas. E ainda citando Bobbio “na rememoração
reencontramos a nós mesmos e a nossa identidade, não obstante os muitos anos
transcorridos, os mil fatos vividos. Encontramos os anos que se perderam no
tempo, as brincadeiras de rapaz, os vultos e as vozes, os gestos, os
companheiros de escola, os lugares, sobretudo aqueles da infância, os mais
distantes no tempo e, no entanto, os mais nítidos na memória” (para quem não
sabe o trecho que aqui cito foi escrito por Bobbio em seu livro “O Tempo da
Memória” quando ele tinha 87 anos de idade).
Não
é à toa que somos de imediato apresentados a uma lembrança longínqua de Antonio
que ele até mesmo sequer sabia tê-la retido na memória (onde ficam guardadas e
reservadas tais lembranças?), a imagem do rosto de uma mulher que certo dia,
quando criança aos 6 anos, cuidou dele em uma noite em que seus pais deram uma
festa em casa. A poesia de tal cena (orquestrada e sensivelmente realizada em
uma imagem cinematografica desfocada e nebulosa vista como um cristalino
que perdeu sua transparência) que abre e fecha o filme é singular e lírica, e
deve ser apreciada e sorvida sem a pressa cotidiana do dia a dia urbano, assim
como o filme como um todo, afinal estamos frente a um filme lacunar, prenho de
detalhes e de silêncios, e só podemos realmente apreciá-lo acaso nos
permitamos a ele nos entregar.
Não
retiro até hoje nenhuma linha ou vírgula do que escrevi.
Se puder procurem assistir o filme. Até lá, contentem-se com o trailer.
Joaquim Cesário de Mello
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