segunda-feira, 18 de novembro de 2013

VALE A PENA VER DE NOVO

SOBRE A VIDA DAS COISAS SEM VIDA

                “Não há nada mais terrível, aprendi, então, do que ter de encarar os objetos de um morto. As coisas são inertes: têm significado apenas em função da vida que as utiliza. Quando esta vida acaba, as coisas se transformam, mesmo que permaneçam as mesmas. Estão lá e no entanto não estão, fantasmas tangíveis, condenados a sobreviver em um mundo a que não mais pertencem. O que se pode pensar, por exemplo, de um armário cheio de roupas esperando silenciosamente para ser usadas por um homem que não voltará a abrir a porta?... Por si só, os objetos nada significam, como os utensílios culinários de uma civilização desaparecida. E no entanto dizem-nos alguma coisa, parado ali não como objetos mas como resquícios de pensamentos, de consciência, emblemas da solidão na qual o homem passa a tomar decisões sobre si mesmo: se irá pintar o cabelo, se irá vestir esta ou aquela camisa, se irá viver, se irá morrer. E a futilidade de tudo isso quando vem a morte”.

                As palavras acima foram escritas por Paul Auster, um dos mais criativos e instigantes escritores norte-americanos da nova e atual geração. Trata-se, como diz a própria orelha do livro O INVENTOR DA SOLIDÃO, um mergulho na memória a partir da morte de seu pai. “Num dia há vida... E então, subitamente, acontece a morte”, assim se inicia o citado livro. Mas não se inquiete eventual leitor(a), pois não iremos versar sobre a morte, embora seja este um tema intrinsicamente relacionado à vida e mereça reflexão, mas sim iremos tecer algumas considerações sobre a vida, a vida das coisas inanimadas.
                   Logo cedo começa se construir dentro de nós, seres humanos, a ideia de possuir o mundo. Achamos que somos o mundo. Depois, desiludidos de tal ilusão narcisista, vamos crer que o mundo, já que existe, existe para nós. É como aquela propaganda do shopping Center Recife: “O mundo em suas mãos”. Embora o mundo exista sem nós e nem para nós, continuamos persistentemente agarrados a tal ideia (ou seria necessidade?), buscando possuir objetos e coisas.
   Nossas primeiras posses, isto é, nossos primeiros objetos são os brinquedos que usamos para nos amenizar medos, angústias e solidões. Ao tempo em que os brinquedos nos consolam, também nos fortalecem e nos ajuda a cimentar nossa posição frente à vida e ao mundo. Firmamos nosso Eu conjuntamente nossas primeiras propriedades. Ao longo da vida os objetos nos acompanham e os utilizamos muitas vezes para expressar nosso interior, nossa alma e nossa identidade.
                As coisas que chamamos de nossa funcionam como uma espécie de extensão de nós mesmos. Com elas nos apegamos. Com elas nos revelamos. Há algo de sutilmente fusional entre o ser humano e seus objetos. Quando eles se quebram, é como se algo em nós igualmente houvesse se partido. Quando alguém arranha algo que é nosso, é como se nos unhasse a pele. Afinal, não são objetos comuns e quaisquer. São objetos com que criamos laços e vínculos emocionais e afetivos. Sabe aquele paninho que o bebê usa para se acalmar e sossegadamente adormecer?, pois é, bem provável que ele tenha sido o nosso primeiro amigo, amigo este que nos consola na ausência da mãe. Assim também é com o ursinho de pelúcia ou qualquer coisa que a criança pequena se apegue para suprir ou suprimir sua carência. Tais objetos são, portanto, psicologicamente utilizados para dar suporte rumo à conquista da autonomia.
                Mas não fiquemos somente na criança e na infância. William James já dizia, em torno de 1890, que o self de um homem é a soma total de tudo que pode chamar de seu. Os objetos não somente têm um valor monetário qualquer, mas principalmente eles podem ter um valor afetivo. Este valor afetivo diz muito da pessoa que os possui.
               As coisas das pessoas vivas, seus pertences e seus pequenos tesouros do cotidiano, têm assim as digitais de seus donos. Ali ocultam histórias, sentimentos e vivências. Para os outros não passam de apenas objetos e quinquilharias; seus significados e relatos somente pertencem a seus donos. A vida das coisas inanimadas é sem ruído e sem rosto, embora falem sem verbo e gritem em silêncio os segredos mais inexprimíveis das personalidades que se criaram por intermédio e por detrás delas. Quem quiser conhecer alguém além das máscaras e das aparências conheça melhor seus objetos e seus apegos. Não as coisas como elas são, afinal uma caneta, um quadro, um livro ou uma caneca são uma caneta, um quadro, um livro e uma caneca; mas sim como a pessoa se relaciona com seus pertences. Ou como mencionou certa vez Saint Exupéry, “o significado das coisas não está nas coisas em si, mas em nossas atitudes com relação a elas”.
                No campo do estudo do comportamento do consumidor (o que o consumidor consome, por que consome e como consome) é farto a necessidade de conhecer os significados que o consumidor dá a posse dos produtos. Belk, por exemplo, empregou o termo de “self estendido” para caracterizar os elementos constituintes do mundo subjetivo em que o ser humano vive. Em relação ao acima citado William James, e atualizando para os tempos atuais de consumo, o self representa o consumidor por meio da soma de suas posses pessoais. A extensão do self, portanto, é um processo onde um objeto estático e inerte passa a ter vida, revelando e determinando a pessoa através dos seus pertences. O self, neste sentido, não se restringe ao corpo e seus aspectos psíquicos, mas se estende sobre as roupas, a casa e seus artefatos, bem como até mesmo às pessoas queridas e aos lugares que se frequenta. A extensão do self implica em uma conexão simbólica entre o bem possuído e a identidade do individuo que o possui. Os bens, assim, são ou podem ser receptáculos de significados, onde o ser humano se expressa por meio deles.
   Por isto bem entendo o que que quis dizer Paul Auster quando escreveu “Não há nada mais terrível, aprendi, então, do que ter de encarar os objetos de um morto”. Afinal, é triste o destino dos objetos de um morto: não significarem mais nada, nenhuma história, nenhuma recordação, nenhuma impressão, nenhum relato. Os pertences de um dono que não mais existe são tão mortos quanto seu próprio dono.
   Quem herdará meus óculos que agora repousa sobre a escrivaninha me olhando com seus tristes cansados olhos de um homem envelhecendo? Que destino tenho senão perecer em leilões e quermesses em meio aos meus tesouros inúteis e migalhas sobrantes de uma vida? Que meus despojos sejam encaixotados e me aguardem a próxima encarnação.

Originariamente publicado em 27/01/2013

Joaquim Cesário de Mello