QUAL A IDADE DA INTELIGÊNCIA?
Uma conversa com Jorge e com Lucas
Guilherme Saraiva (escritor, filósofo)
Venho
acompanhando com regularidade as postagens do literalMENTE, e
confesso que cada vez mais venho me animando com os textos. Além de
bem escritos, gosto da diversidade, do despojamento, da simplicidade
e da honestidade em que os temas são, por assim dizer, defendidos.
Na verdade, gosto da honestidade em todos os aspectos. Uma vez
assistindo ao filme “A Idade da Terra” de Glauber Rocha – um
filme, diga-se de passagem, insuportável – ouvi um grito: “tira
essa merda”. Éramos poucos no cinema e o rapaz foi
surpreendentemente ovacionado por nós, gatos pingados. A chatice tem
a vantagem de arregimentar pessoas tímidas e educadas – essa
também minoria de gatos pingados – e esse fenômeno de franqueza é
exceção à etiqueta dos chatos. Enfim, a chatice culta é avessa a
honestidade e é por isso que venho gostando imensamente desse blog.
Pois
então, antes que proíbam os meus comentários críticos à Axé
Music, aos forrós e pagodes estilizados e, por fim, aos sites de
relacionamentos – por preconceito étnico-regional ou por postura
antidemocrática contra a liberdade de expressão – falarei, assim
como o colaborador Jorge Armando, mais algumas palavras desagradáveis
sobre a formação de vida das pessoas de hoje e, como disse Lucas,
da de(formação) – adoro trocadilhos – das pessoas de ontem. Na
verdade, a única ressalva que faço a Jorge, é que sendo a
ignorância uma coisa meio que da índole humana, ela é atemporal –
e acrescento pandêmica. Quanto a Lucas, teço um minúsculo
comentário em torno de uma palavra. Explico já. Para aqueles que
estão se sentindo perdidos no meio desse texto recomendo que leiam
os artigos de cada um postados recentemente no LiteralMENTE.
Façamos
de conta que estamos num Café – saiamos, portanto, do ambiente
universitário ou virtual . Nesse Café há uma mesa de jovens homens
e mulheres a cerca de uns vinte metros. Que tal fazermos silêncio e
tentamos escutar o que dizem? Nada? Não escutam? Realmente, não dá
para ouvir... Como somos todos curiosos e criativos, tentamos
construir personagens que, somando com as nossas próprias
experiências, ganham vida própria na nossa imaginação. Não seria
imprudente, embora não tenhamos nenhum subsídio para isso,
elegermos aquela mulher mais à esquerda, de óculos, como a mais
interessante e o homem magro que está ao seu lado, de barba rala,
como o mais perspicaz do grupo. Porque os escolhi assim? Por pura
aparência e intuição, ou, como Jorge disse, em algum momento do
seu texto, por ignorância. Confesso que sou um esteta e elegi a
mulher por ela me parecer bonita e agradável e o homem por parecer
simples e inteligente. Porque fiz isso? Porque sou tão feio quanto
ele e me suponho inteligente, e essa seria a minha única
característica ou recurso que tenho em mãos para conquistar aquela
bela mulher. Talvez vocês questionem, chamando-me de preconceituoso
porque não a chamei de inteligente. Respondo: quando contemplo o
belo, nele, particularmente, incluo a inteligência. Esse modo de
pensar, que aglutina o belo e o sábio, foi comum a muitos homens e
mulheres da geração de Jorge, da minha geração, da geração dos
autores desse Blog – vejam só! esquecemos de chamá-los para esse
encontro nesse Café! – em suma, das gerações que tem hoje acima
de quarenta e poucos anos de idade. Antes que você me corrija,
Lucas, aceito seu possível comentário a meu respeito –
pretensioso, presunçoso, pedante! -, afinal, você e muitos de seus
amigos também admiram as pessoas inteligentes. Você tem razão! Mas
você há de convir que na história da humanidade existe o fenômeno
da moda e, ser inteligente, nos anos 1960 e 1960 fazia parte da moda,
mesmo que muitos não fossem tão sensatos como se imaginou.
Mulheres como aquela ali e rapazes franzinos, exibiam-se com livro de
escritores existencialistas, com livros de filosofia e nas filas dos
cinemas de Arte. Livros de autores como Marcuse que Jorge citou,
eram, por assim dizer, uma moda como são hoje os smartphones.
O que posso afirmar, amigos, é que não há dúvidas, estamos fora
de moda.
Andei folheando umas revistas velhas e vi que, por exemplo, nos anos
1960, a lista dos Best Sellers da revista Veja,
eram livros que hoje são considerados difíceis ou, como diriam,
“cabeça” demais. “Todos os Homens são Mortais” de Simone de
Beauvoir, “O Estrangeiro” de Camus a “Idade da Razão” de
Sartre são alguns exemplos que encabeçam as listas dos mais
vendidos naqueles anos. Mas será que o mundo naquela época era tão
mais inteligente assim? Bem, para quem hoje pensa que Beethoven é o
nome de um cachorro, ou que Sócrates foi um jogador de futebol
inteligente, ou ainda, que Molière é um erro de digitação da
palavra “mulher” – como tentou me corrigir uma famosa livraria
(repito livraria) virtual – Ler Camus seria o mesmo que ler a
Odisséia em grego arcaico. Você tem razão, Jorge, estamos num
buraco desgraçado e aproveitando esse nosso encontro com Lucas,
contarei aos dois sobre um acontecido, um outro, mas lamentável
encontro. Corrijo-me, um reencontro.
Detesto
reencontros, reuniões de pessoas que não se vê há zilhões de
anos e que as únicas frases ditas geralmente são amenidades vagas
que se esgotam em poucos minutos. Indaga-se, de início, um
mini-curriculum profissional-vivencial-estético – “Você está
fazendo o quê? Você tá bem? Você não mudou nada!” – e,
termina-se discutindo a meteorologia ou o trânsito da cidade.
Inevitavelmente fui, por assim dizer, “convocado” para uma
confraternização desse tipo em razão de um aniversário de uma
pessoa amiga. Lá chegando reencontrei – este prefixo “re”,
por sinal, iria se repetir várias vezes naquela noite nas palavras
resgate, retorno, rememorar, reduzir, rever, repensar – enfim,
reencontrei várias pessoas que não via há tempos. Uma delas, uma
mulher, chamou-me atenção. Sônia como a chamarei, era uma grande
amiga dos tempos de faculdade da área de ciências humanas, fazia
sociologia e naqueles remotos tempos, lia Lévi-Strauss (antes desse
nome se tornar uma marca de roupa), tossia Manuel Bandeira, arrotava
a ética Spinoziana, enfim, tinha todos os predicados – palavra
démodé
– de uma bela e, como estava na moda, inteligente mulher dos anos
60. Com cabelos negros encaracolados (não havia necessidade de
chapinhas), seus pés calçavam chinelos baixos, de couro cru, dando
impressão de que caminhava descalça pelos lugares – uma mulher
andar descalças naqueles anos era um ato muito sensual. Sônia
citava trecho de Rimbaud em francês, gostava de Clarice Lispector,
assistia aos filmes de Fellini, Ettore Scola, Pasolini (um diretor
pornô permitido), Bergman. Fui a sua formatura cujo “baile”
aconteceu, imaginem!, num botequim no centro da cidade, nos arredores
do “beco da fome” – ah! Como essas recordações são nítidas
e agradáveis quando conto a vocês ... Enfim, passadas algumas
décadas, Sônia estava lá, naquela festa, na minha frente. Nossas
faces, nossos corpos mudaram, nossas belezas eram resíduos daquela
juventude de trinta ou mais anos – há algo escrupuloso no processo
de envelhecer. Lembro-me que numa conversa universitária, ainda com
desprendimento de adolescente ouvi de alguns amigos que o bom da
inteligência é que ela era uma espécie de consolo para as
transformações do corpo – naqueles anos, pensávamos o corpo e a
alma, Lucas, como dois países à beira de uma guerra. Seguindo,
contudo, esse ingênuo raciocínio, eu iria reencontrar no semblante
de Sônia, já uma senhora, toda uma explosão de sabedoria. Puro
engano. Percebi que aquela amiga tão culta e tão lida (antes linda)
tinha se transformado na sua inteireza do vinho para a água. A sua
inteligência havia se alisado como os seus cabelos e sua futilidade,
assim como sua silhueta, tinha ganhado uns quilinhos a mais.
Tornara-se uma pessoa rude, rústica. Na primeira conversa ela
ensacolou a sociologia, a literatura, Levi-Strauss, o cinema
italiano, Rimbaud, Camus etti
alli, e
todos
os ismos daqueles
tempos. Nessa sacola tinha uma doença,
uma
doença grave da qual chamou de juventude.
A
juventude era-lhe algo como uma doença mental, como num delírio de
grandeza. Como pude ver ela estava bem curada dessa doença –
disso não se podia contestar. Vocês devem estar se perguntando: e,
uma vez curada, qual seria a sua verdadeira saúde? Ela foi taxativa,
seu pragmatismo era ofensivo. Hoje Sônia é funcionária pública
frustrada, mas bem remunerada, perto de se aposentar. Sua grande
aspiração de vida era entreter-se em saber das biografias de
personalidades que julga relevantes: Leonardo, Maximiliano, Milton,
Newton... Engana-se, Lucas, se você pensou que ela havia se
interessado pelas vidas do pintor italiano, do imperador germânico,
do escritor ou do físico inglês. A vida de minha ex-bonita amiga
resumia-se em assistir ao BBB – esses eram os nomes de seus
integrantes na ocasião. Por algum momento, pensei que ali estava
outra mulher de nome homônimo, que não era, não podia ser a Sônia
que imaginei. Mas as coisas pioravam a todo momento. Falava-se em
programas de auditório, viagens a Miami, e de revistas de fofocas
televisivas. Enfim...
Se
você, Lucas, acha normal realities
shows
ou tudo que falei, penso que farás ressalvas se disserem que são
atividades frutos de hábitos de inteligência. Há alguns que se
justificam, assistem a esses programas para “ter um entendimento,
um estudo, da alma humana” – eu, particularmente, preferia quando
esse cinismo era utilizado para se assistir os filmes de Pasolini...
Vejam
como são os nosso estudiosos alunos e pesquisadores!
Por
falar nisso, Lucas, permitam-me fazer dois comentários – os únicos
comentários críticos ao seu texto. Quando você questionou a
palavra aluno você foi à etimologia que vem sendo difundida no meio
acadêmico. Algo que se aproxima da ideia de “Sem luz”. Posso dar
uma opinião? esqueça essas filigranas, essas discussões não levam
a nada e fazem parte do discurso do politicamente correto – veja o
artigo de Paulina Souza da semana passada - de alguns setores
acadêmicos. se eu fosse me restringir em usar de maneira correta
algumas palavras com suas devidas relações etimológicas, algumas
denominações soariam estranhas... Se aluno é “sem luz” e eu
resolva fazê-lo, por exemplo, com luz “portador de luz” (lucem
ferrem)
e de “genialidade” (daimon),
eu teria duas novas formas de denominá-lo: lúcifer e demônio. Veja
só! São essas as etimologias. Há quem diga que a palavra aluno
nada tem a ver com “sem luz”, mas com “menino” ou “discípulo”
(alumnus)
– pesquise mais, se tiver interesse. Eu sinceramente não tenho
interesse algum.
O
que quero dizer com tudo isso – e agora falo para vocês dois,
Jorge e Lucas. A primeira reflexão é de que não há momentos que
determinados seguimentos foram mais inteligentes que outros. O que
há, são interesses inteligentes e imbecis – restrinjo-me em
utilizar apenas a palavra “interesse” – alternado-se em
diversos momentos da história. Se vocês me perguntarem o que
movimenta esse pêndulo... não tenho a menor ideia – quer dizer,
tenho, mas isso merecia outro artigo.
Começo
a enxergar um pequeno grupo de jovens que estão se cansando da moda da
ignorância.
Enfim, Sônia foi um sonho – mas
convenhamos (não é Jorge?) foi um sonho bom...
Um comentário:
Serei sincero ao dizer que pensei em fazer um texto replica, mas não me sinto motivado para tal, não porque o assunto não seja propicio, pois tenho certeza que a partir da tua fala, tenho material e assunto para escrever uns dois artigos. Por outro lado, como foi direcionado a mim e a Jorge, me sinto na obrigação de no mínimo comentar. Gostei do texto, e para esclarecer, o uso da breve explicação sobre a epistemologia da palavra “aluno”, foi apenas para ilustrar, já que apenas quis usar termos definidos para explicar meu pensamento. Não vou me atrelar à breve origem da palavra aluno, e nem a origem de nenhuma delas.
Concordo que a moda atual não seja de ser inteligente, mas você a de concordar comigo que existe uma valorização do passado um tanto quanto exagerada. Não tenho medo de afirmar que as pessoas da sua época escutaram que o passado daquele tempo era melhor. Os pais dos jovens da geração da década de 60 diriam que os seus livros eram melhores, que suas musicas eram melhores e quem sabe até que seus sonhos eram melhores. Em relação a historia que você narrou, apenas direi que não é meu sonho, e não sei como de fato foi vivido o sonho de vocês, mas posso dizer que se a juventude for um sonho, estou vivendo o meu agora, e não pretendo acordar, não para pior.
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