quarta-feira, 19 de setembro de 2012


POÉTICA,
OU SIMPLESMENTE: VIDA
Jorge Armando

            O que está dentro de um cavalo de papelão? Alma? Mistérios? Lembranças? Vácuo e vazio? Sentimentos? Histórias? Solidão? Devaneios? É tarefa da poesia e do poeta desvendar. O que está por detrás das coisas que os olhares mais ingênuos e apressados não vêm o poeta vê. Aliás, o poeta sente. Sente o sentir dos objetos inanimados, do passado no presente, o amanhã do ontem, o sossegar da tormenta, o recordar do já esquecido e o adormecido que nunca dorme. O inexpremível se exprime na poesia. Um poeta é, pois, um visionário, um profeta e um curandeiro que ressucita mortos. Ele dialoga com fantasmas e sombras, e é acima de tudo alguém que se retirou do instante e se isolou do empirico para solitário compartilhar desertos onde há vida e vida onde há desertos. Decididamente um poeta é um estranho.
            Não existem regras para se fazer poesia, já dizia Maiakóvsky: "poeta é o homem que cria as regras poéticas". Então, de que argamassa e matéria é feito um poeta? Como se faz o seu idear? A alma de um poeta é a alma de um homem comum que deixou de ser comum ao enchegar o incomum das coisas comuns. Um poeta é feito de infância e sonhos, como se perambulasse sempre entre o que já foi e o que nunca será. Simplesmente ele é um contador de afetos e quimeras.
            A poesia está onde o poeta está, afinal em tudo há poesia. Um poema, por exemplo, não se cria, se descobre. Ele está ali hibernando no óculos deixado sobre a poltrona, na folha caída na rua, na mulher que passeia com seu cachorro, no atravessar de uma ponte, no tear de uma aranha, no entardecer de uma dia chuvoso, na lágrima de uma criança triste, no sorrir sem dentes de um velho, na brisa quente do verão, numa folha de papel não usada, na luz acessa de uma janela distante, na roupa pendurada no varal, no silêncio dos elevadores, nos porta-retratos, nas nuvens, nos horizontes... em qualquer lugar, objeto, pessoa ou situação. A poesia habita por debaixo das mesas, nos bares, farmácias, esquinas, nas ruas, nas casas fechadas ou abertas, nas igrejas, nas matas, nas multidões e nos liugares ermos. A poesia está onde a vida a descobre. Sim, um poeta é um voyeur que pelo brechar das frestas busca desnudar a poeira das aparências e do corriqueiro.
            Fernando Pessoa definiu o poeta como um fingidor ("finge tão completamente/que chega a sentir que é dor/a dor que deveras sente"), já Ortega Y Gasset afirmava que o poeta é alguém que diz algo que ninguém ainda disse, mas que também não é nenhuma novidade. E, talvez, quem melhor sintetizou o assunto tenha sido Victor Hugo quando clarividente exclamou: "Um poeta é um mundo encerrado num homem".
            Como psicológo clínico também encontro poesia e faço poemas entre as quatro paredes de um consultório. Nas narrativas de nossos clientes e nas entrelinhas de seus discursos acham-se inumeras metáforas, imagens e versos, afinal o ser humano é por si mesmo uma enorme e inesgotável alegoria. Em latim verso significa "voltado, virado". Versar, portanto, é virar ao contrário. Em uma certa intervenção terapêutica revelei a mim um verso quando expressei à pessoa do meu cliente que ele precisava "sair para dentro". Ou em outro momento quando interpretei que "a infância ficou pequena demais para ele". Uma verdadeira prosa poética se constrói no encontro, no diálogo e no embate entre o discurso do cliente e o dircurso do terapeuta. E assim surge um terceiro discurso, uma nova narrativa. Inquestionavelmente um psicoterapeuta é um poeta.
            Um dos mais importantes e significativo poeta alemão, Rainer Maria Rilke, em seu cultuado "Cartas a um jovem poeta", ensinava com simplicidade a um jovem indeciso poeta que "se a própria existência cotidiana lhe parecer pobre, não a acuse. Acuse a si mesmo, diga consigo que não é bastante poeta para extrair as suas riquezas". Um poeta, diz Rilke, nunca se deixa enganar pela superfície. E seguindo o que também diz o poeta inglês William Blake, "se pudéssemos limpar as portas da percepção, tudo se revelaria ao homem tal qual é: infinito".
            Que venham, pois, os próximos poetas. É deles o meu amanhã. O homem, o ser humano, é permanentemente um espanto que se surpreende e se encanta com o canto que há em cada canto do seu habitar. É como se fosse uma espécie de alienígena curioso que olha o corriqueiro e o redor com olhares de estrangeiro. E com ele o plural transforma-se singular, e o ordinário vira extraordinário. Celebremos, então, a vida com tudo que nela há e em tudo que ela é. Suas glórias, triunfos e quedas; com suas alegrias e tristezas; com suas delícias e dores; com seus aromas e fedores; com seus silêncios e barulhos; com suas perdas e ganhos, com todos seus entulhos...
            E como a vida continua, a poesia continua. deixo com quem aqui agora está estes versos do poeta português Fernando Namora, cujo título é Coisas, Pequenas Coisas:
"Fazer das coisas fracas um poema.
Uma árvore está quieta,
murcha, desprezada.
Mas se o poeta a levanta pelos cabelos
e lhe sopra os dedos,
ela volta a empertigar-se, renovada.
E tu, que não sabias o segredo,
perdes a vaidade.
Fora de ti há o mundo
e nele há tudo
que em ti não cabe.

Homem, até o barro tem poesia!
Olha as coisas com humildade".

Jorge Armando

Um comentário:

rotina criativa disse...

As vezes me espanto com as coincidências que ocorrem, se é que de fato existem coincidências. Há pouco tempo li "Cartas a um jovem poeta" e este livro foi um suspiro com efeito de ventania para mim. Sabe aquelas leituras que te transformam, que pintam o mundo com um colorido antes não visto? Pois bem, foi isto o que ocorreu. E antes de ler esse texto estava pensando no livro, na citação que o autor utilizou, e em tantas outras coisas. Chegando ao final só tenho a agradecer por ter reativado alguns sentimentos bons. Não sei, não dá pra pensar que é coincidência. Obrigada Jorge. Valeu! (: