domingo, 9 de setembro de 2012

QUANDO A PAIXÃO VIRA PENSÃO: DA CONJUGALIDADE À DIVORCIALIDADE PARTE I


Todas as relações de amor um dia chegam ao fim, nem que seja quando a morte as separa. Mas nem sempre uma história de amor termina pelo morrer de um dos amantes, aliás, o final de uma relação amorosa em vida transforma uma história de amor em outra história.

                O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, provavelmente depois da morte de Norberto Bobbio o último grande intelectual pós-guerra vivo e em atividade, aponta que em um mundo impregnado de sinais incertos e ambíguos, cuja rapidez de suas mudanças nos deixa confusos e um tanto vagueantes e perdidos, as relações afetivas e íntimas tornam-se cada vez mais flexíveis e frouxas, o que aumenta ainda mais a sensação de insegurança. Em seu livro “Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços afetivos” (editora Zahar) Bauman agudamente nos alerta sobre como uma sociedade e cultura onde a descartabilidade das coisas impera e se valoriza o instantâneo e o transitório acaba afetando a vida familiar, sexual e amorosa das pessoas nela viventes.



                Em uma sociedade líquida, nos dizeres de Bauman, o longo prazo é exceção à regra. As ligações amorosas são flácidas e os laços afetivos são facilmente desatáveis. O se apegar foi trocado pelo se pegar. Mais do que ficar com alguém no sentido de permanência, vive-se ficando no sentido de não ficar. Uma sociedade destradicionalizada, como afirma o também sociólogo inglês Anthony Giddens, é o lugar por excelência dos “relacionamentos puros” (desincorporados de expectativas normativas) onde as relações perseveram enquanto correspondem e gratificam as partes envolvidas. São relações em que cada um tem sua própria expectativa e objetivo, enquanto a relação gratifica tais perspectivas a mesma permanece, quando não acaba. Simples assim.
                Sim, não se iluda caro(a) transeunte leitor(a), vivemos o mercadejar do amor. Em uma sociedade de consumo – cuja essência e sobrevivência se baseiam na abundância e no descartável – o que mais há é uma fartura de corpos e uma efemeridade afetiva. Tá ficando cada vez mais difícil o hoje chegar no dia seguinte. Esquecemos as lições de Erich Fromm ao referir que “o amor é uma atividade, não um afeto passivo; é um ato de firmeza, não de fraqueza; é propriamente dar, e não receber”. Até parece, né? Olhemos ao redor. O que vemos? Muitas pessoas buscando o amor como satisfação e não como um espaço de realização. Estamos cada vez mais “analfabetos afetivos”, estamos desaprendendo a amar ou amando de outra forma: rápida, curta, passageira e intolerante às mínimas frustrações.
                O ser humano trás consigo uma necessidade que lhe é humana: a necessidade de pertencer a alguém ou alguéns. Chamamos isto de sentimento de pertença. Da mesma maneira que o corpo precisa de alimento para se manter, desenvolver-se e se fortalecer, o nosso psiquismo igualmente precisa de amor para se manter, desenvolver-se e se fortalecer. Todo ser humano, em grau maior ou menor, necessita sentir-se amado, assim como necessita amar. Dos nossos primeiros vínculos afetivos fundantes partimos para outros vínculos que, embora não nos sejam fundantes, são mantenedores desta intrínseca necessidade humana em se vincular. Espécie de eco emocional com a nossa primeira infância. Daí porque o ser humano busca tanto se conjugalizar.
                A relação conjugal (formal ou não) é a relação entre pessoas que decidem e se unem uma à outra na busca de uma vida mutuamente compartilhada. Por isto tais pessoas são denominadas de cônjuges, do latim “cônjuge” (com = um com outro, juge = ligação). Psicodinamicamente entende-se que a união amorosa entre duas pessoas não é determinada livremente pelo acaso, afinal por detrás ou por debaixo de nossas supostas escolhas conscientes mecanismos inconscientes identificatórios nos influenciam. Há, pois, em toda e qualquer conjugalidade um entrelaçamento de identificações em jogo. Não desprezemos ingenuamente a força das heranças que trazemos em nossa “bagagem psíquica”, advindas desde nossas relações primárias, bem como herdadas de nossa cultura e história familiar e social.
                No tocante ao estudo da conjugalidade destaca-se dois tipos diferentes de conjugalidade, a saber: uma estrutura conjugal baseada na simetria e na gemelaridade, isto é, uma idealização mútua onde os egos não parecem se diferenciar, com ênfase na completude; e uma outra cuja ênfase recai na complementaridade e os egos envolvidos são suficientemente discriminados entre si. Evidente que temos assim, diametralmente opostas, duas conjugalidade em suportes distintos: a primeira imatura e a segunda matura.
                Evidente também que o cotidiano compartilhado há de desnudar o casal das cobertas ilusórias da paixão. A realidade muitas vezes é o antagonista do sonho e quando a idealização diminui sobrepõem-se os defeitos ou qualidades do outro que não gostamos. É aqui, como se diz no jargão futebolístico, que vai se saber quem é menino e quem é homem. A conjugalidade estruturada em bases narcisistas não suporta e se dissolve frente uma realidade divergente da idealizada. Àqueles que esperavam felicidade sem dor ou renúncia vê escapar da cena conjugal a felicidade fácil e romântica dos primeiros instantes, como se ela evaporasse como fumaça entre seus dedos.
                Não é tarefa fácil manter a conjugalidade em tempos de fluidez e imediatismos. A frouxidão dos laços afetivos revela a vulnerabilidade e precariedade cada vez mais manifesta como fraturas expostas. A expectativa de vida dos casais hoje é mais curta do que a de seus membros. A lógica do consumismo extrapolou o campo das mercadorias e invadiu a esfera psíquica dos afetos. Em um mundo de frenéticos prazeres superficiais e efêmeros homens e mulheres buscam estabelecer suas parcerias em um pano de fundo onde qualquer mínimo dessabor é imediatamente deletado. Entra-se e se sai de relacionamentos como quem cruza portas e transita em corredores cada vez mais curtos. 

                Em interessante artigo publicado em Psicologia Reflexão e Crítica da UFRS (vol. 11, nr. 02, 1998), “Casamento Contemporâneo: o Difícil Convívio da Individualidade com a Conjugalidade”, Terezinha Féres-Carneiro discute as tensões existentes no casamento entre duas forças antagônicas: a individualidade e a conjugalidade. Comenta ela que os ideais hoje vigentes projetados na figura conjugal enfatizam muito mais a autonomia e a satisfação individual de cada cônjuge do que a interdependência relacional. Os desejos individuais se sobrepõem-se aos desejos comuns e projetos conjugais. A antiga lógica do “para sempre” não mais vigora, muitas vezes imperando no ideal contemporâneo de casamento que o outro tem de ser uma espécie de reservatório inesgotável que busca atender todas as necessidades manifestas e latentes. E nesta elevada expectativa e hiperexigência o casamento sofre conflitos, pressões e tensões que podem levá-lo à ruptura e dissolução. Mas isto será tema da continuação deste assunto no próximo post a ser brevemente publicado.
(continua)
Joaquim Cesário de Mello
LiteralMENTE

Um comentário:

Alice disse...

O texto de Terezinha Féres-Carneiro marcou minha vida. Esse seu texto está perfeito, perfeito, perfeito!!!Parabéns. Apesar de que... o para sempre é sempre difícil...