sexta-feira, 28 de setembro de 2012

CESTA DE VERSO & PROSA

A DEDICATÓRIA
VOCÊS NÃO ME CONHECEM. Chamo-me Damaso e fui presenteado ontem com um livro. A pessoa que me presenteou, um grande amigo, fez questão de que o autor me fizesse uma dedicatória mesmo sem minha presença. Disse-me: "queria que escrevesse em poucas palavras as características de sua personalidade"... pois bem, não li no momento em que ganhei, estava escuro, pude apenas, na penumbra, ler o título do livro: "O Livro Submerso", de um autor que até então desconhecia – quer dizer, conheci Marcos Creder agora há pouco – e graças a ele pude escrever esse texto. Na verdade, não escrevi, narrei a ele toda esse pequeno acontecimento e ele pacientemente pôs no papel. Descobri que escrevia num blog - esse blog.
Hoje de manhã tentei ler a dedicatória, mas como as palavras estavam amarrotadas pela pressa do autor, não tive qualquer entendimento. Havia algo como: "ao amigo Damaso...", o restante era incompreensível. O texto era curto, contaria no máximo com mais dez palavras, uma delas tinha o formato da palavra "estima", e outra parecia com "distinto". Enfim, não havia qualquer suposição do que o texto queria me dizer. Fui então a internet e coloquei o nome "Marcos Creder", e o google me corrigiu, você não quis dizer marcos ceder. Não! Não quis... Abaixo havia algumas referências a um psiquiatra. Cada vez que lia os links entendia menos: Livro Submerso, psiquiatria, consultórios, Graças, Dor, LiteralMente,  essas palavras pareciam formar o mesmo embaraço da dedicatória. Fiz algumas suposições interpretativas: um psiquiatra escrever um livro de nome "O Livro Submerso"... esquisito! O mais estranho ou surpreendente era o amigo meu me presentear com um livro de um psiquiatra e, ainda assim, pede para descrever minha personalidade... Havia um incômodo entre o presente e o autor. Foi nesse momento, que tomei a palavra parcialmente incompreensível na dedicatória e coloquei mais uma vez no buscador junto com algumas palavras-chaves, "distinto", "psiquatria", "Marcos Creder". Troquei algumas vogais e consoantes e tive várias possibilidades de temas, mas uma delas me chamou atenção: você não quis dizer distimia? O que era isso? a resposta não demorou: "transtorno mental crônico", "depressivo irritável", "mau humorado", "baixa auto-estima" – fazia sentido agora a palavra "estima" solta no texto. Abri o livro, era um livro de contos, li um deles. Uma angústia me tomou e corri para a primeira livraria para saber mais desse autor.
O dia de hoje começou como esses dias claros de inverno, e, ao tomar o ônibus, sentei-me ao  lado de uma jovenzinha com (acreditem!) o mesmo livro na mão – uma dessas coincidências que surpreendeu o próprio autor - "meus leitores são uma raridade", disse-me com um olhar de surpresa quando o conheci. Tentei puxar alguma conversa com a aquela mulher, mas nada me fazia aproximar. era monossilábica, desconfiada, coisas de mulher. Não tive outra escolha , fui objetivo:
"Você comprou esse livro aonde?"
"Eu não comprei, emprestaram-me"
Olhei o semblante da jovem mulher e percebi que tinha traços joviais, de uma beleza franca – a franqueza, sem dúvida, estava no seu olhar, eram dois olhos negros que no franzir da testa concentravam nas coisas do mundo. Tentei procurar no seu suave rosto um transtorno psíquico, uma distimia (essa palavra me soava meio dissonante, fazia-me lembrar disritmia) mas nada observei. Mostrava  nos cantos da boca um desejo, apenas um desejo, de sorrir.
"Olha, eu o conheço. Tomei esse livro emprestado de um amigo em comum...", emendou, "soube que ele é professor de uma faculdade no curso de psicologia".
Aquele dizer era-me ao mesmo tempo tranquilizador e apreensivo. Psicologia, psiquiatria, psicanálise... era uma sequência de palavras que me transbordava dúvidas e temores.
"Você não teria o telefone dele para..." contei-lhe sobre a dedicatória.
"não costumo receber ou dar telefonemas... tenho uma pessoa, um namorado que  não ia gosta que eu troque telefonemas...”, tomou, enquanto explicava, o meu volume em suas mãos e “é, realmente está ilegível!”
Fez vários comentários, mas havia me distraído na sua reposta inicial. Confesso que o argumento do telefone havia me surpreendido e me dispersado - Afinal, de que tempo essa moça é?, pensei. Imaginei ela não mais uma estudante  com "O Livro Submerso", mas uma carola, quem sabe evangélica com o o livro sagrado. Na verdade, pensei coisas muito diversas. Como seu rosto não tinha nada de bíblico, imaginei uma escrava oriental, uma gueixa,  que se submetia aos caprichos do outro - do marido ou namorado - Essa palavra escrava... Pensei calculando alguma insolência no seus olhos, inclusive, não tão longe, mas já no Ocidente, no Marquês de Sade  – o seu olhar era polifônico.
"Tem um conto ótimo: leia esse!"... apontou-me o Espantalho.
Para minha surpresa, aquela mulher havia me indicado o único conto que tive oportunidade de iniciar... Olhei o seu semblante mais uma vez e vi nela o rosto moreno, de cabelos e sobrancelhas negras, da personagem Bárbara – não vou dizer mais nada sobre o conto em respeito vocês que não leram, nem sei se lerão.
"Por que você não procura o autor na faculdade ou no e-mail?", mostra-me o e-mail próximo da ficha catalográfica.
"Prefiro falar pessoalmente. Como chegar até ele? Posso falar do seu nome?"
Pode sim! Diga que esteve com Luana.
“Mas que Luana? só Luana?”
"Basta dizer Luana amiga de César..., um amigo meu", mostrou-me o nome de César escrito na dedicatória do volume que carregava.
"à César, por acompanhar esse percurso, um abraço, Marcos"
Ora, como era claro a dedicatória ao amigo de Luana! As letras formavam palavras que formavam sentido.  Luana que não entendia meu desapontamento.
Tomei outro ônibus... Desci. Uma faculdade.
                                                                      *   *   *
"Olha, sinceramente não fui eu quem escrevi isso... Essa letra, inclusive, não é minha ” - disse Marcos comparando a caligrafia com alguns papéis seus. Falou que não conhecia meu amigo, apenas de nome. Falei, então, sobre a distimia e ele soltou um sorriso.
" Luana? Não, não conheço”, e irônico, “Cesar só o romano!”
Marcos toma o livro de minha mão, tenta decifrar a dedicatória e me diz:
“isso aqui não é ‘distinto!’, nem ‘distimia’... é ‘distante!’. A palavra é distante”.
No meio da rua vejo um ônibus passar, olho para o seu interior e procuro Luana. Tenho a lembrança cintilante de uma mulher de olhos negros que trazia uma ou mais Bárbaras dentro de si.
Damaso de Barros (por Marcos Creder)

2 comentários:

Unknown disse...

Muito bom!!! Muito bom mesmo!!! bjbjbj

Cristiane disse...

Que autor é esse que faz uma dedicatória a um leitor desconhecido, apenas com alguns traços de sua personalidade, dito ainda mais pela boca de outrem, mesmo este sendo o melhor amigo?! E precisa do Google? No próprio livro, ou melhor, dizendo, a maioria deles traz uma minibiografia do autor. E quem acaba de conhecer o Marcos Creder depois de ser presenteado com sua obra sem saber sua “referência”? Não é a toa que o nome do livro é Submerso. Ao entrar no ônibus e encontrar alguém com o mesmo na mão enquanto se dirige a uma livraria???? Nem na Cultura ele iria descobrir algo mais do que na própria aba do livro. O que um misero atendente iria saber dizer sobre um autor? Não seria melhor ler o livro? Ou procurar o amigo que o presenteou? Acho que o cara errou o caminho da pesquisa! Deveria ter ido às Graças. Mais parecia um devaneio, o Damaso estava submerso nele mesmo. Ou melhor, o Marcos! Que fixação! Muito suspeito! Só coisa de filme, de sonho, de livro (lembrou-me uma passagem do livro do Jostein Gaarden, rapidamente mais lembrou) entrar num ônibus, sentar ao lado de alguém do sexo oposto, e ter em suas mãos o mesmo livro que está lendo? "A Luana não existe." Mas caso fosse real... Francamente. Jogaria tudo para o alto. Autor. Dedicatória. E iria querer saber sobre quem está ao meu lado! Ficaria surpresa era com Deus! Que destino é este! O que ele me quer dizer? Passagens como: - Olha, eu o conheço / não costumo receber ou dar telefonemas / Confesso que o argumento do telefone havia me surpeendido./ Não vou dizer mais nada sobre o conto para respeitar que vocês que não leram. – Deixa com um pé atrás! Gostei muito Dr. Marcos. O Sr. é excelente. Sabe mexer e remexer com nossos sentidos! Parabéns! Um a mais! Cristiane Menezes