domingo, 2 de setembro de 2012

MONTAIGNE, HOLBEIN E O TANGO ARGENTINO


Venho percebendo que tenho ultimamente utilizando os textos de Joaquim Cesário como mote para meus artigos. Que explicação eu poderia dar para isso?  Tenho algumas hipóteses – todas elas puramente especulativas. Amizade? Sem dúvida! Sintonia de inquietações? Provavelmente! Falta de imaginação? Quem sabe... Mas há em mim, desde os tempos remotos, a necessidade em entabular diálogos sejam eles quais forem.   Na adolescência apesar de tímido, elegia um restrito número de amigos de colégio, sentava na sombra debaixo de uma árvore, uma mangueira, e na hora do recreio e das aulas educação física – que eu dificilmente participava – punha-me a conversar sobre as coisas mais estrambóticas da vida: o cosmos, a vida, o capitalismo, o religião e de muitas outras inutilidades. Digo inutilidades porque eram, naquela ocasião, coisas que pouco interessava as pessoas de nossa idade. Éramos Nerds antes dessa denominação existir ou se popularizar.   O literalMENTE vem trazendo de volta estes diálogos, mesmo que a distância, daqueles e de muitos outros temas que com a maturidade deixam de ser inúteis. Temas, muitas vezes, irrespondíveis. Contudo, o último artigo de Joaquim (“Da precariedade da vida e outras finitudes”) trouxe recordações desse passado, de algumas leituras posteriores, de algumas experiências e relatos que me foram expostos em diferentes momentos da vida. Um relato recente, em especial, foi para mim bastante marcante.

 Soube de outro amigo, que ao viajar recentemente à Buenos Aires teria ido a uma casa de tango, daquelas bem turísticas e comuns aos roteiros argentinos.  O ambiente das casas de tango geralmente seduzem com  o requinte, a sensualidade e com a nostalgia, onde o passado, sempre melancólico, tem por assim dizer, um panteão portenho de figuras inesquecíveis: Carlos Gardel, Aníbal Troilo, Juan D’Ariezo, Astor Piazzolla entre outros. 

        Alberto, o amigo que eu mencionei, entusiasmado, fora a “casa” no bairro de Abasto – um  detalhe importante  que aumentaria, mesmo que alegoricamente, o sentimento de que se visitava não apenas geograficamente a capital portenha, mas se caminhava nas “Calles” do tempo. A casa estava lotada e mal o espetáculo havia se iniciado, em torno de trinta minutos, Alberto começou a sentir uma dor ou, mais precisamente, um incômodo leve no abdome que foi progressivamente se disseminado por todo corpo num misto de calafrio, vertigem e  cólica.  Sem saber ao certo o que acontecia, resolveu ir ao toalete para lavar o rosto ou simplesmente arejar-se com a luz mais intensa do recinto e, desse modo, diminuir um zunido que se iniciava nos ouvidos. No caminho, desceu um degrau, ou talvez dois, e, surpreendentemente, os seus olhos no meio daquela penumbra, abriram-se, nitidamente, não mais para o caminho do toalete, mas para a rua, o lado de fora da casa de Tango. Bem rente ao solo - estava no chão com a cabeça apoiada nos braços de algum engravatado - constatou que havia muitas pessoas que lhe  dirigiam  palavras, em tom de apelo, em português e castelhano. 
                           Confuso, leitor? Sim, provavelmente. Alberto, contudo, explicou-me melhor, embora que tenha sido assim que ele viveu e narrou esse acontecimento. O fato foi mais longo no tempo para quem que o assistiu o curto percurso de Alberto. Houve um hiato de longos cinco minutos. No caminho do toalete, o rapaz havia desmaiado, fora socorrido e levado pelos braços e pernas por argentinos e brasileiros para lado de fora da casa de show. Esse trecho de tempo, tenso e comovente, foi uma cena por ele jamais vivida. Sua recordação era sumária: o caminho do toalete seguido das luzes avermelhadas da rua de Buenos Aires. Ao ser abordado lá fora, na ocasião, se estava bem, disse que estava perfeitamente bem; seu rosto lívido, contrariando a ideia de quem teria sofrido um mal estar severo, parecia, na realidade, utilizar-se do frio como um éter prazeroso. Utilizo a palavra éter não por acaso, pois Alberto disse que tivera uma experiência minimamente parecida ao usar lança-perfume há cerca de 20 anos.
                           Sua indagação: seria isso a morte? Seria a síncope – esse elemento tão tangueiro - o intervalo da morte em vida? Essas indagações, na verdade, trazia-lhe contraditoriamente uma sensação de alívio e de reconforto, pois a ideia que tinha da morte era de um lamentável vazio, de uma interminável escuridão, de um lugar eternamente silencioso. Nenhum desses três elementos estava presentes naquela noite. Não houve buracos, as luzes não se apagaram, os sons não se interromperam – o som sincopado do tango trás essa vantagens.  Nada disso aconteceu. E o que foi que houve? “Nada aconteceu”, repetiu.  A morte era isso, esse “nada acontecer”, era esse hiato onde sequer havia aflições.
            Esse relato me fez lembrar um episódio semelhante, embora mais grave, vivido há quatro séculos pelo filósofo Michel Montaigne. Do mesmo modo, após sofrer um acidente ao andar de cavalo, viveu “intervalo” semelhante, e esse acidente de equitação, que o deixou entre a vida e a morte, fez com que tomasse decisões e redefinições importantes na sua vida como narrou sua biógrafa, Sarah Bakewell (autora do recomendado texto “ Como Viver: Uma Biografia de Montaigne em uma pergunta e vinte tentativas de respostas”)

Acredita-se que os seus famosos “Ensaios” teriam se iniciado após essa vivência, quando se encastelou na biblioteca de seu Château em Bordeaux.  Nos seus escritos a ideia de vida e de morte ocupam parte do seu pensamento, contudo, sem aflições, tampouco resignações. Cético, o mesmo Montaigne que disse:  “Todos os dias vão em direção à morte, o último chega a ela” ou  “Os homens têm tal apego à própria miserável vida que aceitam as mais duras condições para conservá-la.",  é o mesmo autor das frases: “Ensinar os homens a morrer é ensiná-los a viver" e  "Viver é o meu trabalho e a minha arte" ( Montaigne também leu Sêneca).


Hans Holbein, o Moço 
Os Embaixadores, 1533, óleo e têmpera sobre madeira. National Gallery, Londres – Inglaterra:



                           Os conceitos parecem se misturar entre o linear e o paradoxal quando se trata de falar de vida e morte. Representa-se com habilidade as coisas da vida, mas a morte parece que não tem ícones. Uma imagem, contudo, ainda me impressiona no quadro de Hans Holbein “Os Embaixadores”.  Na pintura renascentista assiste-se a uma cena, um retrato cotidiano do século XVI, mas se nos detivermos num detalhe abaixo dos retratados, observa-se algo disfórmico atravessar-se como um artefato.  É um crânio distorcido. Essa enigmática imagem tem se desdobrado em várias discussões sobre a ideia de morte e de vida, enfim, da finitude comentada por Joaquim.  Ao ver esse quadro pude entender que a vertigem sentida na Casa de Tango, anuncia essa ideia de morte com o crânio disfórmico – uma ideia angustiante.   “Apenas anuncia, nada mais que isso...”, corrige-me Alberto. Porque, como ele bem disse, não há metáforas para o “o nada acontecer”. Não há tangos sem síncopes.

Marcos Creder

3 comentários:

Gorko Duberoux - Cayo César disse...

Foi em um cenário bem mais modesto e com uma trilha igualmente distante que me aconteceu algo parecido.

Foi no terraço da FAFIRE.

Não houve aura, não houve sinal, vertigem, mal estar, nada. Simplesmente me levantei e me espreguicei em pé.

Acordei com algumas pessoas que estavam no terraço me levantando e perguntando se eu estava bem. Sem entender, como se tivesse me acordado de um sono, fui levantando do chão enquanto eu mesmo tentava acalmar as pessoas que perguntavam "Cayo, você está bem? O que aconteceu."

Enquanto eu os acalmava e tentava entender, respondi calmo "Acho que desmaiei." e foi só isso.

Um momento estava aqui e no outro não estava mais. Por sorte, houve um terceiro momento o que eu voltei.

Mas no hiato não houve nada. Não foi como um sonho, não foi como uma náusea ou uma vertigem. Simplesmente eu estava ali e depois não estava mais.

Enquanto estava sentado, senti a dor no rosto chegando. Cai duro, de cara no chão do terraço. Não teve desfalecimento aos poucos. Cai duro, de cara no chão. Sorte que foi no terraço e não na parada da Conde da Boa Vista (onde, por sinal, não me espreguiço mais. Além de sacadas, janelas, penhascos e/ou desfiladeiros).

Fiz exames neurológicos, entre outros clínicos, tomografia... Não tinha nada. Não me explicaram até hoje o que foi aquilo.

E até hoje um turbilhão de pensamentos me rodeia. Talvez seja assim. Sem túnel, sem luzes, vozes, réquiens angelicais, nem nada. Na verdade, só isso, o nada.

rotina criativa disse...

Naturalmente esse assunto me inquieta muito: A morte. Eu nunca havia tido experiências com essa questão. Jamais vivêncie a morte no meu meio de convivência, até o momento que perdi minha melhor amiga.

O interessante disso tudo é que esse tema sempre despertou meu interesse e já participei de algumas discussões e já fiz um trabalho de pesquisa sobre o mesmo, porém no momento que o vi diante de mim como uma realidade e não teorizado notei o quanto era simples. É tudo muito simples e essa simplicidade é pertubante. Alias, a pergunta que povou minha cabeça no momento da notícia e em outros foi: Então, é assim que é a morte?

Pensar que toda uma existência acaba nesse nada. Nesse nada que acontece sem grandes espetáculos e mistérios. É simples, tão simples que nem parece possível.

Cristiane Menezes disse...

Gostei deste texto, ele prende o leitor ao acontecimento! Mas já eu de ter sofrido vários desmaios enquanto lia o texto imaginei que tais sintomas iriam levar o Alberto a um “apagão”. Alguns segundos. Rápido. Mas que não é o fim, nem a passagem para vida eterna. Cético de Deus era o Montaigne? Provavelmente. A sua frase “Os homens têm tal apego à própria miserável vida que aceitam as mais duras condições para conservá-la.", faz-me lembrar da passagem do evangelista João, na Bíblia: “Quem tem apego à sua vida vai perdê-la; quem despreza a sua vida neste mundo, vai conservá-la para a vida eterna”. (v. 25). Concordo que seus conceitos parecem mesmo confusos; Basta saber viver! A morte do corpo é certeira, vem para todos. Para quê questioná-la? Para quê medo? Com medo ou sem medo, ela existe! Assim como o nascer há o morrer! Vejo-a como uma passagem, um stop na vida terrena. Vida que precisa de amor. Deus. Atitudes e princípios. Doação. Solidariedade. Não é um nada, mas um tudo, a morte não é um experimento. Nem um nada. É o encontro com Deus. Quanto à imagem vejo um globo terrestre, uma luneta, um instrumento musical, talvez dois estudiosos em busca de algo. Mas de resto a deixo para os “Nerds”! Não viria vida, apenas morte! Os corpos após a morte são todos iguais! E é tão interessante como o crânio ganhou a moda hoje em dia! Está em joias, bijuterias, roupas...
Cristiane