quarta-feira, 29 de agosto de 2012




CARTA A UM JOVEM ESTUDANTE
(em resposta a resposta ao texto A Ocacidade da Pedagogia do Vazio)

      Jorge Armando
(poeta, psicólogo e professor universitário)



“O homem superior atribui a culpa a si próprio; o homem comum aos outros”
(Confúcio)

Meu caro jovem Lucas,

                Presumo-lhe jovem pelo teor e maneira de escrever, principalmente pelo reluzente brilho de sonho e esperança. Sim, quanto mais velho na vida vamos ficando em muito se diluem alguns sonhos e parcas vão ficando as esperanças. Embora prossiga meu trajeto com sonhos e esperanças, sinto que aos poucos vai ficando cada vez mais árduo preservá-los. Mao Tse Tung dizia que a realidade é o oposto do sonho. Talvez seja, mas o que será do humano sem o exercício contínuo do sonhar? Luto e me esforço para continuar humano e não me robotizar.
                Em suas reflexões e ponderações existem verdades, assim como nas minhas igualmente. Isto lá significa que você está certo e eu errado ou vice-versa? Não. A verdade é muito mais ampla do que nossas miúdas visões podem alcançar. A verdade, comparativamente falando, é uma sinfonia complexa e polifônica. Como você demonstra uma inclinação pelo chamado pensamento oriental, evidentemente já deve ter conhecido o princípio budista denominado “caminho do meio” que se define como o não extremismo, isto é, a moderação e o meio. É como quando afinamos um violão, por exemplo, pois se esticarmos demais as cordas elas rompem e se afrouxamos demais elas não emitem qualquer som. Em uma linguagem mais pop: “nem eu nem você”. Os dois.
                Sim, caro Lucas, estudante (no sentido de quem literal e visceralmente estuda) é uma coisa rarefeita, todavia isto não é uma questão de geração, afinal desde muito tempo isto é um fenômeno recorrente no seio acadêmico, ou seja, nesta década, assim como na década passada e na outra e na outra... temos mais alunos (aquele que só “estuda” quando obrigado pelo professor ou pela escola) do que estudantes. Tem sido assim há muito tempo. Acontece que, como você mesmo reconhece, o número de alunos matriculados nas faculdades e universidades aumentou exponencialmente nos últimos anos. Digamos que 20 anos atrás 20% do corpo discente fossem de realmente estudantes, Os outros 80% são apenas figurantes, ops, digo, alunos. Digamos que tal proporção (20 – 80) persista. Proporcionalmente é a mesma coisa, contudo quantitativamente é bem diferente. Digamos que em uma IES qualquer houvesse 20 anos atrás cerca de 1000 matriculados e que hoje tenha 4000. Ora, 80% de 1000 é 800, enquanto 80% de 4000 é 3200. Mesmo que 20% continue 20%, o aumento quantitativo de 400% é bastante considerável. Se antes eram 800 circulando corredores, salas e pátios; agora são 3200. É como aumento de número de carros na rua: o tráfego aumenta e congestiona-se o sistema viário. É muito barulho e muito ruído, e para se conversar se tem que gritar.
                Sim, caro Lucas, o que pode ser relevante para alguém pode não ser para outro alguém. Entretanto, estamos estudando Psicologia, por exemplo. Os sistemas teóricos (e técnicos) psicanalítico, humanista, gestáltico, bioenergético, cognitivo, construtivista, sistêmico, interpessoal, etc., são nascidos e desenvolvidos dentro do universo do conhecimento ocidental. As origens gregas, romanas, latinas, renascentistas, anglo-saxônicas e modernas fundam e lastreiam o conhecimento acumulado e progredido desde então até os dias contemporâneos. Claro, também, caro jovem, que o mundo ocidental por centenas de anos foi influenciado pelo oriente e encontramos nos antigos e nos que nos antecederam ecos macedônicos, sumerianos, egípcios, babilônicos, assírios, mouros, persas, chineses... O pensamento e a sabedoria mulçumana, por exemplo, penetrou fortemente na Europa medieval entre a metade do século VIII e início do século XIII. Só pra se ter uma ideia devemos aos árabes o conhecimento matemático do “zero”. E quanto o “zero” revolucionou tanto a nossa matemática quanto nossos pensamentos.
                Mas venhamos e convenhamos como estudar e compreender o que se está estudando sem o mínimo de conhecimento histórico do caldo cultural que nos trouxe até aqui. Neste aspecto, caro Lucas, não é uma questão de conhecer nome de pessoas ou personalidades, mas ideias. Afinal, as ideias movem o mundo (ocidental e oriental). Nada contra o poeta chinês Li Bai - que em versos cantou que por estar tão perto das estrelas não ousava falar para não incomodar os que moram no céu – mas num dá né pra entender o freudismo sem saber alguma coisa de Platão, Schopenhauer e física termodinâmica (aquela que se estuda superficialmente no segundo grau).
                Porém, caro jovem Lucas, não fiquemos aqui no pouco espaço que temos nos pegando a picuinhas, pendengas, minúcias ou filigranas. Não vamos fazer da temática uma competição entre Sêneca e Li Bai, nem muito menos nos reduzamos a um conflito de gerações. Vamos nos ater ao que decididamente interessa: a qualidade do ensino superior.
                Ensino superior não se confunde unicamente com alunos e estudantes, mas também professores, as próprias faculdades e universidades, o sistema de ensino brasileiro e o sistema capitalista imperante em sua terceira fase, o capitalismo de consumo. O capitalismo tem um dom que lhe é inerente, ou seja, a de transformar, ao estilo Rei Midas, tudo que toca em lucro. Conhecimento – ao menos o suposto e pretenso conhecimento vendido nas escolas em geral – transformou-se em mercadoria. Compram-se mais diplomas e formam-se menos pessoas. Vive-se hoje um acintoso comércio de títulos (vide o que fizeram das pós-graduações). E todos parecem aceitar o convite à festa da simulação e dos simulacros. Ou como escreveu Adolfo Calderón, em artigo na revista São Paulo Perspectiva, “com a chegada das universidades mercantis, pode-se afirmar que se institucionalizou o mercado de ensino universitário”. A coisa toda parece que perdeu ou está perdendo seu mínimo pudor.
                A docência mesma tá se nivelando por baixo. Não vê quem não quer ou não consegue ver pela própria miopia que a vida foi lhe oferecendo. A mediocridade impera de ambos os lados, é só você, caro Lucas, vir pro lado de cá do balcão pra ver o olhar perdido de muitos alunos frente a qualquer coisa que lhes leve a pensar com um pouquinho mais de profundidade. Às vezes é de dar pena. Já do teu lado do balcão deixo a você mesmo o comentário.
                As graduações estão cada vez mais fracas – com professores e alunos anoréxicos culturais – e as pós então, meu deus, é uma repetência só, não havendo nenhuma inovação na maioria das vezes. E quantos professores são apenas meros reprodutores de livros (quando muito), camuflados em aulas coloridas de datas shows? Professores que realmente pesquisam, produzem e praticam são poucos. O modelo vigente é filhote de uma política de educação de massas e não uma educação para as massas.
                O passado não é sinônimo de melhor do que hoje, pois se assim fosse não teríamos as duas grandes guerras mundiais – só pra ficarmos no século passado – o holocausto, Ruanda e o genocídio dos Balcãs na década de 1990, por exemplo. Porém, no passado que a cada dia que passa está ficando remoto o modelo era alicerceado em outros paradigmas. Havia a ideologia de missão, isto é, os aspectos financeiros eram meio e não fins. O aviltamento é visível, meu jovem Lucas, e claro que em qualquer época houve e haverá bons e maus alunos, bons e maus professores, boas e más faculdades, bons e maus profissionais. Apenas que o lado mau da balança tá ficando mais pesado.
                O que mais inquieta nisso tudo, meu querido Lucas (permite-me assim chamá-lo?), é a passividade bovina de quem aceita por apenas aceitar e tão somente. Não sejamos contra os que querem passar a vida ingênuos, medíocres e confortáveis. Direito deles. Escolhas deles. Mas há os que manifestam alguma motivação em conhecer algo mais do que suas cercanias e circunvizinhanças, porém se iludem com o que lhes oferecem e pensam – de bom coração – que estão realmente estudando.  O “homem unidimensional” a que se referia Marcuse (mencionado no primeiro post) é o indivíduo instrumentalizado, massificado e produzido em série como um produto qualquer saído de uma linha de montagem. Esse homem  tecnocrata e consumista alienado é um ser humano acrítico e iludido em sua própria ignorância pelo parco exercício reflexivo em que vive, submerso em um sistema ideologicamente construído. O próprio Marcuse certa vez respondeu a indagação do colega Adorno (outro eminente membro da chamada Escola de Frankfurt, conhecido por sua teoria crítica da sociedade) de que “é possível fazer poesia depois de Auschwitz?". Sua resposta, Lucas, foi que sim, pois  "a arte só pode cumprir sua função revolucionária se ela não fizer parte de nenhum sistema, inclusive o sistema revolucionário”.
                Aos alunos de boas intenções, mas mal alimentados de estímulos e instigações além da superficialidade cosmética que as Instituições de Ensino Superior lhes oferecem (não esquecer que a coisa toda já vem se arrastando desde lá atrás em seu processo de socialização, educação e ensino) fica aqui o alerta e o sincero aviso de que ainda há tempo, enquanto vida houver, para o conhecimento germinante ao invés do pseudoconhecimento rasteiro e ludibriante do estudar preguiçoso, sem esforço e sem dor. Assim, somente assim, podemos sair daqueles supostos 20% e aumentá-los rumo a uma utópica maioria. O que seria de nós sem os sonhos, não é mesmo?
                Finalmente, prezado Lucas, vejo-o parecido comigo. Não é porque estamos alguns anos separados ou abordando ângulos diferentes de uma mesma poligeometria que não haja pontes entre nós e quem mais quiser participar da festa. A verdade é mais ampla e mais complexa do que enxergam os meus olhos e os teus. E se for verídico que no meio podemos melhor ver os extremos e os caminhos que nos levam até eles, façamos o seguinte: “tu me ensina a fazer renda, eu te ensino a namorá”, como dizem estes celebrados versos do cancioneiro popular.
                Considero, portanto, encerrada minha participação temática sobre este imenso assunto aqui no blog. Que tal deixarmos de lado os posts e marcarmos logo uma cervejinha para debatermos mais sobre tudo e um pouco mais? Convidados estão todos os interessados na questão. Falta marcar o dia, o horário e o local...


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