quinta-feira, 29 de agosto de 2013

ESPAÇO DO COLABORADOR

Faxina do cotidiano.


Fiz uma faxina no meu quarto e enquanto organizava tudo comecei a pensar na vida. Tinha poeira por todo canto. Estava uma bagunça. Quando olhava para tudo aquilo me sentia desorganizada também. Então, decide limpar tudo. Iniciei tirando as coisas do lugar. Joguei muita coisa fora. Tinha tanto entulho. Coisas que acumulei. Vi que muita coisa não servia mais. Brincos sem pares. Papéis rasgados. Rabiscos sem sentido. Papel velho. Caixa de remédio. Objetos ultrapassados. Coloquei tudo em uma sacola e sacudi no lixo.

Quantas coisas acumulamos ao longa da vida? A maioria é inútil. Serve apenas para ocupar lugar e não possibilitar que outras coisas surjam. A novidade fica afastada por não ter mais espaço de tanta porcaria entulhada. Para quê acumulamos tanta coisa desnecessária na vida? A existência se torna pesada. Fechada. Congestionada.



Quando organizava a bagunça do meu quarto encontrei algumas coisas que não lembrava mais. Estavam largadas e escondidas pelos cantos do cômodo. Roupas caídas atrás da cama. Um colar antigo. O perfume. Documentos espalhados entre papéis emprestáveis. Coisas que juntava desde a infância mas nem recordava. Alguns juntei e despejei no lixo. Não me serviam mais. Estavam apenas ocupando lugar. Acumulando entulho. Outros guardei. Eles eram úteis.

Quantas coisas importantes esquecemos ao longo da vida? Algumas ainda são úteis para o presente, outras nem tanto. Tanta coisa boa soterrada pela quantidade enorme de inutilidade que juntamos no viver. Saber notar aquilo que ainda pode te servir no presente e o que não. Abrir mão do que não precisamos mais apesar de ter sido bom em outro momento. Quantas coisas perdemos no meio da desorganização que fazemos da vida?

Tive uma surpresa ao perceber a quantidade de moeda que tinha espalhada pelo quarto. Parecia até ser uma caça ao tesouro. No meio daquela poeira e bagunça encontrei algo valioso. Quantas coisas maravilhosas podemos encontrar na confusão da existência? Saber recolher tesouros a partir do caos é fundamental para o crescimento.

Não foi fácil limpar tudo. Durante o trabalho espirrei bastante e senti falta de ar. Era muita poeira. Porém, sabia que era necessário. Precisava limpar tudo, pois não aguentava mais tanta bagunça. Quantas vezes precisamos ao longo da vida ser fortes para ultrapassar ou alcançar algo? É preciso esforço para existir. É difícil, mas quem foi que disse que deveria ser fácil?

Hoje arrumei meu quarto e um pouco de mim.



Andreza Crispim

segunda-feira, 26 de agosto de 2013



O literalMENTE recomenda, para os interessados em literatura, psiquiatria  e psicopatologia, a participarem da apresentação do Trabalho de Conclusão de Curso do Médico Psiquiatra Frederico Maciel, que fará uma instigante ponte entre o fenômeno psicopatológico do ciúme e a novela Sonata Kreutzer de Tolstoi
 
Tema: O DELÍRIO DE CIÚME EM A SONATA A KREUTZER
(Frederico Maciel)
local: centro de estudos do Hospital Ulysses Pernambucano
Avenida Rosa e Silva 2130. Bairro da Tamarineira. Recife-PE
30 de agosto de 2013.  8:30.
 

domingo, 25 de agosto de 2013

A liberdade "politicamente correta"

Dua situações:
1. uma criança pequena está aos prantos porque é obrigada a ir para a casa da avó. Seu pai, rigoroso e autoritário, diz: “sei que é muito chato e desagradável ir  a casa de sua avó, sei porque está chorando, mas você vai mesmo que não queira. Vai porque eu quero que você vá.  Um dia talvez você compreenda as razões.”
2. um pai declina-se para o filho e diz: “olha, filho, sua avó está muito só, adoentada, praticamente não recebe ninguém, e parte desse sofrimento é por conta de uma solidão, do abandono. Ninguém a visita, os seus primos são uns egoístas, só pensam em fazer as coisas ao seu bel prazer.  Penso que ela ficará muito chateada se você não visitá-la e você muito feliz em vê-la”.

Estamos acostumados a ouvir por aí  que quanto mais argumento é dado para  justificar um ato, mais esclarecidos, conscientes e justos nos tornamos. Essa consciência estaria relacionada  ao "bem-estar" do sujeito e do  seu semelhante.  Provavelmente a maioria das pessoas argumentariam que o primeiro pai é um tirano e que por essas razões a criança quando vier a se tornar um adulto desenvolverá um sem número de problemas psíquicos em razão da repressão. “Será um neurótico recalcado”.Já o discurso do segundo pai, pautado na forte argumentação, parece ser mais adequado e  civilizado e, consequentemente mais  saudável. Sendo mais saudável,  o sujeito será, por assim dizer, menos reprimido e livre das "neuroses". Certo? vejamos.

Mesmo que não seja muito evidente, há na segunda figura paterna uma outra tirania, tão severa quanto a do pai autoritário, dessa vez uma tirania disfarçada, velada, que esconde ou desconsidera  o desejo do filho, culpabilizando-o, e, se necessário, colocando-o no lugar de insensível,  caso os apelos do pai não forem atendidos - por conseguinte, o desejo desse mesmo pai também fica pouco claro. Embora que esteja voltado aos bons sentimentos filantrópicos, vê, do mesmo modo que o filho,  a  visita de sua própria mãe, avó da criança, como uma obrigação solidária.  O que está bem evidente é a frase: visito minha mãe/ avó por obrigação - assim como no primeiro caso -  mas aqui acrescenta-se uma ideia não expressa: "talvez seja chato visitar sua avó, mas eu não posso admitir isso”, fato que o primeiro pai não teve nenhum pudor em relatar.  No discurso educado do pai solidário,  a palavra obrigação foi transformada em bondade e amor ao próximo. Quem não tem esse " amor" são os egoístas - os primos. A criança, como foi dito antes, poderá ter uma vida na idade adulto "civilizada",   educada, cortes, mas certamente será de uma cerimoniosidade  que beirará,  sem medo de errar, a hipocrisia. A fala  espontânea se perderá em eufemismos e frases atenuadoras. Desse discurso consciencioso, polido,  diplomático surgirá a fala do discurso chamado hoje de  “politicamente correto”. Não sei bem como se chegou a esse jargão, mas o "politicamente correto"  é maneira de expressar um eufemismo com afirmações aceitas para o senso comum, para o grande público, que muitas vezes se distanciam das verdadeiras intensões das palavras,das falas de maior franqueza. Na verdade, a franqueza se aproxima do desejo, e no discurso politicamente correto -se escamotear o desejo de maneira insolente, como se o desejo não fosse desejado, o que levará, paradoxalmente,    não ao discurso libertário, mas, pelo contrário, a censura da fala desejante.  
Estas proposições foram problematizadas pelo filósofo (e psicanalista) esloveno Slavoj Zizek que tentou relacionar  os mecanismos de repressão e da formação do superego no mundo contemporâneo - de uma sociedade aparentemente  não reprimida. O que se observa é que essas repressões continuam existindo, no entanto, sem a vestimento do autoritarismo. Nessa nova forma de repressão haveria dificuldade de se  expressar o desejo,  e a  ansiedade, que se ligaria ao desejo,  perderia a representação simbólicas levando ao um vazio heideggeriano - fonte de toda angústia humana. Slavoj  Zizek  faz uma comparação semelhante entre o as figuras parentais infantis autoritárias e pseudodemocráticas, como ilustrei hipoteticamente, com as figuras religiosas e não religiosas. 
Particularmente observo muito dessa subtrações própria do discurso politicamente correto como uma nova forma de censura, em alguns aspectos uma censura tão profunda que a convencional que a vivida no passado , pois cria uma defesa de um discurso muitas vezes hipócritas, em razão de defender um pensamento  “do bem”. Uma censura onde a própria palavra censura também é censurada. E assim, como nos anos da repressão dos anos 19060 ou 1970, as obras literárias, os filmes e programas de televisão, as opiniões já começam a ser ameaçados para o nosso "bem".   

Marcos Creder

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

VALE A PENA VER DE NOVO


DOIS POEMAS


25 ANOS



AVE URBANA


Ameaçou um canto
que era mais que um canto,
era um grito.
Empinou o bico
com inútil arrogância
agitando as penas
como se fosse feliz.
       
             Olhou o mundo         
             que flutua por detrás da janela,
             abriu as asas   
             um tanto desacostumado
             e num último arrebatamento
             chocou-se entre as grades.
             Resignado,
             recolheu-se a seu canto habitual
             e fechando as asas e os olhos
             sonhou grandes voos.
                                                                       (1982)


  
NOTURNO Nº 01



                   Há tanto convivo com tantas noites
                   que me creio muitas vezes
                   construído apenas de escuridão.


                    Minhas noites não são feitas
                    de vampiros, monstros ou fantasmas,
                    minhas noites são feitas de ausências e vazios
                    por onde percorro como um predador
                    a espreitar as nódoas cinzas de mim mesmo.


                        A única assombração que me assombra
                        é esta pálida sombra que reflito,
                        e que na claridade que me habita fora
                        desconhece-se dela qualquer indício.


                        Sou tão cheio de noites partidas do dia
                        que já nem sequer vejo minhas beiradas
                        e embotado sigo em meus mistérios
                        como quem inútil corta a obscuridade
                        com o fio cego de uma navalha gasta.


E lá no fim,
por detrás de todos meus silêncios tristes,
escuto a voz presa e frágil que me diz:
“estou cansado”.

Quisera, pois, antes do instante
em que a noite não mais se encerra,
ver um dia, ao menos um dia,
o arder nos olhos da luminosidade amarela
do sol.
                                                          (2007)
(originariamente publicado em 31/08/2013)


                                      Joaquim Cesário de Mello


        
                       
                                                                      



                                                         

domingo, 18 de agosto de 2013

A SENHORA DE TODAS AS COISAS

  




Agora que todos se foram, ficou o silêncio inteiro da casa, rangendo por entre escuros móveis pesados e objetos vários de decoração e recordação. Sentia-se igualmente uma ilha, cercada de pretéritos, lembranças, fantasmas e um acumular incômodo de anos de mais de três quartos de século de uma breve chama ainda por se findar. Quando morrer, sabia com a certeza inabalável daqueles que já enterraram tantos que não será tão longe assim, tudo ao redor de pouca ou nenhuma serventia terá, à exceção da mobília herdada de seus ancestrais e um ou outro pertence como a prataria, o castiçal, os vasos e as louças portuguesas e as molduras antigas onde se acha aprisionado o passado impresso em papéis amarelecidos pelo tempo que retratam o exato instante de um ontem carcomido de distâncias, hoje extinto. O resto, para os outros, são badulaques e quinquilharias de uma velha, do mesmo modo os retratos com seus rostos, poses e sombras a falar de uma época que teima em resistir na última sobrevivente que era ela.  Ninguém, além de si, ainda vivo, conhecerá seus tios, avós e pais. Ninguém também há de reconhecer naquele longínquo vulto de menina magra de olhos assustadiços e laço enorme na cabeça a velha que aqui está: movimentando-se com lerdo cansaço em meio seus tesouros inúteis e migalhas  
sobrantes de uma vida. As molduras, sim. Talvez tenham valor em lojas de antiguidades, porém os retratos – ah, os retratos! – decerto terão seu fim incinerados ou rasgados, ou terão a rara sorte de serem vendidos a preço barato em alguma quermesse para ornamentar e adornar restaurantes e bares temáticos quaisquer.

Agora que todos se foram, era a única zelosa guardiã de sua história e dos seus desaparecidos. No assossegamento da velhice sem pressa espana e varre poeiras e resíduos deixados pelos recentes partidos na sala habitualmente limpa e ajeitada, como se sempre estivesse pronta a receber visitações cada vez mais esparsas. De fato, a higiene do ambiente e o perfumado das coisas gastas mais se assemelhavam a um túmulo bem cuidado, jazigo sem lápide cujo sepulcro era uma homenagem à menina de outrora, preservada e oculta das curiosidades alheias. O mundo, assim, não tinha ciência de que naquele espaço bolorento de passados, apertado de tantos cacarecos e bugigangas, uma velha e uma menina mantinham mudas a derradeira e a mais solitária das batalhas. A velha de então encarava a menina de antes com ares saudosos de melancolia.

Já a menina enxergava de lá de trás de onde fica o início dos retratos a anciã em que se tornara: oposto dos sonhos e amores infantis. Se tivessem os retratos sabor, teriam o gosto amargo e azedo das frutas estragadas pela ausência das colheitas.
Agora que todos se foram, pode percorrer ela com tranquila suavidade a planície dos móveis e dos objetos como quem acaricia uma face, um peito ou um dorso. No acarinhar das mãos revisita sem sons sua memória de madeiras, metais e vidros, silenciosamente contida em cada coisa e por cada canto de toda a casa. No amanhã sem ela as coisas voltarão a ser o que sempre e apenas são: coisas. Triste destino este dos objetos de um morto: não significarem mais nada, nenhuma história, nenhuma recordação, nenhuma impressão, nenhum relato. Os pertences de um dono que não mais existe, são tão mortos quanto seu próprio dono.
Agora que todos se foram, a noite cada vez mais se separa do dia. A escuridão vem veloz sugando o sol das ruas e as parcas luminâncias da casa (de dentro, a velha senhora parece preferir seus pessoais crepúsculos). Por toda uma década, a última década, nada fora alterado no interior daquela casa. Há muito não adquiria objetos ou peças, muito menos tirara retratos. Nenhum móvel chegara, nenhum móvel saíra. Tudo estava inerte e perene, como se a eternidade terminasse ali. Tudo continuava fielmente no mesmo lugar a espera que ainda haja um alvorecer. E embora já seja bem noite não precisa ela acender lâmpadas ou luzes, pois sabe de cor todos trajetos, passeios e trilhas de seu território. Passo a passo, palmo a palmo, vai se recolhendo a mulher sem perceber, contudo, que no fundo das sombras e dos retratos a menina lhe acena discretamente um adeus, perdoando-lhe a vida.


Joaquim Cesário de Mello

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

VALE A PENA VER DE NOVO

KEVIN E O CINEMA PERTURBADOR


A tarefa mais árdua de quem vai comentar  um filme ou um livro é descrevê-los sem, contudo, escorregar e contar o final, quando esse foi o fundamental recurso que o escritor ou cineasta teve para   trazer o leitor/expectador para a trama que quis levantar. Confesso que tenho pouca habilidade nisso, principalmente, quando me entusiasmo por finais surpreendentes. Quanto a surpresa em si, a que mais me chama atenção é aquela que nos diz o tempo todo o que sabíamos o que iria acontecer, mas algo nos impediu de aceitar o óbvio – como diria Nelson Rodrigues óbvio é o elemento mais difícil de ser aceito.  Como venho falando em outros textos somos todos tentados pelo desejo, o bom desejo.  Criamos, em verdade, roteiros na nossa cabeça para que os finais obedeçam concomitantemente o que queremos e o que seria estética e eticamente corretos. Um filme como Bastardos Inglórios – um dos melhores finais surpreendentes que já assisti, traz um misto do previsível e o desejável. Interessante que mesmo assistindo filmes históricos temos uma tendência a querer, por alguma razão, perverter o final que já foi nos contado e acontecido.  Esse disparate Quentin Tarantino conseguiu fazer muito bem. Tarantino ridiculariza o querer do expectador.
Mas não era de Tarantino que queria falar, e antes que fale do final de Bastardos Inglórios, quero aqui recomendar outro filme. Precisamos falar dele, ou melhor, Precisamos Falar sobre Kevin - este é seu título. Alguns créditos são importantes: a diretora escocesa ,Lynne Hamsey   tem 42 anos e 5 filmes, três curtas e dois longas. Pouca coisa? Sim, se não contássemos que  tem cerca de 20 prêmios e 11 indicações internacionais de filmes com nomes em sua maioria  desconhecidos ("O Lixo e o Sonho" e "O Romance de Morvern Calla")... mas falemos sobre Kevin.

 Andei compilando os comentadores e muitos usam as expressões: perturbador, surpreendente, inquietante, soturno – muitos dos que assistiram em Cannes, recusaram assisti-lo até o final – o que acho um exagero.  O filme é simples, com um roteiro preciso e uma fotografia maravilhosa.  Ao contrário do que poderia se imaginar o filme restringe-se em contar uma historia. Não há chavões, não há explicações bombásticas– isso talvez seja o elemento mais perturbador – tampouco não se aponta soluções. O filme não vai questionar os psicologismo oportunistas e as teorias explicativas sociais. Não há interpretações.  Vai silenciosamente mostrando cena atrás de cena, diálogo atrás de diálogo, o comportamento de uma criança bizarra, Kevin, até adolescência, sua relação com os pais e com o mundo.  O desenrolar da trama –que não direi – poderia reunir, na vida real, um sem número de discussão entre especialistas, psicólogos, psiquiatras, psicanalistas. A diretora, contudo, embora não explicite, parece querer atropelar todos esses discursos prontos, mostrando o surpreendente – o fato singular, a idiossincrasia. O filme termina e a pergunta continua: “Precisamos falar sobre Kevin”. Palavras que precisam ser ditas, mas que não se sabe quando ou se serão um dia  possíveis de serem expressadas.  Se o texto está obscuro, recomendo que assistam.
(originariamente publicado em 11/11/2012)

Marcos Creder

domingo, 11 de agosto de 2013

A Verdade Mascarada

Recomendou-se, aqui no LiteralMente, como sugestão de férias o filme “Underground” de Emir Kusturica, um filme realmente inesquecível e marcante – marcante por várias razões, entre elas a qualidade, o tema, o texto, num momento em que rareavam os filmes de boa qualidade. Muitas vezes recordamos de filmes por cenas, closes,  locações, ou por uma lembrança de algum ator ou atriz; em “Underground” o que me marcou foi uma pequeno diálogo travado entre dois dos três personagens principais, o casal Natalija e Marko. Numa cena romântica, com intenso e proposital histrionismo, os dois se abraçam.  Natalija dirige-se ao parceiro indagando quem seria a mulher mais bonita que ele havia conhecido:

“Você”, responde Marko sem pestanejar

“Você diz mentiras tão lindas”, conclui ela com um beijo cinematográfico.

“Underground” é um filme que poderia ser desdobrado em dezenas de discussões, mas nesse artigo de hoje vou destacar o tema ambíguo da mentira, que de algum modo permeia todo o filme, desde uma cena de amor até as inverdades ideológicas que costumamos edificar.

A mentira é uma característica própria do humano, como diz Dostoiévski “é o único privilégio do homem sobre todos os outros animais”. Desse modo, o personagem Pinóquio, da fábula italiana, já era humano desde o momento que dissera mentiras e não apenas quando tivera sido autorizado a sê-lo pela fada madrinha – essa fada, em si, é uma imagem igualmente mentirosa, mas necessária para a estética narrativa da literatura infantil.

Alguns autores falam que a própria transposição dos atos em palavras já carrega o fato do discurso em elementos fantasiosos ou imaginativos. Groddeck, médico fortemente influenciado pelo pensamento freudiano, dizia que a mentira surge com a linguagem e com o desejo, e esse desejo inconsciente, faz com que mintamos, ou venhamos a falar inverdades que acreditamos piamente.  
Há um pequeno texto de Freud que considero muito importante que trata do fenômeno da negação (para alguns, denegação – o texto chama-se “A Negativa”) que seria o fato do sujeito fazer afirmações imperativas que na verdade são inversas de seu pensar ou de seu desejo inconsciente. Alguns exemplos: um sujeito depois de perceber que o amigo tinha errado para menos na conta de um restaurante, diz: “se você achou que o eu pensei que você foi desonesto, está enganado”; ou outra pessoa vem à psicoterapia: “eu vim me consultar porque queria melhorar minha relação conjugal, pois a separação é algo que jamais me passou pela cabeça”; ou ainda: “pode parecer coincidência, mas o meu atraso de hoje não tem nada haver com seu atraso na semana passada, o que seria um pensamento infantil”.  Essas três afirmações já mentem na própria lógica do discurso - como é possível não pensar no pensado?  Se foi evocado, foi pensado e por essa razão, o primeiro sujeito por algum momento pensou na desonestidade do amigo na conta, a pessoa que veio a consulta veio na verdade para saber se ainda levaria o casamento adiante – sentia-se entediado na relação –  e o terceiro chegou atrasado como uma forma de retaliação ao atraso do outro. São três verdades complicadas de serem ditas e, por serem complicadas, algumas seriam inaceitáveis por conta de desejos impossíveis de serem expressos. Desse modo, há verdades que jamais serão ditas, porque jamais serão conhecidas, ou as mentiras a elas atreladas tem função de verdade. 

Qual, então, o sentido de ouvirmos o outro sabendo que parte do que disse é discurso de um mentiroso contumaz? Que valor tem a verdade se, como diz Machado de Assis “A mentira é muita vezes tão involuntária como a respiração”? Para o filósofo Nietzsche há uma falha epistêmica na busca da verdade. Segundo ele, tanto na ciência quanto na religião caímos em inverdades. Na ciência, em especial, o erro, ou o embuste, teria uma utilidade: um erro útil. Na religião os mitos sustentariam o horror ao niilismo – aliás, nas ciências também. Nietzsche acreditava que a verdade é insuportável e a forma mais aproximada de se ter algo semelhante a ela seria pelo caminho da arte – em especial a arte trágica.  O pintor Pablo Picasso vai mais longe: “A arte é a mentira que nos permite conhecer a verdade”. Exageros à parte, partilho mais da ideia do escritor Oscar Wilde que no texto irônico “a decadência da mentira: um protesto”,  relata que, no passado, os recursos alegóricos ou mitológicos da filosofia grega,  eram mais  verdadeiros que discursos dos filósofos contemporâneos que professam um pensar  verídico.



Enfim, uma das únicas formas que o ser humano tem para se chegar próximo a verdade é, paradoxalmente, pelo caminho da ilusão. Somos seres de existência fantasiosa e Freud soube muito bem constatar esse fato ao relativizar a verdade humana em realidade psíquica. Essa verdade, ou essa realidade, seria fruto de inúmeras variáveis, mas que teria como pano de fundo o desejo. Se pudéssemos chegar perto da verdade em psicanálise, teríamos que materializar o desejo, mas como ele é parte igualmente ilusória – muitas vezes o desejo é justamente fruto do não poder desejar – mas uma vez nos deparamos com o impossível.    Desse modo, falamos e mentimos, mentimos “sem querer”, sem saber, sem se dar conta, e na mitologia de nossa narrativa vem à tona, como disse Lorde Byron, “a verdade mascarada”  

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

VALE A PENA VER DE NOVO


DOIS MENINOS TÍMIDOS: 

ALGUMAS PONDERAÇÕES ACERCA DA TIMIDEZ 







Em seu post de 02 de setembro passado Marcos Creder fala um pouco de sua adolescência tímida. Entendo, pois também a tive. Mais do que um menino tímido, eu tive uma infância tímida. Muito talvez, provavelmente, alimentada pelos meus pais que me tiveram único e em momento maduro de suas vidas. Meu pai, por exemplo, tinha 50 anos quando nasci e minha mãe já tinha passado dos 30. Tive uma infância feliz. Não fui uma criança triste. Senti-me amado. Explorei, brinquei e corri pelos corredores da casa. Tive os brinquedos que quis e até mais do que quis. Só não tinha companheiros ao meu lado, exceto os imaginários.
                Minha infância recolhida, debruçada em seu próprio mundo, em grande parte devo aos meus pais que ciente dos perigos das ruas e por me amarem talvez um pouco demais, protegiam-me como um castelo cujas altas muralhas aprisionam seu próprio príncipe. Não podia subir em árvores, roubar manga na quintal do vizinho, jogar bola nos terrenos baldios ou brincar com os garotos da redondeza além das cercanias do portão da casa. Não trago em meu corpo uma sequer cicatriz de criança. Tive uma meninice limpa e higiênica, tão purificada de germes quanto de amigos. Não, decididamente não: não fui um menino tímido, minha infância inteira é que foi construída de timidez e retraimentos.


                Fiz-me jovem a partir dos acanhamentos e do meu ontem antigo trouxe em minha bagagem minha inseparável timidez. Por isto, repito, entendo Marcos. Assim como ele troquei as brincadeiras do recreio pelos livros da biblioteca. Conheci mais Monteiro Lobato e Malba Tahan do que conheci qualquer colega de colégio. Cresci assim como uma ilha, cercado de livros e histórias por todos os lados.
                À vezes o senso comum confunde timidez com medo e, consequentemente, falta de coragem. Dicionários descrevem como acanhamento, insegurança, embaraço e inibição. Já antônimos comuns encontrados são bravura, confiança, audácia e destemor ou coisa outra que o valha. Mas o que é mesmo timidez? Psicologicamente falando timidez não é medo propriamente dito, mas sim ansiedade ou retraimento frente situações sociais. Embora ansiedade, latu sensu, possa ter uma forte vinculação com o medo, stritu sensu ansiedade é um desconforto ou apreensão ante não uma ameaça real, porém imaginária. Para fins de nossa rápida discussão assim separemos medo (apreensão ante ameaça real) de ansiedade (apreensão ante ausência de ameaça real).
Mesmo causando desconforto, sofrimento e interferindo na vida como um todo, timidez não é doença nem transtorno. Bem, embora uma pessoa tímida se manifeste retraída frente a pessoas ou situações sociais, a timidez se diferencia da introversão propriamente dita, visto que na introversão o afastamento do objeto externo não se faz por fuga ou evitação. É verdade, todavia, que muitas vezes alguém tímido se volte mais para dentro de si introversivamente, mas não é porque uma pessoa está se escondendo por detrás de livros, por exemplo, que sua atitude seja introversão pura, porém uma introversão consequencial a uma fantasia de cunho persecutório, como se o livro funcionasse como um escudo protetor, uma defesa. Enfim, timidez não é um fato em si, mas um sentimento. Fundamentalmente: vergonha.
                O sentimento de vergonha é um dos sentimentos fundantes da moralidade dentro do psiquismo humano. Conjugadamente a culpa a vergonha exerce importante papel regulador em nossas relações com os outros. Acontece que a vergonha que sente um tímido é uma vergonha demais, muitas vezes excessivamente fantasiosa, e que contribui sobremaneira para desregular as relações tanto interpessoais como intrapessoais. A vergonha como afeto se trata de uma emoção secundária, isto é, não inata e sim adquirida, adquirida em nossas experiências com as pessoas. Medo, surpresa, raiva, tristeza e ansiedade, estes sim são afetos primários. Vergonha, assim como culpa, pudor, sentimento de inferioridade, ciúme, empatia e outros, são sentimentos que envolvem uma consciência de si, algo que os americanos chamam de “self-conscious emotions”.
Vários pensadores, artistas, escritores, filósofos, poetas, intelectuais, celebridades e pessoas anônimas, entre tanta gente, já se debruçaram sobre o tema. O poeta chileno Pablo Neruda, por exemplo, já colocou que “a timidez é uma condição alheia ao coração, uma categoria, uma dimensão que desemboca na solidão”, assim como outro poeta, Fernando Pessoa, ele mesmo um tímido, já disse que a timidez é “o mais vulgar de todos os fenômenos. O que há de mais vulgar em todos nós é termos medo de sermos ridículos”, enquanto que o escritor francês Anatole France certa vez escreveu que “a timidez é um grande pecado contra o amor”, ou ainda como referia o novelista inglês Walter Scott: “aos tímidos e aos indecisos, tudo se torna impossível, porque assim lhe parece”.
                Sim o tímido geralmente é aquele que receia ou teme ser ridicularizado e/ou não ser aceito ou vir a ser rejeitado. Criação mental ou não condizente com a realidade, a timidez gera respostas somáticas, tais como calafrios, tremedeiras, sudoreses, mãos geladas, palpitações, mudez ou gagueira.  Origens diversas à parte, observem que nas fantasias há quase sempre um background ou pano de fundos grandioso, uma grandiosidade inversa ou em sentido negativo. Quantas e quantas vezes um tímido não se retrai em levantar a mão em sala de aula e fazer uma pergunta pelo simples temor de que todo mundo vai olhar para ele ou que todo mundo vai achar que sua pergunta é a maior “merda” do mundo. Realmente só em suas poderosas fantasias todo mundo vai olhá-lo ou achar que sua pergunta é a maior pior qualquer coisa. Não. Acaso haja um tímido aqui de plantão, I’m sorry, mas o mundo inteiro não vai ficar olhando pra você não. Seu comportamento ou sua aparência não é tão relevante e importante pra pessoas não. Mas num fique triste não: timidamente você pode estar chamando mais atenção do que se exibindo.
A timidez, segundo estudos, está presente em cerca de 13% da população geral, enquanto  estima-se que aproximadamente 50% das pessoas em algum momento da vida já experimentaram timidez. Existe a timidez situacional e a timidez crônica. A primeira, como o próprio nome diz, o desconforto e a inibição se manifestam em ocasiões específicas, enquanto na segunda a pessoa encontra dificuldade em praticamente quase todas as suas áreas de convívio social. Evidente que um tímido crônico é alguém apresenta déficit nas habilidades sociais e o prejuízo disto não é circunscrito, mas generalizado.
                As causas da timidez são múltiplas, mas, afora problemas genéticos, a timidez é resultado de um processo. Entre possíveis fatores ambientais mais recorrentes temos: a existência de um progenitor tímido ou a existência de um progenitor agressivo, excessivamente crítico ou e humilhador, bem como a vivência infantil em um ambiente familiar afetivamente frio. Superproteção parental e altas exigências e cobranças que o filho não consegue corresponder também fazem parte de fortes influências ambientais que podem causar timidez em uma criança. Claro que há crianças que já nascem predispostas à timidez, ao contrário de outras que são hiperativas ou outras que são tranquilas e sossegadas. Tal inclinação ou temperamento pode encontrar no ambiente cuidador dos primeiros anos de vida de uma criança um atenuador ou estimulador da timidez.
Solidarizo-me com todos os tímidos do mundo. Sei o quanto dói a palavra vinda da mente que morre na garganta antes mesmo de chegar à boca. Sufocamo-nos silentes em nossos anseios de convivência, pois o tímido, qualquer tímido, é sempre aquele que olha o mundo pelas frestas das janelas do receio da rejeição e da vergonha.
                O irônico em tudo isso é que quis o destino que conhecesse Marcos Creder nos corredores e salas de uma escola chamada faculdade. Não foi o professor de cá de um de nós que nos atraiu, mas sim nossas timidezes. Somos amigos de infância que se conheceram no caminhar da meia-idade. Hoje brincamos juntos na vida e aqui no blog como dois meninos cuja timidez nos nutriu de cultura e erudição. Contudo o que eu queria mesmo é ter empinado pipa, petelecado bolinhas de gude e soltado rojão.

(texto originariamente publicado em 23/09/2012)

Dedico este texto ao Marquinhos que habita no Marcão.
Joaquim Cesário de Mello