sexta-feira, 2 de agosto de 2013

O Extremo Zelo



 
O amor e a paixão são temas comuns na filosofia, na literatura, no teatro,  no cinema e é, inclusive, tema frequente aqui no LiteralMENTE - sem esses sentimentos não haveria sentido existirem psicólogos, psicanalistas, psiquiatras. Como pensar a poesia sem o amor?  Como pensar um drama, ou mesmo uma tragédia, sem paixão? Sem esses dois sentimentos sequer sobrariam canções.  Aliás, no passado, no final do século XX, era moda recitar poemas de amor em shows da MPB. Maria Bethânia recitava, entre as canções, Fernando Pessoa, Augusto dos Anjos, Carlos Drummond de Andrade - os poemas  de Vinícius de Moraes eram indispensáveis. Músicos vindos da Bossa Nova musicavam a poesia de Vinícius e eventualmente, o próprio poeta declamava nos shows e gravações.  O Soneto da Fidelidade, recitado na canção Eu sei que vou te amar marcou uma geração:

De tudo,ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamen
to.

O recitativo segue depois desse trecho do soneto e se encerra com o refrão da canção. Separei esse primeiro quarteto, para destacar as palavras atento, zelo, encanto, pensamento -  palavras tão amenas, tão jubilosas e cautelosas que surpreenderia qualquer leitor, se pessoas as recitassem em contextos que culminassem em finais trágicos  de relacionamentos amorosos.

 Na cidade de Veneza, no século XVI ou XVII, os homens, por zelo ou atenção, deixavam suas esposas em casa, e para protegê-las dos olhares dos passantes,  utilizavam-se de uma conhecida peça decorativa:  as treliças e especialmente as persianas. Esse tipo de cortina popularizou-se  e destinou seu nome à cidade que a consagrou: a cortina veneziana ou apenas a veneziana. As venezianas propiciavam uma  magia:  a possibilidade das mulheres olharem para fora, para a rua sem serem vistas.   Os maridos julgavam que a cortina protegia suas mulheres de desnecessárias exposições,  argumento falacioso, que tinha um propósito inverso: na verdade, os maridos se protegiam de uma ameaça  ancestral e arcaica: o risco de perder o objeto amado. Temor em perder ou ser trocado para outro e deixar de ser desejado.

Jalousie é a tradução da palavra persiana na língua francesa. Jalousie significa também, na mesma língua,  claraboia, inveja e  - vejam só - ciúme. Ciúme (do latim zelumen: zelo) é a cortina que encobre o temor e a insegurança dos maridos  do olhar do rival.  E é  desse  desse “cuidado” - contra essa luminosidade  tão incômoda que vem de dentro de suas casas - que discorrerei aqui algo mais  sobre o ciúme e seus personagens.


 O ciúme está presente em toda relação amorosa –  não existe relação sem uma ponta de ciúme. O ciúme está na contingência do outro que o enciumado quer controlar. Controlar, possuir, dominar são instintos arcaicas que podem se revelar na relação do sujeito com o objeto amado. O ciúme é um sentimento arcaico, pois o amor não "possui" o outro, aliás Marcel Proust disse, com sarcasmo, que “se ama por não se possuir completamente”.

Apesar de arcaico e indesejável, o ciúme  ocupa  e preocupa parte significativa da literatura e do teatro. Encontra-se em Otelo – de Shakespeare ; em Dom Casmurro, de Machado de Assis;  em O amor de Swann, do próprio Proust, na Sonata a Kreutzer, de Tolstoi, em O Túnel, de Ernesto Sábato, entre tantos outros. Esses escritores trazem incontáveis nuances desse sentimento, desde uma esmiuçada fenomenologia do ciúme, esplendidamente descrita por Proust, às suposições explicativas encontradas, por exemplo, nos textos de Machado de Assis e de Shakespeare - que ainda acrescentam e desfiam  outro sentimento valioso aos ciumentos: a dúvida. A dúvida fertiliza a narrativa do enciumado. A dúvida,  congela o sujeito em narrativas novelescas.  A dúvida é comum aos ciumentos, com exceção daqueles que, como veremos adiante, fazem uma preleção delirante de sua vida conjugal.  

Há uma síndrome na psiquiatria que está classificada entre os Transtornos Delirantes Persistentes denominada de Síndrome de Otelo – uma merecida homenagem ao mais famosos ciumento da literatura. Essa síndrome, que cursa com o delírio de Ciúme, inspira-se na peça Otelo, O Mouro de Veneza (coincidência?). Otelo, recém empossado general de Chipre na guerra contra os turcos, casa-se às escondidas com a bela Desdêmona. Iago, confidente e no íntimo seu rival, elabora tramas conspiratórias envolvendo uma suposta infidelidade de Desdêmona. Otelo, então, é  capturado pela narrativa de Iago e é tomado por um  ciúme exagerado e incontinenti. A peça culmina no trágico, no destino extremo do ciúme: a morte. 

Apesar de Otelo representar as entranhas do ciúme, seja ele patológico ou não,  é na novela A Sonata Kreutzer, de Tolstói,  que a clínica do Ciúme Delirante se situa e se consagra com minuciosa descrição sintomatológicaO Delírio de Ciúme não é apenas um pensamento exagerado ou obsessivo (ou induzido por tramas conspiratórias) de uma pessoa em relação à fidelidade do parceiro. O (enciumado) delirante tem, como em todo delírio, a crença irrefutável, incontestável, de  que a a traição é um fato. Não se trata de uma suspeita, mas de um certeza, mesmo sustentadas por hipóteses improváveis ou impossíveis, eventualmente fantásticas. Não é necessário ao delirante se amparar em acontecimentos ou indícios externos,  pelo contrário, a cena da suposta traição se  constrói na realidade subjetiva do delirante.  A narrativa delirante tem enredo magistral. O delirante tem certezas – talvez o único sujeito que guarde certezas absolutas de acontecimentos  não acontecidos.  

 Na novela russa,  Pozdnyshev (não se assuste, leitor, a complexidade  da literatura russa restringe-se  aos nomes dos personagens), o personagem principal, narra, num trem,  sua história conjugal. O livro inspira-se na bíblia e numa peça musical.  O versículo bíblico de Mateus 5;13 “eu porém, vos digo: todo aquele que olha para uma mulher com desejo libidinoso, já cometeu o adultério com ela em seu coração.”; e o dueto, piano e violino, do qual é executada a Sonata Kreutzer de Beethoven, vão sedimentar o discurso do narrador. Pozdnyshev casa-se em idade avançada com uma jovem que tem aulas particulares de piano.  Dessa relação com o professor se constrói a sonata delirante, em que as personagens vão se encaixando em histórias improváveis, coincidentes, embusteiras que são interpretadas pelo personagem principal por gestos, olhares e supostas intenções inauditas. 

Se “o ciúme é muitas vezes uma inquieta necessidade de tirania aplicada às coisas do amorcomo disse Proust, no delirante essa tirania chega a dimensão do trágico. Tolstoi retrata essa “loucura” no pensamento amargo e desiludido de Pozdnyshev, um homem atormentado e atormentador, cujo sintoma o levou à extrema misoginia e à elaboração de teorias filosóficas preconceituosas. Enfim, O seu  excesso de zelo e sua ambivalente paixão estavam longe de construir um soneto de amor.



Marcos Creder 

2 comentários:

Andressa Costa disse...

O engraçado é que o ciúme, por vezes é visto como prova de amor e assume uma relação associativa um tanto quanto perigosa. O sentimento é exaltado de forma romanceado, encobrindo por vezes nesse "zelo" caracteristicas ligadas não ao cuidado com o outro, mas com o sentimento de posse, desconfiança, inveja, vaidade, raiva, dentre outros... Na arte é possível observar inúmeras manifestações vistas como constituinte do amor como " I need you, clássica canção dos beatles, o que para mim, representa um apelo dramático que nada tem a ver com amor. É importante esse olhar criterioso frente a tais manifestações, principalmente a relação que se estabelece através dessa óptica, pois se torna indispensável o entendimento de características pessoais, como insegurança e medo, e os processos psíquicos que propiciam o ciúme, para uma vida psíquica mais saudável. Muito bom o texto! Inspirador...

Alice disse...

Texto perfeito! considero sim o ciúme como intrinseco ao amor, é difícil não sentir, porém como tudo o perigo está no excesso, frase truista mas verdadeira.