sábado, 3 de agosto de 2013

O PASSADO ESFARINHADO


“Aqueles que não conseguem lembrar o passado estão condenados a repeti-lo” (George Santayana)



“A nossa duração não é apenas um instante a seguir ao outro; se fosse, nunca haveria mais nada além do presente - nenhum prolongamento do passado na atualidade, nenhuma evolução, nenhuma duração concreta. A duração é o progresso contínuo do passado que morde o futuro e vai inchando à medida que avança. E, como o passado cresce sem parar, não há nenhum limite à sua preservação”.
                As palavras acima fora proferidas pelo filósofo e prêmio Nobel de 1927, Henri Bergson. Dentro do conceito de duração o passado coexiste com o presente. O tempo vivido não se confunde com o tempo cronometrado dos relógios, sequer tem ele a mesma regularidade. Podemos, inclusive, tecer distintos tempos: o tempo da natureza e o tempo da alma. O último é, por excelência, um tempo subjetivo. Por isto inclino a pensar no que escreve o também filósofo e escritor André Comte-Sponville: “é por isso que há um tempo para a espera e outro para a saudade, um tempo para a angústia e outro para a nostalgia, um tempo para o sofrimento e outro para o prazer, um tempo para a paixão e outro para a união, um tempo para a ação ou para o trabalho, outro, ou vários, para o descanso”.
  Objetivamente poder-se-á dizer que o passado é a parte do tempo que se refere ao período anterior ao tempo presente. Objetivamente o tempo pertence a todos. Já subjetivamente, podemos dizer que o passado é o tempo que não passa. O tempo subjetivo é, portanto, o tempo da intimidade que pertence a cada sujeito, que embora conviva com outros sujeitos o tempo subjetivo de cada um é incompartilhável enquanto temporalidade psíquica e pessoal.  Humanamente o passado está intrinsicamente relacionado à memória. E porque temos memória, assim como percebemos o caminhar dos dias e sonhamos com o amanhã, é que o ser humano é um ser absolutamente mergulhado na temporalidade. Passado e memória, um não existiria subjetivamente sem o outro, pois ambos estão entrelaçados e ambos são indissociáveis. 
  O passado não passa porque temos memória. O passado não passa porque o presente é consequencial. Nosso passado de hoje – que já foi o presente de ontem – foi como aquela pedrinha lançada em um lago q cujo impacto gerou ondulações circulares que se propagaram pela superfície.  Sim, nossas vidas são um grande e enorme lago existencial.  O presente de ontem movimenta o presente de hoje, assim como o presente de hoje move o presente do porvir. O passado está, pois, embutido no presente, afinal o presente do agora foi construído de vários e incontáveis instantes que no instante imediato são passados. Inexiste presente sem passado. Nisto reside, por exemplo, a força destes versos do notável poeta americano T.S. Eliot, retirados do poema East Coker: 

“Em meu princípio está meu fim. Umas após as outras
As casas se levantam e tombam, desmoronam, são ampliadas,
Removidas, destruídas, restauradas, ou em seu lugar
Irrompe um campo aberto, uma usina, um atalho.
Velhas pedras para novas construções, velhos lenhos para novas chamas,
Velhas chamas em cinzas convertidas, e cinzas sobre a terra semeadas,
Terra agora feita carne, pele e fezes,
Ossos de homens e bestas, trigais e folhas.
As casas vivem e morrem: há um tempo para construir
E um tempo para viver e conceber
E um tempo para o vento estilhaçar as trêmulas vidraças
E sacudir o lambril onde vagueia o rato silvestre
E sacudir as tapeçarias em farrapos tecidas com a  silente legenda.
Há passados que se tornam lembranças. Há passados que se esquecem. Há passados que cicatrizam o corpo e a alma. Há passados que não se superam e que ficam como se fossem eternos. Lembranças, cicatrizes e esquecimentos, corpo e alma, fazem parte do baú de quem somos. Relembrando ou não somos sempre feitos com barros de outrora. Assim é criada e feita a nossa história, e não há pessoa, personalidade ou identidade sem história. Todavia, o que nos importa é o passado que não vira memória, que por não ter sido ainda digerido permanece vivo e incomodante no atual. É um passado que não se transformou ainda em passado.
Passado, como palavra, vem do latim “passus” (passo). Daí a ideia da existência como um caminhar, passo a passo, até o “praesens” (presente). “Praesens”, por sua vez, como termo também latino se origina de “praeesse”, que significa “estar à frente”, “estar à mão”. Porém, quando o passado vira um “passus aeternus” o que está a nossa frente é o nosso atrás. Exemplifico. Tenho um amigo que quando criança fora esquecido pelos pais em um supermercado. 
“Abandonado” e “desamparado", provavelmente com bastante medo, se vira ali sozinho agarrado com uma lata de Farinha Láctea, próximo ao peito desapartado de outros seios. A farinha de que ele tanto gostava deixou de ser apenas uma lata de farinha e transformou-se em uma espécie de “objeto transicional”, quase como se fosse um urso de pelúcia que um menino se apega e aconchega próximo a si para poder dormir solitário em um quarto escuro. Lembremos que psicologicamente um objeto, quando funcionalmente é transicional, vincula-se às angústias infantis de separação e passa a representar um espaço dentro da mente da criança. 
Pois é, até hoje, homem adulto e de meia-idade, este meu amigo não deixa faltar nunca em sua despensa uma lata de farinha láctea, mesmo que ele até passe semanas sem saboreá-la, mas jamais consegue passar um dia sequer sem a lata em sua casa, perto dele. A lata (seus significados) é mais do que somente uma lata, é um passado perpetuado, e como todo passado que se mumifica é uma maneira inconsciente, muitas vezes, de não perdoarmos nossos mortos. Este é o típico passado a que faz menção O poeta Mário Quintana: “o passado não reconhece o seu lugar: Está sempre presente”.
   Nossa vida psíquica não é marcada somente pela consciência de um tempo linear. Em algum lugar (não um lugar espacial e tópico, mas sim um lugar funcionalmente psíquico) a mente é atemporal, isto é, passado, presente e futuro se embaralham como um tempo só. Neste suposto e hipotético lugar fatos e fantasias se indiferenciam, e os fenômenos psíquicos se processam inconscientemente. Talvez não haja mente humana que não sofra de alguma reminiscência de um passado que ainda se articula com a vida atual como se vivo e presente fosse. Nossa memória não é apenas descritiva e evocativa, mas igualmente procedural e emotiva. Meu amigo acima citado sabe que a lata de farinha látea não é sua mãe, por exemplo, mas age e sente frente a ela como se fosse. Infantil? Sim, provavelmente. Mas quem, de fato, se livra totalmente da sua infância?

      Somos feitos de aniversários. Mas os anos dentro de nós não se acumulam sobrepostamente, porém se misturam, amalgamam-se e se embolam em uma massa ajuntada e disforme que chamamos de mente. Em qualquer tempo, em qualquer hora, em qualquer momento, o passado nos influencia, mas é no presente que ele toma forma e se referencia. O presente não é uma fronteira que separa o fim e o início de dois tempos, como se fatiássemos o bolo dos nossos dias. O bolo somente acaba quando se apaga a vela do último instante da vida.

                Há passado que vai... há passado que fica. Assim como há passado que se lembra e há passado que se dói. Seja lá como for, o que seria do passado se não houvesse o presente?  Ou como poetiza Fernando Pessoa:


"Eu amo tudo o que foi
Tudo o que já não é
A dor que já não me dói
A antiga e errônea fé
O ontem que a dor deixou
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia."

Joaquim Cesário de Mello



PS: às vezes, uma lata de farinha láctea é apenas uma lata de farinha látea.

Um comentário:

rotina criativa disse...

Lembrei de um textinho que fiz pensando em tempo.

http://andrezacrispim.blogspot.com.br/2013/07/bom-dia.html