domingo, 11 de agosto de 2013

A Verdade Mascarada

Recomendou-se, aqui no LiteralMente, como sugestão de férias o filme “Underground” de Emir Kusturica, um filme realmente inesquecível e marcante – marcante por várias razões, entre elas a qualidade, o tema, o texto, num momento em que rareavam os filmes de boa qualidade. Muitas vezes recordamos de filmes por cenas, closes,  locações, ou por uma lembrança de algum ator ou atriz; em “Underground” o que me marcou foi uma pequeno diálogo travado entre dois dos três personagens principais, o casal Natalija e Marko. Numa cena romântica, com intenso e proposital histrionismo, os dois se abraçam.  Natalija dirige-se ao parceiro indagando quem seria a mulher mais bonita que ele havia conhecido:

“Você”, responde Marko sem pestanejar

“Você diz mentiras tão lindas”, conclui ela com um beijo cinematográfico.

“Underground” é um filme que poderia ser desdobrado em dezenas de discussões, mas nesse artigo de hoje vou destacar o tema ambíguo da mentira, que de algum modo permeia todo o filme, desde uma cena de amor até as inverdades ideológicas que costumamos edificar.

A mentira é uma característica própria do humano, como diz Dostoiévski “é o único privilégio do homem sobre todos os outros animais”. Desse modo, o personagem Pinóquio, da fábula italiana, já era humano desde o momento que dissera mentiras e não apenas quando tivera sido autorizado a sê-lo pela fada madrinha – essa fada, em si, é uma imagem igualmente mentirosa, mas necessária para a estética narrativa da literatura infantil.

Alguns autores falam que a própria transposição dos atos em palavras já carrega o fato do discurso em elementos fantasiosos ou imaginativos. Groddeck, médico fortemente influenciado pelo pensamento freudiano, dizia que a mentira surge com a linguagem e com o desejo, e esse desejo inconsciente, faz com que mintamos, ou venhamos a falar inverdades que acreditamos piamente.  
Há um pequeno texto de Freud que considero muito importante que trata do fenômeno da negação (para alguns, denegação – o texto chama-se “A Negativa”) que seria o fato do sujeito fazer afirmações imperativas que na verdade são inversas de seu pensar ou de seu desejo inconsciente. Alguns exemplos: um sujeito depois de perceber que o amigo tinha errado para menos na conta de um restaurante, diz: “se você achou que o eu pensei que você foi desonesto, está enganado”; ou outra pessoa vem à psicoterapia: “eu vim me consultar porque queria melhorar minha relação conjugal, pois a separação é algo que jamais me passou pela cabeça”; ou ainda: “pode parecer coincidência, mas o meu atraso de hoje não tem nada haver com seu atraso na semana passada, o que seria um pensamento infantil”.  Essas três afirmações já mentem na própria lógica do discurso - como é possível não pensar no pensado?  Se foi evocado, foi pensado e por essa razão, o primeiro sujeito por algum momento pensou na desonestidade do amigo na conta, a pessoa que veio a consulta veio na verdade para saber se ainda levaria o casamento adiante – sentia-se entediado na relação –  e o terceiro chegou atrasado como uma forma de retaliação ao atraso do outro. São três verdades complicadas de serem ditas e, por serem complicadas, algumas seriam inaceitáveis por conta de desejos impossíveis de serem expressos. Desse modo, há verdades que jamais serão ditas, porque jamais serão conhecidas, ou as mentiras a elas atreladas tem função de verdade. 

Qual, então, o sentido de ouvirmos o outro sabendo que parte do que disse é discurso de um mentiroso contumaz? Que valor tem a verdade se, como diz Machado de Assis “A mentira é muita vezes tão involuntária como a respiração”? Para o filósofo Nietzsche há uma falha epistêmica na busca da verdade. Segundo ele, tanto na ciência quanto na religião caímos em inverdades. Na ciência, em especial, o erro, ou o embuste, teria uma utilidade: um erro útil. Na religião os mitos sustentariam o horror ao niilismo – aliás, nas ciências também. Nietzsche acreditava que a verdade é insuportável e a forma mais aproximada de se ter algo semelhante a ela seria pelo caminho da arte – em especial a arte trágica.  O pintor Pablo Picasso vai mais longe: “A arte é a mentira que nos permite conhecer a verdade”. Exageros à parte, partilho mais da ideia do escritor Oscar Wilde que no texto irônico “a decadência da mentira: um protesto”,  relata que, no passado, os recursos alegóricos ou mitológicos da filosofia grega,  eram mais  verdadeiros que discursos dos filósofos contemporâneos que professam um pensar  verídico.



Enfim, uma das únicas formas que o ser humano tem para se chegar próximo a verdade é, paradoxalmente, pelo caminho da ilusão. Somos seres de existência fantasiosa e Freud soube muito bem constatar esse fato ao relativizar a verdade humana em realidade psíquica. Essa verdade, ou essa realidade, seria fruto de inúmeras variáveis, mas que teria como pano de fundo o desejo. Se pudéssemos chegar perto da verdade em psicanálise, teríamos que materializar o desejo, mas como ele é parte igualmente ilusória – muitas vezes o desejo é justamente fruto do não poder desejar – mas uma vez nos deparamos com o impossível.    Desse modo, falamos e mentimos, mentimos “sem querer”, sem saber, sem se dar conta, e na mitologia de nossa narrativa vem à tona, como disse Lorde Byron, “a verdade mascarada”  

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