sexta-feira, 14 de junho de 2013

VALE A PENA VER DE NOVO



JUVENTUDE GRÁVIDA DE VELHICE: UM HOMEM, MUITAS IDADES E VÁRIAS ESCOLHAS






O teatro, sem sombra de dúvida, é uma das mais significativas expressões artísticas humanas. Embora o teatro hoje, em tempos de televisões, cinemas, dvds, internets, home theaters, iPads, tablets e mídias várias, já não possua o impacto social de outrora, o teatro é ainda capaz de sensibilizar, comover, criticar e promover reflexões. O próprio termo teatro relaciona-se etimologicamente com a palavra grega theaomai. Em grego thea significa visão e o sufixo tro representa “através da contemplação”. Theomai  não tem a tradução de apenas ver, mas sim o de descobrir o sentido do objeto contemplado. Embora teatro possa divertir em essência ele é aprofundamento.
                São inúmeras as peças teatrais que encenam o interior da alma humana. Todavia uma me marcou significativamente: Três Mulheres Altas, do dramaturgo americano Edward Albee. O texto inteiro é uma vertiginosa viagem pelos meandros labirínticos da psique feminina (para mim toda alma humana tem sua natureza no feminino). Somos, aos poucos, conduzidos a entrar no psiquismo de uma velha anciã que se encontra em seu leito de morte. Junto a ela dialogam duas outras mulheres, uma em torno dos 25 anos de idade e a outras passando dos 50.
                No primeiro ato acompanhamos o conversar das três mulheres. Termina-se o primeiro ato e não sabemos seus nomes. Já na abertura do segundo ato é revelado à plateia que as três mulheres na verdade é apenas uma única personagem, cada uma representando uma fase da vida: a juventude, a meia-idade e a velhice. Jogados, então, à simultaneidade compartilhamos sobre os diferentes aspectos da vida.
                A autoanálise da personagem no encontrar de três estágios distintos de sua vida nos leva imediatamente a reflexão sobre o transitar de uma pessoa ao longo de sua existência. Todas as três mulheres (aliás, a mesma em fase diferentes de sua vida) caminham para a morte, assim como você leitor e eu. O confronto final, na velhice, da personagem com ela mesma é assustadoramente cativante e dinâmico. Próxima da morte ela questiona suas escolhas. O que temos é uma fala através de três vidas que juntas somam uma vida.
                As mulheres brigam entre si. Se xingam e se agridem. Mal se toleram. A mais jovem retruca as mais velhas em uma vã tentativa de rejeitar o seu próprio futuro. Ela diz: eu nunca vou me tornar vocês, qualquer uma de vocês. Muito menos há consenso entre as duas mais velhas. As três vozes se revisionam continuamente, onde passado, presente e futuro coexistem em conflito, mediante uma personalidade dividida frente a temas como vida, amor e morte.
                Certa vez escrevi o seguinte poema que titulei “Enquanto Leio Kerouac”:

A vida continua indo, amor
enquanto leio Kerouac
ou assisto filmes na televisão
esperando o salário ao final do mês.
Breve o que teremos
é este pouco de memória
e quem sabe se ainda der
uma casinha azul na praia
para vermos netos crescer molhados.
A roupa e o carro novos não me calam o jovem
pois a minha juventude é feita de rebeliões
embora as revoluções que fiz de fato
fossem apenas mudar de bairro e de penteado.
A vida continua indo, amor
sem mim
sem você
sem ninguém
afinal é próprio da vida se ir
deixando aqui sempre nós
ou lendo livros ou vendo filmes
no aguardo do próximo final de mês.
(De onde vem este vento tão gelado
se todas as janelas estão fechadas?)
Evitemos ao menos hoje
olhar espelhos, amor.

                Pois é, caro leitor: a vida continua indo. E pra onde a vida nos leva? É incerto nosso destino, todavia muito do que lá encontraremos já se encontra plantado tanto no hoje que nos trouxe até aqui, quanto o hoje que nos empurra para o amanhã. Nada é de graça. Embora não dimensionemos a importância do que estamos fazendo, o que estamos fazendo ou deixando de fazer está nos conduzindo ao futuro e lá, lá na frente, haverá de cobrar seu preço.
                O futuro de um sujeito não é um tempo que se faz presente de repente. Todo seu passado está ali naquele presente que um dia já lhe foi futuro. Somos feitos de várias idades que se sobredeterminam. Em “Alice no País das Maravilhas” temos o elucidante diálogo de Alice com o Gato e Cheshire. É quando Alice pergunta ao gato: “podes me dizer, por favor, que caminho devo seguir para sair daqui?”. E o gato responde: “isso depende muito de para onde queres ir”. Alice então diz: “preocupa-me pouco aonde ir”. E o gato, por sua vez, sentencia: “nesse caso, pouco importa o caminho que sigas”.
                Ao longo da estrada de nossas vidas é preciso saber aonde queremos chegar. Se chegaremos lá é menos relevante. O que importa é que estamos sempre tentando. Ou como diz um provérbio bretão: “mais importante do que a descoberta é a procura”.
                Remeto aqui o leitor ao reeditado livro de Eduardo Gianotti, economista por formação, “O Valor do Amanhã”. Nele o autor escreve sobre as trocas intertemporais e compara nossas escolhas e estilos momentâneos de vida com a natureza econômica dos juros. “A vida é breve, os dias se devoram e nossas capacidades são limitadas”, diz Gianotti. A tensão entre o agora e o depois impacienta o ser humano entre o eterno dilema se endividar hoje para realizar desejos e pagar os juros amanhã ou aguardar e poupar para comprar à vista no futuro. Que cada um de nós faça suas escolhas, isto é, viver já e pagar mais tarde ou pagar agora e viver depois. Seja qual for a escolha feita pensemos sempre no velho que estamos germinando, para não terminar brigando como se fossemos três mulheres altas.
                A vida continua indo, amor...

(originariamente publicado em 17/06/2012)
Joaquim Cesário de Mello

2 comentários:

Alice disse...

Nossa, como doem seus textos...O poema perfeito, mas de uma angústia verdadeira e conformada... Acho que já sofri demais, no passado, por não conseguir realizar o que havia planejado pra mim. Me decidi pelo caminho que me parecia mais fácil no começo: ser feliz. Me enganei, é uma busca sem fim. Pensei nesse passado que se faz presente recentemente, vendo um filme. Por hora estou apenas seguindo, independente do tempo e de tudo que não posso controlar...

rotina criativa disse...

"Não é preciso ser velho para sentir o tempo" (Os famosos e os duendes da morte).

Lembrei-me também de um poema de Viviane Mosé encontrado no seu livro Pensamento chão na sequência "poemas-tempo"

Belíssimo texto.