domingo, 2 de junho de 2013

Lanternas de cinema


Quando eu era criança, perto já da adolescência, ia com muita frequência ao cinema e tinha duas categorias de filmes que eu assistia: os filmes que assistia com minha mãe e os filmes que assistia com meu pai. Eram dois continentes cinematográficos diferentes. Com minha mãe íamos assistir, eu e meus irmãos, aos filmes de Jerry Lewis, Renato Aragão, Mel Brooks e muitos desenhos animados da Disney. Eram filmes que assistia em dias de semana à tarde, em que podia se encontrar, eventualmente, alguns de meus colegas de colégio. A diversão cheirava a pipoca e tinha gosto de Mentex ou chocolate Alpino. Éramos guiados e fiscalizados por lanterninhas. 

Já com meu pai a história era diferente. Ele, em vários sábados, daqueles tempos, levantava-se do sofá solenemente e dizia, “quem quer ir ao cinema?”. Eu me candidatava, e em seguida ele folheava o jornal e complementava, “você pode ir, a censura é até os dez anos”. Geralmente íamos só nós dois – meus irmãos tinham mais o que fazer. Os cinemas que me meu pai frequentava eram diferentes, estreitos, em locais de difícil acesso, ou teatros improvisados para cinema, com telas pequenas, filmes, muitas vezes, em preto e branco, sem pipoca, sem chocolates, sequer haviam outras crianças, e os adultos assistiam silenciosamente aos filmes (no cinema em que assistia com minha mãe a plateia parecia ser mais um personagem do filme). Quanto aos filmes desses cinemas esquisitos, em meus onze ou doze anos, achava-os lentos, com cenas paradas e intermináveis, e, finais inesperados – enfim, chatíssimos. Mas chatíssimos apenas naquela época. O tempo passou e pude observar que se me era permitido assisti-los, se não havia uma censura ética, havia uma censura cognitiva, onde o "obsceno" seria a minha não compreensão. Eram filmes que hoje considero maravilhosos. Lembro de inúmeros entre inúmeros títulos e diretores: O Enigma de Gaspar Hausen (Werner Herzog – talvez o mais marcante de todos eles), No tempo das Diligências (de john Ford), Cidadão Kaine (de Orson Welles) Noites de Cabíria (de Fellini), Kaos (dos irmãos Taviani), Dersu Uzala (de Kurosawa), Veridiana (de Buñuel), Intolerância ( D.W. Griffift) e muitos Filmes de Chaplin – esses, os mais infantis – e de Ingmar Bergman – os mais difíceis.



Talvez o que tenha me feito relembrar esses tempos tenha sido a recém agradável leitura do livro “Lanterna Mágica” de Ingmar Bergman. Trata-se de uma autobiografia, e, eu sempre fui desconfiado com as autobiografias, pois sou adepto da frase de Nelson Rodrigues: “não há nada mais falso que a entrevista verdadeira”. Numa autobiografia tende-se a fazer certamente um auto-retrato em que o sujeito é um personagem de si mesmo, que ao contrário do personagem fictício – que também tem algo de autobiogáfico – pisa no freio de algumas realidades. Em geral são textos "chapa brancas", mas em Bergman foi diferente, e diferente em vários aspectos. O próprio formato do livro elevou o tom de franqueza, com capítulos desordenados em que não se obedece cronologias de recordações, sem referências precisas de datas. Bergman não é memorialista nem historiador, omite nomes, eventualmente e cai em anacronismos. O leitor se aproxima mais do Bergman homem do que do Bergman diretor e quando esse é, porventura, citado, Mostra-se um diretor reflexivo, autocrítico, mais desamarrado e consequentemente mais desarmado. Na leitura desse livro conheci outros “Bergmans” além do cineasta, conheci uma criança, um adolescente inseguro, e conheci um homem de teatro – talvez, para minha surpresa, mais de teatro que de cinema. Essa revelação que para muitos não é nenhuma novidade, fez com que eu refletisse sobre seus filmes. As cenas de Bergman eram diferentes. Seus filmes eram teatros filmados, se utilizava dos mesmos recursos cênicos e alegóricos das dramaturgias. Um teatro a céu aberto fortemente influenciado por Ibsen e Strindberg. O auto-relato sobre sua obra não o faz daqueles autores que se passam por modestos, não há nada de modesto em Bergman, mas seus comentários sobre seus filmes são de uma franca autocritica, tão seca quanto a dos seus críticos. Há momentos que chega a tratar com certa desconsideração alguns de seus filmes mais famosos como “Sonata de Outono”, ou “Sorriso de uma Noite de Amor”.




Sempre julguei os filmes de Bergman como densos, urbanos  - ou cosmopolitas - longe da esfera das preocupações regionais. Enganei-me em  saber que foi em Faro, uma ilha no mar Báltico, que foi montado e locados muito dos seus famosos filmes. Nova Iorque ou Londres eram-lhe cidades atormentadoras.

Cada vez mais me convenço de que cinema ou literatura “regionais” são modalidades estéticas que se passa fora da metrópole do primeiro mundo - apenas isso.

Marcos Creder

Nenhum comentário: