O
cinza de junho já nos encobre às cabeças protegidas pelos tetos dos
apartamentos e das casas. Em nossas pequenas colmeias cercadas de cotidiano
olhamos as ruas molhadas e os intermitentes pingos de chuva. Quase não ouço o
cantarolar matinal dos pássaros. Tudo lá fora parece tão deserto quanto os
cemitérios que trago dentro de mim. A cerração que desaba sobre nós pode
reduzir a visibilidade dos horizontes, contudo aprofunda-me de interiores onde encontro
revivido os meus mortos. Por instantes sou londrino e sou úmido, sou um inteiro
silêncio cheio de sussurros. As vozes que me vêm de longe e de ontem
ensurdecem-me dos pequenos ruídos domésticos. A neblina que de fora da janela não
se forma aproxima-se de mim, e agora me vejo assim enevoado pelo contato das
minhas superfícies com meu solo. Algo se forma em minhas particularidades
contidas quando, privado do sol, torno-me uma bruma condensada pela evaporação
das lembranças. Estou como sempre estive desde a minha infante juventude: só e
cercado de livro por todos os lados. Será isto que sempre fui? Será que sou uma
ilha sem pontes, ou será que sou um estrangeiro em minha própria casa? Talvez eu
seja um exilado do futuro do meu passado, um expatriado do território de minha
história. Seja lá o que eu realmente for, somente sei que não sou quem poderia
ter sido. Entre a criança e o homem há um intenso corte, e esta cicatriz que de
muito carrego me faz sempre lembrar que sou um Joaquim descontinuado.
Herdo
dos meus ancestrais este baú de memórias. Entre quinquilharias várias, resquício
de uma civilização familiar fenecida lá está, como quem me espera, uma antiga
fotografia de minha infância não menos antiga. Por detrás do preto e branco
manchado de tempo a criança me olha através dos anos. O que pensa ela sobre o
que sou? Será que em seus ingênuos olhos, cujo olhar que vem de tão longe pelas
frestas das reminiscências, sonha ela futuros imaginários onde não habitarei? Contemplas
o teu pior pesadelo corporificado no colorido cinzento do hoje que antes te era
amanhã? O que tu vês menino com estes olhos que um dia já foram os meus?
No
mirar de minha mocidade primeira escondem-se desejos que agora me chegam
transformados em vagas lembranças. Ficaram tão aprisionados como este meu olhar
desbotado, nos instantes distantes que a foto não flagra, as aventuras
galácticas do astronauta que jamais me tornei. Os monstros alienígenas que
tantas vezes derrotei estão enterrados junto aos brinquedos esquecidos em algum
lugar do armário que já não existe mais. A eternidade da infância parece
terminada ali naquele retrato de um minuto congelado. Durei apenas a perpetuidade
finita de minhas fantasias pueris cuja pureza agora se perde no encontrar deste
comigo adulto. Desculpe-me meu ontem pelo hoje que te oferto.
Afoguei
meus sonhos com o acumular dos aniversários. Andei por becos e ruelas, dobrei
esquinas e segui em frente por vias estreitas ladeadas de elevados muros e aqui
cheguei depois da última curva. Meu itinerário foi feito pelo passear impreciso
dos silentes pés. Afastei-me tanto do menino, agora eu sei, que chego até a
duvidar se nasci menino. Talvez eu não tenha sido uma criança sonhando com o
adulto, mas um homem que sonha com a criança. Minha vida tem sido uma noite
inteira onde sonâmbulo transito entre uma quimera e outra. Isto o que sou: um
intervalo onírico onde me construo como um castelo no ar.
Sim,
tornei-me este homem interrompido, uma criança inacabada. Minha humanidade toda
é feita do que não fiz e do que nunca farei. O passado permanece em mim colado
como uma segunda pele que por debaixo do tecido carnal que me encobre e que se
expõe nos espelhos encapsula a minha mais verdadeira substância. Em meio à
derme e o esqueleto encontra-se um Joaquim pretérito vindo de uma era anciã que
não caducou ou sepultou seus apetites. O anoréxico sonhador em que me converti
é o oposto do bulímico em que outrora já fui. Fiz-me assim de sonhos vomitados.
Acaso
fosse uma fruta estaria apodrecida no asfalto urbano e infértil de minha
existência. As sementes que nela residem não tiveram a sorte de encontrar o pó
da terra para germinar. E como um filho que não coube ser pai sou ao mesmo
tempo órfão e estéril, pois infecundei minha vida com a fecundidade minhas
perdas.
O rei tornou-se súdito, o
guerreiro tornou-se covarde, e o médico virou paciente e o espadachim
transformou-se em escudo. Nada do que quis ser se fez. Nada do que sonhei
transbordou-se em realidade. Tudo que fui era apenas brincadeiras, folias de um
menino que se levava a sério, enquanto o homem que aqui escreve e que se
acredita sério somente é um pálido reflexo de um folguedo juvenil. Uma galhofa
com número de identidade.
Nestes
dias em que ainda respiro sou um rei sem reinado, sou um guerreiro entediado em
tempo de paz, e o branco que me encobre é tecido pelas ausências das
realizações. Como posso esgrimir se perdi a espada? Como posso voar em espaços
siderais se a minha nave ficou ali no distante olhar da criança neste retrato
que me olha sem me amar? Sou um cowboy sem cavalo, sou somente aquele que
escreve poemas para purgar suas moras e suas culpas.
Mas
se eu continuasse a ser quem era e quem poderia ter sido não seria hoje quem
sou. Não sendo quem sou, não escreveria
o que ora escrevo, nem pensaria ou sentiria o que penso e sinto. E assim não
seria eu: seria outra pessoa. Não conheceria quem conheci, não amaria quem amei
e amo, não derramaria as lágrimas que derramei, nem muito menos sorriria os
sorrisos que sorri. Sequer teria hoje as nostalgias que tenho. Seria tudo então tão diverso e diferente que já não me reconheço antes de onde me interromperam. Minha continuidade, portanto, é esta própria descontinuidade
que chamamos de biografia ou história. Definitivamente não sou um homem
interrompido, mas um homem percorrido que olha os dias com olhos de menino
triste.
Joaquim Cesário de Mello
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