sexta-feira, 7 de junho de 2013

VALE A PENA VER DE NOVO


MONTAIGNE, HOLBEIN E O TANGO ARGENTINO


Venho percebendo que tenho ultimamente utilizando os textos de Joaquim Cesário como mote para meus artigos. Que explicação eu poderia dar para isso?  Tenho algumas hipóteses – todas elas puramente especulativas. Amizade? Sem dúvida! Sintonia de inquietações? Provavelmente! Falta de imaginação? Quem sabe... Mas há em mim, desde os tempos remotos, a necessidade em entabular diálogos sejam eles quais forem.   Na adolescência apesar de tímido, elegia um restrito número de amigos de colégio, sentava na sombra debaixo de uma árvore, uma mangueira, e na hora do recreio e das aulas educação física – que eu dificilmente participava – punha-me a conversar sobre as coisas mais estrambóticas da vida: o cosmos, a vida, o capitalismo, o religião e de muitas outras inutilidades. Digo inutilidades porque eram, naquela ocasião, coisas que pouco interessava as pessoas de nossa idade. Éramos Nerds antes dessa denominação existir ou se popularizar.   O literalMENTE vem trazendo de volta estes diálogos, mesmo que a distância, daqueles e de muitos outros temas que com a maturidade deixam de ser inúteis. Temas, muitas vezes, irrespondíveis. Contudo, o último artigo de Joaquim (“Da precariedade da vida e outras finitudes”) trouxe recordações desse passado, de algumas leituras posteriores, de algumas experiências e relatos que me foram expostos em diferentes momentos da vida. Um relato recente, em especial, foi para mim bastante marcante.

 Soube de outro amigo, que ao viajar recentemente à Buenos Aires teria ido a uma casa de tango, daquelas bem turísticas e comuns nos roteiros argentinos.  O ambiente das casas de tango geralmente seduzem com  o requinte, a sensualidade e com a nostalgia, onde o passado, sempre melancólico, tem por assim dizer, um panteão portenho de figuras inesquecíveis: Carlos Gardel, Aníbal Troilo, Juan D’Ariezo, Astor Piazzolla entre outros. 

        Alberto, o amigo que eu mencionei, entusiasmado, fora a “casa” no bairro de Abasto – um  detalhe importante  que aumentaria, mesmo que alegoricamente, o sentimento de que se visitava não apenas geograficamente a capital portenha, mas se caminhava nas “Calles” do tempo. A casa estava lotada e mal o espetáculo havia se iniciado, em torno de trinta minutos, Alberto começou a sentir uma dor ou, mais precisamente, um incômodo leve no abdome que foi progressivamente se disseminado por todo corpo num misto de calafrio, vertigem e  cólica.  Sem saber ao certo o que acontecia, resolveu ir ao toalete para lavar o rosto ou simplesmente arejar-se com a luz mais intensa do recinto e, desse modo, diminuir um zunido que se iniciava nos ouvidos. No caminho, desceu um degrau, ou talvez dois, e, surpreendentemente, os seus olhos no meio daquela penumbra, abriram-se, nitidamente, não mais para o caminho do toalete, mas para a rua, o lado de fora da casa de Tango. Bem rente ao solo - estava no chão com a cabeça apoiada nos braços de algum engravatado - constatou que havia muitas pessoas que lhe  dirigiam  palavras, em tom de apelo, em português e castelhano. 
                           Confuso, leitor? Sim, provavelmente. Alberto, contudo, explicou-me melhor, embora que tenha sido assim que ele viveu e narrou esse acontecimento. O fato foi mais longo no tempo para quem que o assistiu o curto percurso de Alberto. Houve um hiato de longos cinco minutos. No caminho do toalete, o rapaz havia desmaiado, fora socorrido e levado pelos braços e pernas por argentinos e brasileiros para lado de fora da casa de show. Esse trecho de tempo, tenso e comovente, foi uma cena por ele jamais vivida. Sua recordação era sumária: o caminho do toalete seguido das luzes avermelhadas da rua de Buenos Aires. Ao ser abordado lá fora, na ocasião, se estava bem, disse que estava perfeitamente bem; seu rosto lívido, contrariando a ideia de quem teria sofrido um mal estar severo, parecia, na realidade, utilizar-se do frio como um éter prazeroso. Utilizo a palavra éter não por acaso, pois Alberto disse que tivera uma experiência minimamente parecida ao usar lança-perfume há cerca de 20 anos.
                           Sua indagação: seria isso a morte? Seria a síncope – esse elemento tão tangueiro - o intervalo da morte em vida? Essas indagações, na verdade, trazia-lhe contraditoriamente uma sensação de alívio e de reconforto, pois a ideia que tinha da morte era de um lamentável vazio, de uma interminável escuridão, de um lugar eternamente silencioso. Nenhum desses três elementos estava presentes naquela noite. Não houve buracos, as luzes não se apagaram, os sons não se interromperam – o som sincopado do tango trás essa vantagens.  Nada disso aconteceu. E o que foi que houve? “Nada aconteceu”, respondeu.  A morte era esse “nada acontecer”, era esse hiato onde sequer havia aflições.
            Esse relato me fez lembrar um episódio semelhante, embora mais grave, vivido há quatro séculos pelo filósofo Michel Montaigne. Do mesmo modo, após sofrer um acidente ao andar de cavalo, viveu “intervalo” semelhante, e esse acidente de equitação, que o deixou entre a vida e a morte, fez com que tomasse decisões e redefinições importantes na sua vida como narrou sua biógrafa, Sarah Bakewell (autora do recomendado texto “Como Viver: Uma Biografia de Montaigne em uma pergunta e vinte tentativas de respostas”)

Acredita-se que os seus famosos “Ensaios” teriam se iniciado após essa vivência, quando se encastelou na biblioteca de seuChâteau em Bordeaux.  Nos seus escritos a ideia de vida e de morte ocupam parte do seu pensamento, contudo, sem aflições, tampouco resignações. Cético, o mesmo Montaigne que disse:  “Todos os dias vão em direção à morte, o último chega a ela” ou  “Os homens têm tal apego à própria miserável vida que aceitam as mais duras condições para conservá-la.",  é o mesmo autor das frases: “Ensinar os homens a morrer é ensiná-los a viver" e  "Viver é o meu trabalho e a minha arte" ( Montaigne também leu Sêneca).


Hans Holbein, o Moço 
Os Embaixadores, 1533, óleo e têmpera sobre madeira. National Gallery, Londres – Inglaterra:



                           Os conceitos parecem se misturar entre o linear e o paradoxal quando se trata de falar de vida e morte. Representa-se com habilidade as coisas da vida, mas a morte parece que não tem ícones. Uma imagem, contudo, ainda me impressiona no quadro de Hans Holbein “Os Embaixadores”.  Na pintura renascentista assiste-se a uma cena, um retrato cotidiano do século XVI, mas se nos detivermos num detalhe abaixo dos retratados, observa-se algo disfórmico atravessar-se como um artefato.  É um crânio distorcido. Essa enigmática imagem tem se desdobrado em várias discussões sobre a ideia de morte e de vida, enfim, da finitude comentada por Joaquim.  Ao ver esse quadro pude entender que a vertigem sentida na Casa de Tango, anuncia essa ideia de morte com o crânio disfórmico – uma ideia angustiante.   “Apenas anuncia, nada mais que isso...”, corrige-me Alberto. Porque, como ele bem disse, não há metáforas para o “o nada acontecer”. Não há tangos sem síncopes.

Marcos Creder

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