terça-feira, 2 de outubro de 2012

LITERALPÉDIA


PSICOLOGIA DOS DITOS POPULARES



            A VOZ DO POVO É A VOZ DE DEUS”, esta é uma das mais conhecidas expressões populares e que vem do latim vox populi, vox Dei. Presume-se que sua origem vem lá de trás, desde a Antiguidade Clássica grega. Acreditava-se que o deus Hermes falava diretamente com o cidadão que ia ao templo de sua adoração através de um oráculo. Logo após consultar o oráculo o cidadão tampava os ouvidos com as mãos e voltava às ruas. As primeiras palavras proferidas aleatoriamente por algum passante seriam, portanto, a resposta divina. Em outros termos: perguntava-se a um deus, mas quem respondia era o povo.

            Pois é, o povo tem lá suas verdades divinas e são sobre essas verdades e sabedorias que vamos entender um pouco do ser humano e sua psicologia. Longe do douto saber da academia e suas teorias, o conhecimento popular, adquirido historicamente muitas vezes de maneira empírica, embute nos dito e ditados um saber que, embora não erudito, traz uma enorme e valiosa instrução e cultura. Assim, dediquemos hoje o espaço a explorar e melhor compreender os significados, os sentidos e as origens dos adágios populares, ou seja, os ensinamentos e verdades que vêm da plebe.

            QUEM CONTA UM CONTO ACRESCENTA UM PONTO”. Eis um provérbio que claramente destaca a inconfiabilidade plena do testemunhar e do relato humano sobre o mesmo. Cada pessoa, ao relatar uma história ou um mesmo acontecimento tende a acrescentar algo de sua autoria. E isto não é feito necessariamente de maneira volitiva. Muitas vezes até inconscientemente e/ou projetivamente. O grande cineasta japonês Akira Kurusawa em seu filme Rashomon descreve a impossibilidade de se obter a verdade sobre um fato quando há pontos de vista diferentes. Quatro pessoas testemunham um crime e seus depoimentos geram quatro histórias distintas. O filme gerou a expressão “efeito Rashomon”, conhecida no campo da Psicologia e das Ciências Sociais e que significa ser possível haver versões diferentes e contraditórias sobre um mesmo objeto de estudo. A verdade é sempre subjetivamente distorcida. A memória humana, por exemplo, é continuamente traiçoeira e enganosa. Em nossa mente ou cérebro os acontecimentos não ficam registrados em gavetas ou fichários, mas sim se espalham dentro de nós. Nossos registros mnêmicos não são fotografias fidedignas, mas frutos de nossas vivências, emoções, fantasias, expectativas e até mesmo de nossa bagagem e nível cultural. Nossa memória é uma reconstrução influenciada pela subjetividade do mundo interno. Vai confiar totalmente em suas lembranças! Freud que o diga.

            “GATO ESCALDADO TEM MEDO DE ÁGUA FRIA”. Utiliza-se este ditado para expressar a ideia de que quando um indivíduo fez algo que lhe gerou sofrimento jamais voltará a repetir tal feito. O anglo-saxônico tem sua correspondência com “once burned, twice shy”, isto é, uma vez queimado, duas vezes tímido. Evidente que se fala dos medos humanos e como eles são condicionantes. Muitas vezes algumas pessoas, por recearem reviver feridas que a vida lhe provocou, fecham-se para o mundo e para as pessoas no intuito de se protegerem. Acontece que muitas dessas muitas vezes são devidas a sofrimentos tão remotos que sequer o indivíduo sabe ou se dá conta. É o que ocorre quando se desenvolve e se forma uma personalidade fundada em um Falso Self. Tal conceito winnicottiano nos remete a construção da subjetividade por meio da relação com o ambiente (objeto) cuidador. Logo no início da vida é o objeto que atende toda e qualquer necessidade de um bebê, porém nem sempre o ambiente é assim tão empaticamente responsivo. Quando esta não responsividade extrapola os limites de um rudimentar ego em formação (suportabilidade) o bebê vai se encouraçando por detrás de um Falso Self. O Falso Self, assim, representa uma espécie de barreira frente ao ambiente não responsivo e por isso sentido como hostil. Algo parecido expõe Erikson na crise adaptativa inicial da vida que ele denominou de Confiança Básica x Desconfiança Básica.

            A PRESSA É INIMIGA DA PERFEIÇÃO”. Eis um ditado bastante pertinente aos tempos atuais onde tudo parece tão urgente e a velocidade tomou contornos de um novo paradigma de vida. Tempinho este provocador de ansiedades. Um sujeito ansioso geralmente quer tudo pra já e esperar e deixar para momentos oportunos é um tormento quase atroz. Uma pessoa ansiosa frequentemente é alguém um tanto vulnerável a pressões (internas e externas) e no aumento da pressão e no elevar do stress subsequente diminui a capacidade reflexiva do mesmo. Lembro-me aqui da famosa historinha infantil sobre os três porquinhos e o lobo mau. Lembram? Dois decidiram construir suas casinhas rapidamente de palha e madeira para ficarem com tempo livre e brincar. O terceiro, ao invés, levantou sua casinha tijolo por tijolo enquanto os outros dois ou ficavam brincando ou descansando. Após as casas construídas eis que chega o lobo e cada porquinho vai pra sua casinha. Como as duas primeiras foram mal edificadas facilmente o lobo as derrubou com um sopro. Já a terceira não, afinal ela era de alvenaria e bastante resistente. Pois é, a pressa é inimiga da perfeição. Há uma expressão latina atribuída ao imperador romano Augusto que é festina lente, ou seja, apressa-te devagar. Nem tão lento que mal se mexa nem tão apressado para não atabalhoar. Erra-se menos. Um tio meu, poeta já falecido, Edson Régis, já escrevia que “não devemos ter a pressa que aniquila o verso”.

            “AGORA A INÊS ESTÁ MORTA”. Este ditado tem sua origem em Portugal do século XIV quando Inês de Castro, uma bela jovem da corte de Dom Afonso IV, prometida em casamento ao herdeiro do trono é desobrigada do enlace conjugal pelo próprio rei. Depois de casado com outra mulher o antes prometido em casamento e Inês começam um relacionament adúltero bilateral, visto que Inês também houvera contraído núpcias com outro homem. Após vários escândalos voltas e viravoltas Inês é executada e mais adiante o herdeiro assume o finalmente  trono de Portugal, mas “agora Inês está morta”. História a parte, evidente que o dito popular refere a situações irremediáveis. Tem coisas ou situações na vida que não retornam jamais. Passou, acabou, findou, morreu. Sabe quando é tarde demais? É o sujeito sofrendo e se remoendo tipo “ah, se eu tivesse feito isso”, “ah, se eu tivesse feito aquilo”, mas não adianta, apenas gera desespero e arrependimento, afinal “Inês tá morta”. É necessário continuar a vida, afinal se o tempo acabou para certas coisas, não acabou pra outras. Pessoas que não aceitam que a Inês já morreu são pessoas que vivem de reminiscências, pessoas nostálgicas. Porém, como diz outro dito, “quem vive de passado é museu”. Devemos nos orgulhar da vida vivida até então, com suas falhas, erros, sucessos, fracassos, perdas e acertos. Devemos aceitar que a Inês tá morta, mas que ainda há outras Inêses vivas por aí.

            “FILHO DE PEIXE PEIXINHO É”. Parece muito com aqueles versos da música de Belchior “nós somos os mesmos e vivemos como nossos pais”, afinal a personalidade do ser humano é sempre formada através do contato do self em formação com o self das outras pessoas (interpessoalidade), mormente o self dos pais ou seus substitutos. Essas pessoas significativas com quem a criança entra em contato em sua infância são inconscientemente internalizadas através de mecanismos como identificação. A chamada internalização das figuras parentais, inclusive, gera no psicodinamismo da alma humana uma nova força a antagonizar e até se contrapor a força instintual dos impulsos. Estamos, pois, a falar daquilo que Freud denominou de Superego. Esta parte moral do psiquismo (que não existia no início da vida) representa, entre outras coisas, valores socioculturais gradualmente introjetados. E são os pais nossos primeiros representantes sociais. Internalizamos valores, normas e interditos, mas também jeitos, maneiras e maneirismos.

            “PIOR CEGO É AQUELE QUE NÃO QUER VER”. Reza uma história antiga, que vem da França do Século XVII, que um certo aldeão submeteu-se ao primeiro transplante de córnea. Embora a cirurgia em si tenha sido um sucesso, o aldeão solicitou ao seu médico que o fizesse cego outra vez, pois não estava suportando ver o mundo e as coisas como elas eram. Preferia o mundo que imaginava através da escuridão de seus olhos cegos. Dizem que o caso foi terminar nas barras do tribunal e que o aldeão ganhou a causa, ou seja, a do cego que não queria ver. Verídica ou não tal história, o que podemos inferir do ditado é que a mente humana tem mecanismos e recursos psíquicos para não ver o que lhe pode ser visíveis. Entre esses mecanismos sobressai-se a negação. Não é tão incomum a tendência de negar pensamentos, percepções, sensações ou sentimentos desagradáveis, afinal somos lá no fundo do psiquismo regido pelo Princípio do Prazer. Em outras palavras a negação é um recurso defensivo da mente para não tomar consciência de algo que lhe perturba. Em casos extremos o mecanismo da negação pode querer negar a realidade e não somente recalcar aspectos dela. Em casos assim estamos na órbita do transtorno psicótico. Mas nem só de psicose vive a negação. Pode-se negar não a realidade em si, mas certas coisas que estão a frente ou a própria verdade. Há pessoas que preferem viver em suas zoninhas de conforto a ter que enxergar e lidar com o novo e o desconhecido que está além das cercas do curral em que suas vidas se transformaram. Realmente não é fácil ver além dos horizontes em que se está acostumado ver e muito mais difícil ainda é se expandir para mais de suas cercanias habituais. Difícil sim. Impossível não. Neste sentido, prefiro encerrar o presente texto com a seguinte colocação do escritor americano do Século XIX Mark Twain "They did not know it was impossible, so they did it!".



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