domingo, 29 de julho de 2012

RAÍZES PSICOLÓGICAS DA PSICOTERAPIA: ANATOMIA DE UMA RELAÇÃO (ÚLTIMA PARTE)


Com o texto abaixo damos seguimento e conclusão aos posts anteriormente publicados aqui no blog LiteralMente nos dias 01 e 15 de julho do presente ano.
São inegáveis os avanços proporcionados pela neurociência e pela psicofarmacologia. Todavia tal progresso trouxe em seu bojo certos retrocessos, tais como a ênfase nas psicoterapias atuais no tratamento somático. Evidente que a busca de melhoras sintomáticas se faz necessário, mas não somente. Não somos apenas um resíduo externo de alterações químicas e fisiológicas do cérebro. Não nos resumimos psiquicamente a neurônios, sinapses e atividades biológicas. Algo em nós nos habita além do nosso corpo e que comumente chamamos de mente e outros de alma.
Sim, a mente não existe sem um cérebro. É como diz Sonenreich, "a mente é um produto da inserção e da interação do cérebro dentro da cultura". Biologicamente somos dotados de um instinto de sobrevivência que nos leva a formar relacionamento com outras pessoas. Como já referido na segunda parte do presente texto, postada em 15/07/2012, o instinto e seus comportamentos derivados foi denominado por Bowlby de "sistema de apego". O sistema de apego é ativado toda vez que alguém se vê frente a algum perigo que lhe ameace. A ideia de perigo gera sensações de ansiedade e angústia que frequentemente são amainadas com a proximidade de um outro que gere cuidado e proteção. O senso de segurança, por sua vez, faz com a pessoa consiga lidar com o perigou com a ameaça de perigo com mais tranquilidade, dando-lhe assim chances de ser mais bem-sucedido. E é aqui que entra a importância da psicoterapia, ou mais precisamente do vínculo psicoterápico.
Técnicas à parte, psicoterapia é comunicação. O cliente comunica suas necessidades frente a um terapeuta que não somente recebe e processa as informações, mas também atente a necessidade humana de se comunicar com um outro. Somos seres por natureza e por excelência dialogais, ou como diz Bakhtin "sem material semiótico não se pode falar em psiquismo". Ou ainda como nos versos iniciais do poema Tecendo a Manhã de João Cabral de Melo Neto: "um galo sozinho não tece uma manhã/ele precisará sempre de outros galos". É isto o que temos no encontro psicoterápico: o compartilhamento de mentes humanas.
Um dos mais importantes teóricos do cenário psicoterápico, Winnicott, sempre destacou o papel do ambiente na integração com o indivíduo. Um “ambiente facilitador” é como o próprio nome diz: facilita o desenvolvimento psíquico que é potencialmente inato. A prática clínica se faz em um espaço (físico e intersubjetivo) que deve estar sempre aberto e disponível para o novo, o criativo e a descoberta mútua.
Já Kohut, outro autor que nos oferece elementos relevantes e significativos para o entendimento do que se passa subliminarmente em uma relação psicoterápica, contribui com a premissa de que a pessoa do terapeuta (enquanto objeto e função) será internalizada paulatinamente na estrutura do self do cliente/paciente. Como diz Kohut, não são as intervenções do terapeuta que curam, mas sim o uso do self deste como objeto por parte do self do cliente. Uma postura introspectiva, questionadora e empática do terapeuta é, portanto, um componente fundamental no processo de mudança que uma psicoterapia propicia. Tal postura (conjugada a função continente que faz menção Bion e o holding como sugere Winnicott) não somente gera um “lugar” do psicoterapeuta dentro do setting clínico, mas principalmente uma figura ou representação psíquica de segurança e proteção para os mergulhos alma adentro, afinal, como escrevem Vitor Rodrigues e Mariza Hutz, a mudança é uma potência que deseja por um espaço no psiquismo e aguarda uma oportunidade.
O que torna uma psicoterapia eficaz ainda é um mistério a ser desvendado, pois nosso conhecimento acumulado de mais de 100 anos é insuficiente para sabermos com exatidão. Mas avançamos e estamos avançando, é bem verdade. Estudos e pesquisas a respeito centram-se em dois aspectos: investigação dos resultados terapêuticos e investigação dos processos. São vários e diversos os ingredientes terapêuticos envolvidos que contribuem para a mudança psíquica e comportamental do indivíduo. Embora qualitativamente seja ampla a questão, indubitavelmente os mecanismos de ação terapêutica se processo graças e com a presença humana de um psicoterapeuta.
Evoco aqui analogamente, dadas às devidas proporções, o fenômeno do efeito placebo. O placebo é aquele fármaco ou substância inerte (“pílula de açúcar”) que apresenta efeitos terapêuticos com base na crença do paciente de estar sendo tratado. É um fenômeno fortemente psíquico com resultados reais que é causado pela ilusão subjetiva de que tal substância vai ajudar. As crenças e as esperanças de uma pessoa têm significativos efeitos psicológicos e bioquímicos sobre o mesmo. É como demonstra o antropólogo Claude Lévi-Strauss ao referir que a eficácia da magia implica na crença da magia. Para ele o fenômeno da feitiçaria é calcado em um tripé assim constituído: a crença do feiticeiro na eficácia de suas técnicas, a crença do doente de que ele é capaz de curá-lo ou de enfeitiçá-lo e o background social de que aquela relação é uma relação de feitiçaria.
Não que uma psicoterapia seja uma relação de feitiçaria, é óbvio, mas que ela se processo em um campo gravitacional semelhante ao da magia. E isto não está distante do conhecido conceito lacaniano do “sujeito do suposto saber”, afinal quando um paciente procura um psicoterapeuta ele trás consigo suas esperanças, sua confiança no outro e sua crença de que este outro detém um saber que irá ajudá-lo. Gostem ou não os mais objetivistas, mas direta ou indiretamente o cliente coloca seu terapeuta em um lugar de figura de autoridade. E assim, queiramos ou não, um processo psicoterápico se inicia com e a partir do estabelecimento de uma transferência.
O próprio Skinner também deu sua contribuição ao entendimento dos efeitos terapêuticos da relação em si no que ele denomina de “audiência não punitiva”, isto é, na atitude compreensiva do terapeuta dos comportamentos do cliente sem julgá-lo e que propicia a exposição mais livre da intimidade por parte do paciente na expressividade do que quer, do que pensa e do que sente. O compartilhamento com alguém dos segredos, medos, inseguranças, pensamentos, dúvidas, conflitos e afetos já é por si próprio terapêutico. 
A utilização do setting como um espaço promovedor de uma relação íntima e de envolvimento é fundamental. Mesmo que a exposição de certos conteúdos psíquicos por parte do cliente possa ser dolorosa é papel e função do psicoterapeuta inibir os movimentos evitativos e de esquiva, através de sua capacidade de continência e tolerância em meio a um clima de confiança, respeito e aceitabilidade. Aos poucos o paciente vai melhor compreendendo suas evitações e respostas de esquiva e escape e com isto igualmente tolerando suas experiências subjetivas dolorosas e, assim, desenvolvendo outros repertórios que o auxiliam a crescer psicológica e emocionalmente.
Enfim, toda e qualquer psicoterapia é sempre um processo complexo de inúmeras variáveis e que se faz dentro de um cenário e contexto interpessoal. Ambos os envolvidos – paciente e terapeuta – não ficam e saem ilesos desta relação. Embora o foco transformativo esteja voltado ao cliente, o psicoterapeuta é também reciprocamente tocado pelo clima psicoterápico. Como afirma Brandão em “Os sentimentos na intervenção terapeuta-cliente como recurso para a análise clínica”, publicado no livro Sobre Comportamento e Cognição, o exercício diário de um psicoterapeuta é fazer crescer e reciprocamente ele também cresce.
Espero, ao término deste artigo aqui dividido em três partes, estar dando minha modesta contribuição ao campo de estudo da psicoterapia, mormente em tempos cuja atividade clínica corre o risco de se estar reduzindo a uma quase mera aplicação de manuais e execução de protocolos. A subjetividade humana é rica e vasta para ficar empobrecida somente porque estamos ficando preguiçosos em estudar mais, refletir e aprofundar tanto os conhecimentos já adquiridos como em investigar os mistérios da alma humana. Sem isto a alma do próprio psicoterapeuta empobrece e empobrecida de pouca serventia tem ou quando tem contribui para alívios e melhoras mais imediatas e pouco ou quase nada para a mudança, mudança psíquica esta que no fritar dos ovos é o que realmente interessa.

Joaquim Cesário de Mello

domingo, 22 de julho de 2012

O MITO DE MEDEIA E A ALIENAÇÃO PARENTAL


ATRIBUI-SE A SÓFOCLES, dramaturgo grego, autor da peça Édipo Rei, a frase: “tento retratar a vida como ela deveria ser, Eurípides retrata como ela é...” na verdade, Sófocles falava de Medeia, umas das peças mais trágicas da dramaturgia universal. Para quem não conhece o texto, a história dessa personagem enigmática do teatro clássico pode ser resumida da seguinte forma: Medeia, uma feiticeira, é abandonada por Jason, seu marido e pai de seus dois filhos, por ter se apaixonado por Gláucia, filha do rei de Corinto.  Medeia é tomada por uma dor intensa e por um profundo sentimento de vingança. Acuada na sua crueldade, Medeia comete um dos crimes mais horrendos já conhecidos, mata as duas crianças na tentativa de punir e de se vingar do ex-marido.

 Porque se falou que Eurípides em Medeia falou da vida como ela é? Assistimos a esse crime diariamente? Se tomarmos como parâmetro “Édipo Rei” – peça tão explorada pela psicanálise – , observa-se veladamente a repetição de um drama familiar simbólico. O pai, a mãe, ou seus representantes são colocados no lugar de rival e a cena trágica é apenas vivida de maneira reservada na angústia da criança. Fantasia-se, por assim dizer, um parricídio, mas o pai está ali ao lado, acarinhando e acalentando esse pequeno “criminosos de fantasia” – ainda sim, invadido por uma imensurável culpa.  Em Eurípides a repetição não é apenas simbólica, não é de fantasia, mas de uma real agressividade. Medeia seria a representação da maldade, da autodestruição, da vingança e da impulsividade. Apesar das inúmeras leituras que esse texto pode desmembrar, darei, aqui, um foco específico: o da agressão aos filhos.

Quantas vezes já ouvimos falar de mulheres e homens que em função da frustração de rompimentos e separações conjugais, fazem dos seus filhos armas e escudos para atingir o outro? Quantas vezes ouvimos dessas pessoas, com um tom de uma suposta abnegação, que são dedicadas “exclusivamente” aos seus filhos, enquanto que o outro é sempre distante, relapso, desalmado, negligente e muitas vezes monstruoso? Certa vez, ouvi um relato em que a mulher para afastar o ex-marido da filha teria o acusado de pedófilo. Em outra ocasião, uma criança indagou a mãe porque ela tinha optado pela profissão de prostituta – como ela era chamada na casa do pai.  Um menino de apenas três anos chamava o pai aos risos de “psicoPAIta”.

Pois então, aí está a crueza do mito de Medeia fazendo translações na vida humana e no conceito de alienação parental.  Observamos aqui, vividamente, essa personagem se presentificar com todos os seus sentimentos horrendos.  Medeia habita parte da condição humana, no mesmo cômodo onde estão a inveja, a ira e a vingança, ao lado da dor e do ciúme. Ressentida, como diz Shakespeare, “toma o veneno para atingir o outro”, e acrescento, atingir aos outros. Ao contrário do mito de Édipo que, em geral, atribui-se ao processo de subjetivação, em Medeia se assiste ao dano, muitas vezes ao dano irreversível.



            No final da peça de Eurípides, a feiticeira foge de maneira altiva e impossível, toma um carro em direção ao sol. O filósofo Aristóteles criticou esse final por contrariar as regras da ‘poética’ trágica, que faz o fim da peça ser por deveras inverossímil, em que o herói fracassa e a agente da tragédia escapa ilesa – incolumidade trágica demais. Discordo em parte. entendo que o final da peça, mesmo não sendo moralista, não é assim tão triunfante. Certamente, no caminho do sol, a personagem corre o risco na sua ira desmedida de incendiar-se no seu próprio ódio.

                                                           Marcos Creder

sexta-feira, 20 de julho de 2012

RECITAR-SE: UMA PEQUENA ODE AOS PSICÓLOGOS DO AMANHÃ


Joaquim cesário de Mello

Talvez, em meus anos estudantis, também houvesse algum professor que olhava nossa geração com olhares de desencanto, desesperança e nostalgia. Talvez esse suposto professor presenciasse o transitar sociocultural de uma era e, assim, com certa estranheza e alguma soberba dissesse baixinho cá com seus botões “na minha época era melhor”. Talvez...
                Talvez o mesmo esteja acontecendo comigo agora quando do outro lado do balcão. Na figura de professor, vejo-me a cada ano que passa mais desanimado e desapontado, muito parecido com aquele professor que sequer sei se realmente existiu com seus olhares de desencanto, desesperança e nostalgia. Entristece-me deparar com o empobrecer dos alunos de hoje. Não que o hoje tenha começado hoje, já vem de algum tempo, mas gradualmente o que observo são turmas (pessoas) esvaziadas de bagagem humanística, ocas e desprovidas de exercício crítico e reflexivo. A agudicidade de lidar e sentir as coisas significativas da vida parece anoréxica, falta ou carece de um mínimo de conhecimento cultural sobre o que há de mais humano em nós que é a nossa própria humanidade sócia histórica.
                Contudo, isso não é um fenômeno restrito às paredes das salas de aula, é acima de tudo um fenômeno social. Alguns chamam a geração dos tempos em que aqui escrevo de “Geração Z”, ou seja, toda uma geração nascida sobre a égide da internet. Uma geração imediatista e habituada ao zapear. Embora altamente conectada muitas vezes sequer saiba calcular uma equação matemática, por exemplo. É só teclar uma calculadora, e pronto. No culto ao iPhone, verifica-se uma imensa multidão de pessoas cheias de informações fragmentadas e pouca ou quase nenhuma cultura filosófica, artística, cientifica e humanas. Um verdadeiro empobrecimento intelectual das massas.
                Choramingos meus à parte, eis que de vez em quando sou surpreendido e caio do pedestal de minha pretensa arrogância e pedantismo. Recentemente um grupo de jovens alunos lá da FAFIRE (Andreza Crispim, Caio César, Lucas Garcia, Jonas Araújo, Jéssica, Andressa Costa e, creio, outros) criaram o grupo de poesia “Recitar-se”, ou como eles mesmos chamam “encontro de falação de poemas entre amigos do Recife”. Quem diria poesia! Logo hoje em que a poesia, principalmente a literária, está ficando reduzida a guetos. Logo hoje em que vivemos a ditadura das imagens digitais e quando se sabe menos pensar escrevendo ou escrever pensando. Logo hoje em que canetas, papéis e caligrafias parecem repousar em museus ou cemitérios. Logo hoje, quem diria, ainda se pensa e se produz poesia!
                A poesia é mais do que uma forma de escrever, é uma forma de ver e viver o mundo e a vida. Mais do que estética, poesia é transcendência e é arte. Mais do que texto, poesia é sentimento. E neste sentido, tanto faz se é escrita, pictórica, falada, imagética, sonora ou digital. Poesia é poesia e não se restringe a páginas de papéis ou livros. Repito, poesia é uma forma a mais de ver a existência e de lidar com o mundo. Dizia o poeta Mário Quintana, “se alguém te perguntar o que quisestes dizer com um poema, pergunta-lhe o que Deus quis dizer com este mundo”.
                Um poeta não é feito de barro, aço ou ferro, mas é feito de sensações, olhares e sentimentos. É como se enxergasse além das coisas e as expressasse em verso e prosa. Não se nasce poeta, descobre-se poeta, afinal há em todo homem, em todo ser humano, um poeta escondido pronto a se achar, a falar, ouvir, ver e escrever. O pessoal do Recitar-se clareou-se. O mundo nunca mais será o mesmo para eles.
                Há muito afirmo que se não sabemos ler poesia jamais saberemos ler uma alma humana. Como se ser um bom psicólogo sem a sutileza e a aguda intimidade de um verso. Toda alma é pura poesia. Veja só ao seu redor, leitor, quantas imagens poéticas existem? Uma, duas, sete, cinquenta, cem? São incontáveis os poemas que nos circulam em uma prosaica cena qualquer, apenas muitas vezes não nos apercebamos. É como aqueles óculos deixados sobre a escrivaninha, ou como aquela cadeira vazia ou como o vento que entra pela janela. Bem descreve a escritora Ana Hatherly: “o poeta é um pintor do mundo invisível”.
                Voltemos aos nossos emergentes poetas, aliás, aos psicólogos do por vir, já que eles já ensaiam seus primeiros e sólidos passos. Como não se encantar com a madurês contida na construção dos seguintes versos: “o tempo passou, porém você ficou estático/você é um mero recorte daquele m momento/algo que não se aplica mais na realidade./A sua voz é a mesma/a minha capacidade de ouvir diminuiu.../aquele seu cheiro só seu persiste/preencho a casa de incensos.../você se transformou em uma lembrança imediata./Não consegui deixar para trás a vontade de crescer./Eu andei/e você ficou na estrada/e nós caminhamos sem sentir./Andei sobre ela/já você se deixou ultrapassar./A estrada passou sobre ti/e você nem viu”.
                Não é o traçado dos versos que aqui saúdo, mas a atitude. A atitude de não somente se sujeitar ao confinamento confortável da mesmicidade cotidiana. Atitude de se expor à angústia de existir e que é também a beleza de se ser. Atitude de dessuforcar fantasmas e se confessar sujeito. Atitude de subverter a lógica das multidões e ampliar horizontes. Atitude em se confrontar com o materialismo contemporâneo dando voz ao inexprimível interior das próprias emoções. Atitude em se assombrar no expandir sensível da subjetividade. Atitudes. Atitudes estas que no cerzir das palavras costuram o psicólogo do por vir.
                Uma escuta clínica é também uma escuta poética. Olhar o ser humano que nos procura ou necessita com olhos de poeta é antes e acima de tudo aproximar a alma do que ela tem de mais humano: o seu simbólico. Um encontro psicoterápico não é um encontro protocolar e nem a abordagem que tal encontro suscita em toda sua singularidade não se encontra escrita em manuais ou qualquer livro didático. Ali onde aquelas subjetividades se interligam é pura poesia. Falta apenas o poeta e o poema.
                Pois é, caro e eventual leitor, no achado de versos como “a minha ousadia é esconder o que me pertencia/foi bobagem pensar que assim me protegeria./Sinto muito por me perder/o que queria era me encontrar” encontro agora alívio a uma pergunta que tanto me atormentava: a quem encaminhar meus netos se necessitarem de psicoterapia? Sim, o amanhã se faz no fazer do hoje e hoje já sei onde estão alguns psicólogos do amanhã. Meus futuros netos já podem se neurotizar.
PS: o primeiro encontro do Grupo Recitar-se está gravado no vídeo:

quarta-feira, 18 de julho de 2012

(ESPAÇO DO COLABORADOR) Segredo e Paixão

Lucas Gomes Garcia (curso de psicologia FAFIRE)

Às vezes ao começar um texto ou um poema sinto certo vazio, uma certa falta de criatividade ou até mesmo de inspiração, mas há momentos em que as palavras simplesmente passam para o papel ou, no referente caso, para o computador de maneira fluida e graciosa, moldando o texto de acordo com os meus pensamentos. Refiro-me a isto porque estava a algumas semanas conversando com meu professor de psicologia, Joaquim Cesário de Mello, sobre um texto que estava produzindo para falar sobre minha experiência ao ler Bukowski, um autor que veio a me impressionar de maneira bem positiva com seu texto descontraído de palavras fortes, porem simples; mas durante a conversa eu comentei que tinha visto novamente, após alguns anos, o grande filme argentino, “O segredo dos seus olhos” e que tinha percebido como era importante rever alguns filmes para compreendê-los melhor e passar por uma nova experiência extremamente diferente à primeira. Com simplicidade, Joaquim me recomenda produzir um texto sobre o tema e explica o meu sentimento de uma nova experiência ao explicar que é comum ser tomado pela emoção na primeira vez que se tem contato com o filme e na segunda vez analisa-lo melhor. Pois bem, a partir de esta conversa e minha admiração por este maravilhoso filme, me dispus a escrever um texto que fluiu de maneira clara e agradável.
Todos, alguma vez na vida, já escutamos que os olhos são a janela da alma, caso eles sejam ou não, eu venho a concordar com o filme, que mostra que se os olhos não são a janela da alma, pelo menos guardam um grande segredo. Tomo a liberdade de usar as palavras de Joaquim ao dizer que vi o filme através de outros olhos, e que agora eu entendo de fato uma das grandes mensagens que o filme traz, a paixão.
Primeiramente temos que separar a paixão do amor, e entender que são completamente diferentes, entender que a paixão pode ser muito mais destrutiva e imatura do que o amor, mas também mais breve e passageira. O que o filme por sua vez levanta, é que a paixão por algo é invariável, ela não muda, ela é incontrolável, ela é inconsequente. Mostra como a paixão pode se sobrepor a tudo, mesmo que nos prejudiquemos; tomaremos a decisão sempre a favor da paixão.
Trecho do filme:
Escribano: Una pasión es una pasión.
Sandoval: ¿Te das cuenta Benjamín? El tipo puede cambiar de todo: de cara, de casa, de familia, de novia, de religión, de Dios... pero hay una cosa que no puede cambiar, Benjamín... no puede cambiar... de pasión.”
Tradução:
Escribano: Uma paixão é uma paixão.
Sandoval: Você percebe Benjamín?
O cara pode mudar tudo, a cara, a casa, a família, a noiva, a religião, Deus... mas tem uma coisa que ele não pode mudar Benjamín... ele não pode mudar... a paixão.”
O filme mostra como todos nos movemos através da paixão, como todo objetivo esta ligado e norteado a partir do desejo que a paixão causa dentro das pessoas. Mostra a paixão de um amante, a paixão por um esporte, a paixão por um objeto, a paixão por um objetivo, até mesmo a paixão por um olhar, por um segredo. Por outro lado, vejo a paixão como algo de grande intensidade, entretanto, passageira. Talvez a paixão na qual o filme se refere seja uma obsessão, uma forma diferente, um estado em que deixou de ser paixão e passou a ser algum tipo de patologia, no entanto, quem sabe a paixão por si só quando estabelecida não é a própria patologia? Quem sabe os olhos não sejam a janela da alma e sim a transparência da paixão? Quem sabe a paixão não seja a própria alma?

domingo, 15 de julho de 2012

RAÍZES PSICOLÓGICAS DA PSICOTERAPIA ANATOMIA DE UMA RELAÇÃO Parte II




Terminamos a primeira parte do presente texto destacando que uma relação interpessoal psicoterápica proporciona o acionamento de aspectos e fatores psicológicos salutogênicos que há em qualquer ser humano. Para tal é preciso ter consciência deles e saber manejá-los a serviço dos objetivos e propostas terapêuticas. E não se poderia adentrar no tema sem transitar por Bowlby e pela Teoria do Apego.
Bolwby, psicanalista e psiquiatra inglês que proporcionou uma conciliação entre a Psicanálise e a Etologia, postulou, com base em evidências etológicas, que laços afetivos existentes entre aves e mamíferos (incluso o ser humano) são processos psicologicamente desenvolvidos com base na tendência de adaptação para se estar próximo a uma figura de apego. Existe no bebê humano, como em outros animais, uma inata aptidão para o contato com outro ser do espécime, isto é, outro ser humano. Tal propensão ingênita representa a necessidade de um cuidador além de uma necessidade alimentar. O apego que nos é uma tendência inata é uma inclinação a um tipo de vínculo onde o senso de segurança está intimamente ligado a um objeto de apego. A partir das vivências relacionais com tal figura de apego (cuja presença proporciona segurança e conforto) cria-se naturalmente uma espécie de “base” ou “porto seguro” de onde se pode partir para explorar o mundo.

Os achados da Teoria do Apego, também chamada de Teoria do Convívio, abriram enormes janelas à compreensão dos processos de mudança em psicoterapia. Tais achados, portanto, demonstram que a principal tarefa de um psicoterapeuta é exatamente ser uma figura de apego. A relação terapeuta-cliente, nomenclaturas à parte, é sempre uma relação de apego-cuidado.
Os comportamentos de apego são condutas instintivas (sim, o ser humano além de ser um ser cultural, moral e social, é antes de tudo um animal) que são eliciadas em situações de stress e medo. Como mecanismo básico e biologicamente programado o sistema de apego envolve um objeto de apego que estando disponível oferece respostas e sentimentos de segurança. Todos temos necessidades de segurança e proteção. E é a partir das primeiras relações de apego (inicialmente com as figuras parentais) que a criança que um dia já fomos vai construindo internamente um modelo representacional de si mesma fundada na maneira como ela foi cuidada. Durante toda a vida do ser humano o comportamento de apego está presente. Emitimos sinais comunicacionais que buscam aproximações e interações com outras pessoas, isto é, buscamos responsividade as nossas necessidades psíquicas e vincularidades. As necessidades de figuras de apego que nos proporcionem uma “base segura” são tão vitais para a alma quanto é o alimento para o corpo.
Estudos mais apurados sobre a vinculação apontam para a importância desta no tocante a melhora clínica, isto é, a respeito dos resultados positivos alcançados pela psicoterapia. Embora alguns psicoterapeutas não se apercebam disso, muito das melhoras, êxitos e sucessos terapêuticos alcançados deve-se a relação vincular. O poder que tem a capacidade vincular do ser humano não deve e não pode jamais ser subestimada. Desde o nascimento o indivíduo humano é desaparelhado para os enfrentamentos de se estar vivo, sendo ele igualmente não dotado para viver sozinho. Tal imaturidade se traduz na necessidade de envolvimento com um objeto externo (pessoa), pois é esta a função primeva da vinculação, isto é, a sobrevivência. A sobrevivência de uma cria humana basicamente se dá através de uma relação interpessoal e desta relação inaugural vamos formando nossos primeiros laços afetivos e psíquicos.
Retornando à Teoria do Apego o sistema de vinculação, análogo a outros sistemas fisiológicos, é um sistema que nos dirige a busca de objetos de apego com os quais se obtém amparo e apoio psicológico, vitais a estabilidade e saúde psíquica. Podemos chamar isto também de tendência de afiliação. Tal tendência é mantida vida afora, mesmo após deixarmos de ser bebês ou crianças, e ela está nas entrelinhas de uma demanda de ajuda psicoterápica. E quando formada a díade terapêutica ela está lá presente e invisível como o oxigênio que se respira no espaço de um consultório.
Toda relação psicoterápica é uma relação profissional de ajuda. Como relação de ajuda nela temos alguém que busca ajuda e alguém que se dispõe a ajudar. O ser do psicoterapeuta é, pois, fundamental para o êxito da empreitada relacional. A própria origem etimológica da palavra psicoterapia assim aponta. Terapia vem do grego therapéia que significa o ato de cuidar ou tratar. Já psico também vem de grego psychê e todos sabemos que significa alma. Observem que tratamento é um termo que nos remete ao meio e não ao fim. É o que temos nas palavras como hidroterapia e aromaterapia. Tais palavras não significam “tratamento da água” nem “tratamento do aroma”, mas sim “tratamento por meio da água” e “tratamento por meio do aroma”. E assim também é com psicoterapia: não se trata de tratamento da alma (isto pode ser o objetivo de uma psicoterapia, mas não o seu meio), porém tratamento através da alma – e a alma de que se está falando é a alma do psicoterapeuta.
Inegavelmente a pessoa do psicoterapeuta, seus atributos e suas qualidades, é um componente de suma importância para os fins terapêuticos. E é exatamente isto que nos diz o filósofo e célebre escritor do livro “Eu e TU, Martin Buber, quando afirma: “a realidade decisiva é o terapeuta e não os métodos. Sem métodos, se é um diletante. Sou a favor dos métodos, mas apenas para usá-los, não para acreditar neles”.
Não estamos sugerindo, pelo até aqui exposto, um embate entre relação terapêutica versus técnica, mas sim defendendo a sua interligação complementar. Corre-se o risco de estarmos, sem nos aperceber, desumanizando a psicoterapia ao polarizarmos a quase idolatria da técnica pela técnica. Técnicas sozinhas não são absolutamente nada. É basilar à técnica uma relação que lhe dê sustentação. Se psicoterapia fosse somente tecnicismo científico – sem empatia, calor humano, intuição, criatividade e felling – então um psicoterapeuta seria uma espécie de robô a reproduzir livros, manuais, estatísticas, protocolos e questionários pré-elaborados. Esquecer-se-ia a força e o poder que tem uma relação vincular. Por isto DEFENDO em letras garrafais a humanização da relação psicoterápica.
Talvez estejamos vivendo uma época onde a inveja de não se ser médico aflora. A protocolização de algumas abordagens hoje em voga parece indicar um tanto isto. Dão-se ênfase às técnicas e aos protocolos e olha-se pouco menos ou quase nada para a pessoa do psicoterapeuta. O mesmo se indagam Martha Ludwig, Marlene Strey e Margareth Oliveira no interessantíssimo texto publicado na Revista Grifos (já citado na primeira parte do nosso), “Tratamentos Manualizados: Psicólogos Matemáticos?” , quando nos oferecem a seguinte questão: “até que ponto estamos atendendo a pessoa quando trabalhamos com os protocolos, e até que ponto estamos atendendo uma patologia”.
Continuaremos, pois, a seguir com a nossa defesa ao resgate do que há de humano nas ciências humanas.
(continua)


Joaquim Cesário de Mello
LiteralMente


quarta-feira, 11 de julho de 2012

(ESPAÇO DO COLABORADOR) "LACAN IS NOT GOD": OS SUBTERRÂNEOS BOLORENTOS DA ADORAÇÃO PAGÃ




Paulina Souza (psicóloga- psicoterapeuta)


Instigada pelo texto do filósofo e escritor Guilherme Saraiva, publicado no blog LiteralMente em 27/05/2012, motivei-me a contribuir com meu próprio exemplo sobre minha rápida passagem pelas igrejinhas lacanianas da vida. Evidente que aqui abaixo é um depoimento puramente pessoal, subjetivo, passional, todavia reflexivo e lúcido. Sou uma descrente que um dia correu o risco de virar uma religiosa do vazio.

Jovem, verde e ingênua, empolgada e cheia de ideias para mudar o mundo, era assim que eu me encontrava em meados dos anos 90 quando me formei em meu primeiro curso universitário. Quase como moto contínuo, pois me achava magnetizada pelos textos freudianos, aproximei-me de uma das várias instituições psicanalíticas existentes à época. Para minha sorte ou meu azar ingressei em uma de raiz, tronco, galhos, ramos e frutos lacanianos. De início, embora a estranheza inicial, me vi seduzida pelo jargão e discurso esotérico ali existente. Tamanha a sensação de minha ignorância que me extasiava com os mais velhos e iniciados frequentadores em suas empoladas falações. A “burrice” em que encontrava – pensava eu – será depois superada quando compreender a fundo os mistérios doutrinantes do saber supremo que se achava oculto por detrás daquela verdadeira linguagem de gueto. Parecia que estudava Cabala.
Passado os momentos primeiros fui me dando conta que ali não se estudava: ali se doutrinava e se adorava. Tudo girava em torno de um nome: Lacan. Respirava-se Lacan, suspirava-se Lacan, transpirava-se Lacan, comia-se Lacan. E haja Lacan, o tempo inteiro, sem exceção. E quanto mais Lacan vivíamos, mais Lacan se ansiava. Lacan, descobri às duras penas, é inesgotável. Aliás, infinito. Infinito, pois um dia ele nasceu. Acaso não houvesse nascido, não tivesse um começo, não seria infinito, porém eterno. E eterno (sem começo e nem fim) somente Deus. Será que aquelas pessoas sabem que Lacan tem certidão de nascimento?
E quanto mais o tempo passava mais minha “burrice” aumentava. Entendia cada vez menos do que já não entendia. Impressionante como as demais pessoas (ou seriam fies?) se deliciavam com suas igualmente “burrices”. Quando um outro (pequeno outro) abria o verbo ininteligível as bocas caladas salivavam de prazer e gozo. Quanto mais emaranhada e barroca fosse a verborreia mais suspiros de orgasmos sublimados tínhamos. Era quase um bacanal em que corpos não se tocavam, apenas eufemismos impenetráveis se intercambiavam. Parecia que toda a atmosfera do ambiente estava coberta por um invisível sombrear do Espírito Santo. Embora a sensação fosse de uma Torre de Babel, todos conversavam voltados para o próprio umbigo e pareciam se entender onde ninguém sabia exatamente o que estava se dizendo. Talvez fosse a linguagem dos anjos e eu não sabia, pois estava ficando cada vez mais ateia. Corria o risco de ser excomungada, como de fato mais adiante aconteceu. Deixo aqui em alto e bom som: minha excomunhão foi auto-imposta, não fui expulsa, me exilei.
Claro que tenho de reconhecer a contribuição de Lacan ao mundo psicanalítico. Sua verve e certa genialidade geraram partículas de conhecimento que nos auxiliam no desvendar da imensidão do psiquismo humano. Acontece que seus adoradores transformaram a luminosidade meteórica de sua passagem nos breus do universo da alma humana no próprio universo em si. Para eles Lacan não foi um mortal que fez sua parte em auxiliar a entender a alma e seus mistérios; Lacan é a alma.
Certa vez uma amiga, Marcela, em uma conversa despretensiosa dizia que muitas das teorias são autobiografias. A de Lacan com muita certeza, assim como a de muitos outros. E quem foi o homem Lacan? Com formação em medicina legal Lacan antes de enveredar pela psicanálise transitou pela neurologia e pela psiquiatria. No seu começar sofreu influência de pensadores do porte de Alexandre Kojève e Hegel. Psicanalisado pelo seu analista didático Loewenstein, sua análise pessoal durou cerca de seis anos e encerrou-se de maneira inconclusa e com atritos entre ambos (Lacan foi um neurótico não curado?). Com a “revolucionária” proposta de que a psicanálise de sua época havia se afastado das origens freudianas, propõe um retorno a Freud através da mistura de linguística, estruturalismo, topologia e lógica. Para uns um verdadeiro “samba do crioulo doido”.
No livro “Imposturas Intelectuais”, Sokal e Bricmont expõem a seguinte fratura do discurso lacaniano: é uma narrativa épica impregnada de conceitos científicos e matemáticos. Para eles Lacan abusa de utilizar recursos matemáticos e fragmentos científicos cujo conhecimento ele pouco ou quase nada detinha, ou quando muito de maneira vaga e superficial. Com o objetivo de encantar plateias desnutridas Lacan vomitava erudição cheia de termos técnicos irrelevantes, manipulando locuções e frases sem sentido ou nexo. Segundo os autores há uma intoxicação com palavras, combinada com uma suprema indiferença por seu significado. Uma pérola do estilo Lacan de impostar: "Da estrutura como o amálgama de um pré-requisito do Outro a qualquer sujeito que seja". Entendeu? Ou em termo atuais da era facebook: curtiu?
Em sua pretensa pedagogia matemática Lacan mimetizou plateia como um neo-Mesmer. Ao se oferecer não compreendido Lacan nos ofereceu o melhor do seu gênio: deixar às gerações futuras o desafio de compreendê-lo. Meio caminho para virar divino.
Mas Lacan era humano. Personagem suntuoso de sua geração era um vaidoso que se cobria de peles. Necessitava insaciavelmente de aduladores. Enigmático e fascinante se expunha aos refletores da publicidade como uma espécie de xamã. Inevitavelmente virou moda, depois câncer, nos dizeres de Gille Lapouge. Vedete, seus seminários atraíam multidões. A burguesia tem lá seus vazios e suas culpas. Reconheçamos, Lacan foi um mágico das palavras não impressas. Inteligente, fátuo, orgulhoso, de rara capacidade oratória, coquete, caprichoso e vaidoso, extremamente vaidoso, era um homem chegado a provocações, mas também um ser gentil e cortês, às vezes, poucas vezes, até humilde.
Entre boas sacações e inúmeras bobagens, pro bem e pro mal, Lacan existiu. O homem morreu e suas ideias perpetuaram como um enigma da esfinge. No hermetismo do seu linguajar e teoria ele tem, indubitavelmente, sua marca na história. Não importa que em suas sessões de análise fosse se tornando um analista cada vez mais silencioso, em sessões cada vez mais curtas e cada vez mais caras. Lacan foi, antes de sua triste velhice, “o cara”. Mas daí metamorfosear “o cara” em Deus são outros quinhentos. E haja livros introdutórios sobre ele, afinal a indústria não pode parar e ainda há muito dinheiro pra se ganhar.
Afastei-me daquele ambiente sacrossanto onde eram heresias coisas como Teoria das Relações Objetais, Psicologia do Self, Psicologia Humanista, Neurociência, Treinamento e Desenvolvimento de Habilidades Sociais, Psicologia Interpessoal, Terapia Cognitivas Comportamentais, Teorias Sistêmicas, Psicologia do Ego e outras facetas humanas do humano em querer entender o humano. Afastei-me sem saudades daqueles cabelos pintados de vermelho e ruivo que tanto desdenhava no auge da meia-idade de minha passageira juventude e que hoje me vejo nos espelhos da casa no colorido quase ruivo de meus próprios cabelos. Lá ficaram algumas amigas que depois de décadas ainda leem livros introdutórios sobre Lacan, enquanto a vida passa e o mundo muda. Viciadas em seus ópios semanais cantam loas em que subliminarmente entoam o seguinte refrão: só Lacan salva. Amém...

quarta-feira, 4 de julho de 2012

ESPAÇO DO COLABORADOR Teatralizando, mascarando e vivendo.


Andreza Crispim(curso de psicologia - FAFIRE).



Dias atrás participei de uma oficina de máscaras em um grupo de teatro amador do qual sou integrante. Tínhamos como finalidade produzirmos máscaras de gessos no rosto de um colega e vice-versa. A experiência desse momento me submeteu a diversas reflexões. Enquanto estava sentada e o meu parceiro de grupo colocava vagarosamente as folhas de gesso sobre meu rosto procurei ficar calma. Rapidamente minha boca foi silenciada e em seguida meus olhos foram fechados. Não podia sorrir, não podia chorar, nem fazer movimentos bruscos. Diante de tal situação busquei concentrar-me no que estava sendo feito e meus pensamentos alçaram voo.


Notei que quem estava a montar minha máscara não era eu, mas sim um outro. Ele moldava o gesso aos traços do meu rosto à sua vontade e aos limites da minha face. Ela seria o resultado do nosso encontro e o produto seria fruto de nós dois.

 Várias camadas foram colocadas sobre minha pele. A primeira foi fria e causou desconforto, mas logo me adaptei, pois era leve. As seguintes iam se destacando em relação ao peso, porém o frio não era tanto e estava mais acostumada com a sensação que elas proporcionavam. Ao longo do processo sentia-me mais afastada, mais interiorizada. Algo estranho estava se formando no meu rosto, destacava-se, distanciava-me. Já não estava mais a vista. Escondida sob uma montanha de gesso sentia-me a vontade, arrisquei até uma dancinha com os braços, claro que com cuidado para não machucá-la.

Com o passar do tempo tive que me concentrar na respiração. Às vezes ficava ansiosa. Sentia-me presa. Voltava os pensamentos para a respiração e procurava confiar no meu colega. No entanto, ele cometeu uma falha: estava tampando meu nariz. Quando adicionou mais uma camada a essa região percebi que aquela pequena passagem de ar foi interrompida e comecei a sufocar. Passei a respirar com mais força, mas não havia ar. Os outros integrantes perceberam e após poucos segundos abriram um pequeno buraco e pude respirar novamente. Contudo, nesse meio tempo não fiquei nervosa. Respirava fundo para tentar abrir uma passagem pela lateral e esperar alguma solução. Pensava apenas em não arrancar a máscara naquele momento, pois a estragaria. Ela já pertencia a mim e eu a ela.

A fase final do processo foi particularmente interessante. Outro membro do grupo veio ao meu ouvido e sussurrou uma série de frases. Pedia que fizesse alguns movimentos com o rosto, que tocasse calmamente a máscara e sentisse que aquilo não era mais eu, era qualquer outra coisa criada a partir de mim. Foi aos poucos a soltando de minha pele e disse que da mesma forma que a construí poderia me desfazer dela, não pude me conter e as lágrimas rolaram.


Pensando em como se dão os relacionamentos na sociedade e o desenvolvimento da personalidade humana, essa experiência que descrevi é um reflexo desses pontos. O convívio social exige de nós alguns artifícios e estes nos ajudam a nos adaptarmos ao mundo e às suas regras, valores e crenças.

A máscara no teatro tem várias funções e entre elas está a de preservar o ator dos olhares do público podendo ele observá-lo livremente. Esse instrumento desrealiza a personagem, pois introduz um elemento estranho entre o ator e o espectador que interfere na identificação deste com aquele. Ela é usada frequentemente quando a encenação busca evitar uma transferência afetiva e distanciar o caráter e será apenas no conjunto da encenação que seu uso fará sentido.

        No cotidiano, assim como no teatro, nos valemos de máscaras que colaboram para a vida social e preservação do nosso eu. É completamente saudável e compreensivo o uso destas. Contudo, quando se trata do humano nada é tão simples quanto parece. Aquilo que um dia foi saudável e colaborativo pode se transformar em um empecilho para a vida social e pessoal. Caberá a cada saber utilizar sua mascará de forma que não se venha perder por trás dela ou confundir-se. Ela pode e deve sair do rosto quando for conveniente. É fundamental saber retirá-la e encenar com o rosto nu.

domingo, 1 de julho de 2012

RAÍZES PSICOLÓGICAS DA PSICOTERAPIA: ANATOMIA DE UMA RELAÇÃO


Vive-se hoje tempos onde a tecnologia predomina em praticamente todas as áreas humanas e sociais. Quem atualmente, urbanamente falando, consegue viver sem internet e celular, por exemplo. Muitos poucos. Embora a tecnologia seja para a humanidade uma poderosa ferramenta em seu constante avançar, bem como seja inegável a importância da mesma para a evolução do ser humano em geral e que nos facilita a vida sobremaneira, o surgimento cada vez mais rápido de novas tecnologias está gradual e processualmente levando-nos a cada vez mais sermos dependentes delas. Com a popularização crescente de smartphones, tablets, net books, games eletrônicos, iPods, redes sociais, GPS, etc e tal, tem nos levado a uma sensação subjetiva e real de que estamos em um universos múltiplo e dinâmico em constante transformação e mudanças. Mal aprendemos uma ferramenta tecnológica e já surge outra, e outra e outra...
                Certa vez, no distante ano de 1979, disse o historiador e crítico social  Cristopher Lasch que pós-modernidade gera pessoas pós-modernas. Sim a cultura do narcisismo venceu e agora impera. Alguém, até, já nos denominou de “geração fast-food”. Era, portanto, inevitável que no corre-corre da vida bulímica contemporânea e com o impregnar tecnológico em nossos cotidianos o mesmo não respingasse no campo das chamadas psicoterapias. Não falo aqui da tecnologia propriamente dita, mas da maneira de pensar tecnocrática. Pós-modernidade gera pessoas pós-modernas.
                As psicoterapias estão correndo o risco de se transformarem em abordagens psicoterápicas puramente técnicas, isto é, com predominância quase exclusiva da técnica com secundarização e quase olvidar dos aspectos psíquicos e subjetivos inerentes nos quais se baseiam o encontro terapeuta-cliente. Na balança da técnica e da arte, na qual se realiza qualquer psicoterapia, pende-se perigosamente para a técnica em detrimento da criatividade e da arte. Digo perigosamente pelo receio (ou seria temor?) de que os psicoterapeutas deste já não tão iniciante assim século XXI se transformem em psicotecnocratas, em um verdadeiro culto, muitas vezes pouco refletido, à hegemonia da técnica com consequente “esquecimento” do humano propriamente dito. Humano aqui - entenda-se - algo além e muito além do que somente síndromes e sintomas.

                A excessiva padronização de técnicas descritas em manuais, a exagerada preocupação com monitorização de comportamentos e ideações, o reducionismo pretensiosamente científico da maneira de abordar, o modelamento engessante da sistematização operante, o mapeamento enfático através de questionários, a preeminência do que é observável empiricamente, a sobreestimação do racional sobre o emocional, entre outras coisas, está empobrecendo a riqueza do encontro psicoterápico na exaltação ao sintomático. Tudo isso tem sua relevância e sua importância, mas tudo isso não é toda psicoterapia. Existe, evidente, o sintoma apresentado, a pessoa que se apresenta e a própria relação que se presentifica entre o terapeuta e o cliente/paciente. Todas as citadas existências existem em um único momento psicoterápico, assim como existe uma significativa diferença entre o melhorar e o mudar.
                Técnicas e estratégias de abordagens à parte, o que sustenta uma relação psicoterápica são os aspectos psicológicos e inespecíficos de qualquer encontro humano e intersubjetivo. O psicólogo Carl Rogers muito contribuiu para o estudo da psicoterapia, principalmente em seus elementos eminentemente subjetivos. Em sua visão claramente humanista do processo psicoterápico Rogers enfatizou o trabalho terapêutico como um facilitador do potencial de crescimento psíquico que existe no cliente, aliás, em todo ser humano. A aceitação da pessoa como ela é, a empatia e a congruência estão para Rogeres como precondições básicas que facultam, proporcionam e viabilizam a própria psicoterapia tanto como encontro humano como tratamento. Intuição, sensibilidade e compreensão emocional, feeling, timing, inventividade, comunicação e receptividade afetiva, e outros atributos pessoais que deve ter um psicoterapeuta são por demais necessários a qualquer bom funcionamento psicoterápico. Muito mais do que um psicoterapeuta faz é quem o psicoterapeuta é, pois este é, sem sombra de dúvidas, o principal instrumento da psicoterapia: o self do psicoterapeuta.
                Dentro de um rigor pretensiosamente científico estabelece-se o paradigma de que a eficácia de uma psicoterapia é a técnica empregada e a teoria na qual ela se baseia, e assim se esquece de que os efeitos terapêuticos de uma psicoterapia qualquer têm mais a ver com a relação que se estabelece. É o próprio relacionamento em si que será o grande propulsor e agente de mudança e isto, por sua vez, só será possível quando o psicoterapeuta espontaneamente se permita criar uma psicoterapia única e exclusiva, ou seja, uma psicoterapia que só existe para aquele cliente, que se construiu como relação a partir das demandas, da personalidade e das idiossincrasias da pessoa chamada cliente.
                Evidente que não estou a mencionar coisas novas. Não, pelo contrário. Talvez esteja é evocando o que estamos esquecendo quando sem nos aperceber estamos quase na iminência de nos tornarmos profissionais de manuais, muitos deles verdadeiras “receitas de bolo”. Na ânsia cientificista, que às vezes camufla uma ideologia a serviço de interesses econômicos (entre eles a indústria farmacêutica), cada vez mais se desenvolvem técnicas lastreadas e estruturadas em protocolos de atendimento voltados a tipologias e a problemas específicos com grave comprometimento à singularidade de cada pessoa ou caso. E não estou sozinho, é claro. Em minhas inquietações, questionamentos, reflexões e andanças tenho-me deparado com outros que igualmente compartilham da mesma preocupação. Entre eles gostaria de citar o excelente trabalho publicado pelo pessoal de pós-graduação em Psicologia da PUC (RS) Marta Ludwig, Marlene Strey (minha ex-orientadora de mestrado, saudades) e Margareth Oliveira, “Tratamentos Manualizados: Psicólogos Matemáticos?”. Dele reproduzo o seguinte trecho:  “As técnicas, por si só, são vazias se não houver esta base forte e bem trabalhada. Talvez seja mais benéfico para o paciente ter uma boa relação terapêutica, mesmo que não sejam trabalhadas técnicas específicas para o seu problema, do que ser submetido à técnica mais pesquisada e empiricamente eficaz se não foi estabelecido um vínculo afetivo, de empatia e de confiança”. Sim, a relação humana é fundamental.
            A relação é fundamental, principalmente porque é ela que aciona os aspectos e fatores psicológicos e potencialmente salutogênicos que há em qualquer ser humano em suas relações com outros seres humanos.  E é sobre isto que iremos versar na próxima continuação deste texto, em breve.
(continua)

Joaquim Cesário de Mello