quarta-feira, 11 de julho de 2012

(ESPAÇO DO COLABORADOR) "LACAN IS NOT GOD": OS SUBTERRÂNEOS BOLORENTOS DA ADORAÇÃO PAGÃ




Paulina Souza (psicóloga- psicoterapeuta)


Instigada pelo texto do filósofo e escritor Guilherme Saraiva, publicado no blog LiteralMente em 27/05/2012, motivei-me a contribuir com meu próprio exemplo sobre minha rápida passagem pelas igrejinhas lacanianas da vida. Evidente que aqui abaixo é um depoimento puramente pessoal, subjetivo, passional, todavia reflexivo e lúcido. Sou uma descrente que um dia correu o risco de virar uma religiosa do vazio.

Jovem, verde e ingênua, empolgada e cheia de ideias para mudar o mundo, era assim que eu me encontrava em meados dos anos 90 quando me formei em meu primeiro curso universitário. Quase como moto contínuo, pois me achava magnetizada pelos textos freudianos, aproximei-me de uma das várias instituições psicanalíticas existentes à época. Para minha sorte ou meu azar ingressei em uma de raiz, tronco, galhos, ramos e frutos lacanianos. De início, embora a estranheza inicial, me vi seduzida pelo jargão e discurso esotérico ali existente. Tamanha a sensação de minha ignorância que me extasiava com os mais velhos e iniciados frequentadores em suas empoladas falações. A “burrice” em que encontrava – pensava eu – será depois superada quando compreender a fundo os mistérios doutrinantes do saber supremo que se achava oculto por detrás daquela verdadeira linguagem de gueto. Parecia que estudava Cabala.
Passado os momentos primeiros fui me dando conta que ali não se estudava: ali se doutrinava e se adorava. Tudo girava em torno de um nome: Lacan. Respirava-se Lacan, suspirava-se Lacan, transpirava-se Lacan, comia-se Lacan. E haja Lacan, o tempo inteiro, sem exceção. E quanto mais Lacan vivíamos, mais Lacan se ansiava. Lacan, descobri às duras penas, é inesgotável. Aliás, infinito. Infinito, pois um dia ele nasceu. Acaso não houvesse nascido, não tivesse um começo, não seria infinito, porém eterno. E eterno (sem começo e nem fim) somente Deus. Será que aquelas pessoas sabem que Lacan tem certidão de nascimento?
E quanto mais o tempo passava mais minha “burrice” aumentava. Entendia cada vez menos do que já não entendia. Impressionante como as demais pessoas (ou seriam fies?) se deliciavam com suas igualmente “burrices”. Quando um outro (pequeno outro) abria o verbo ininteligível as bocas caladas salivavam de prazer e gozo. Quanto mais emaranhada e barroca fosse a verborreia mais suspiros de orgasmos sublimados tínhamos. Era quase um bacanal em que corpos não se tocavam, apenas eufemismos impenetráveis se intercambiavam. Parecia que toda a atmosfera do ambiente estava coberta por um invisível sombrear do Espírito Santo. Embora a sensação fosse de uma Torre de Babel, todos conversavam voltados para o próprio umbigo e pareciam se entender onde ninguém sabia exatamente o que estava se dizendo. Talvez fosse a linguagem dos anjos e eu não sabia, pois estava ficando cada vez mais ateia. Corria o risco de ser excomungada, como de fato mais adiante aconteceu. Deixo aqui em alto e bom som: minha excomunhão foi auto-imposta, não fui expulsa, me exilei.
Claro que tenho de reconhecer a contribuição de Lacan ao mundo psicanalítico. Sua verve e certa genialidade geraram partículas de conhecimento que nos auxiliam no desvendar da imensidão do psiquismo humano. Acontece que seus adoradores transformaram a luminosidade meteórica de sua passagem nos breus do universo da alma humana no próprio universo em si. Para eles Lacan não foi um mortal que fez sua parte em auxiliar a entender a alma e seus mistérios; Lacan é a alma.
Certa vez uma amiga, Marcela, em uma conversa despretensiosa dizia que muitas das teorias são autobiografias. A de Lacan com muita certeza, assim como a de muitos outros. E quem foi o homem Lacan? Com formação em medicina legal Lacan antes de enveredar pela psicanálise transitou pela neurologia e pela psiquiatria. No seu começar sofreu influência de pensadores do porte de Alexandre Kojève e Hegel. Psicanalisado pelo seu analista didático Loewenstein, sua análise pessoal durou cerca de seis anos e encerrou-se de maneira inconclusa e com atritos entre ambos (Lacan foi um neurótico não curado?). Com a “revolucionária” proposta de que a psicanálise de sua época havia se afastado das origens freudianas, propõe um retorno a Freud através da mistura de linguística, estruturalismo, topologia e lógica. Para uns um verdadeiro “samba do crioulo doido”.
No livro “Imposturas Intelectuais”, Sokal e Bricmont expõem a seguinte fratura do discurso lacaniano: é uma narrativa épica impregnada de conceitos científicos e matemáticos. Para eles Lacan abusa de utilizar recursos matemáticos e fragmentos científicos cujo conhecimento ele pouco ou quase nada detinha, ou quando muito de maneira vaga e superficial. Com o objetivo de encantar plateias desnutridas Lacan vomitava erudição cheia de termos técnicos irrelevantes, manipulando locuções e frases sem sentido ou nexo. Segundo os autores há uma intoxicação com palavras, combinada com uma suprema indiferença por seu significado. Uma pérola do estilo Lacan de impostar: "Da estrutura como o amálgama de um pré-requisito do Outro a qualquer sujeito que seja". Entendeu? Ou em termo atuais da era facebook: curtiu?
Em sua pretensa pedagogia matemática Lacan mimetizou plateia como um neo-Mesmer. Ao se oferecer não compreendido Lacan nos ofereceu o melhor do seu gênio: deixar às gerações futuras o desafio de compreendê-lo. Meio caminho para virar divino.
Mas Lacan era humano. Personagem suntuoso de sua geração era um vaidoso que se cobria de peles. Necessitava insaciavelmente de aduladores. Enigmático e fascinante se expunha aos refletores da publicidade como uma espécie de xamã. Inevitavelmente virou moda, depois câncer, nos dizeres de Gille Lapouge. Vedete, seus seminários atraíam multidões. A burguesia tem lá seus vazios e suas culpas. Reconheçamos, Lacan foi um mágico das palavras não impressas. Inteligente, fátuo, orgulhoso, de rara capacidade oratória, coquete, caprichoso e vaidoso, extremamente vaidoso, era um homem chegado a provocações, mas também um ser gentil e cortês, às vezes, poucas vezes, até humilde.
Entre boas sacações e inúmeras bobagens, pro bem e pro mal, Lacan existiu. O homem morreu e suas ideias perpetuaram como um enigma da esfinge. No hermetismo do seu linguajar e teoria ele tem, indubitavelmente, sua marca na história. Não importa que em suas sessões de análise fosse se tornando um analista cada vez mais silencioso, em sessões cada vez mais curtas e cada vez mais caras. Lacan foi, antes de sua triste velhice, “o cara”. Mas daí metamorfosear “o cara” em Deus são outros quinhentos. E haja livros introdutórios sobre ele, afinal a indústria não pode parar e ainda há muito dinheiro pra se ganhar.
Afastei-me daquele ambiente sacrossanto onde eram heresias coisas como Teoria das Relações Objetais, Psicologia do Self, Psicologia Humanista, Neurociência, Treinamento e Desenvolvimento de Habilidades Sociais, Psicologia Interpessoal, Terapia Cognitivas Comportamentais, Teorias Sistêmicas, Psicologia do Ego e outras facetas humanas do humano em querer entender o humano. Afastei-me sem saudades daqueles cabelos pintados de vermelho e ruivo que tanto desdenhava no auge da meia-idade de minha passageira juventude e que hoje me vejo nos espelhos da casa no colorido quase ruivo de meus próprios cabelos. Lá ficaram algumas amigas que depois de décadas ainda leem livros introdutórios sobre Lacan, enquanto a vida passa e o mundo muda. Viciadas em seus ópios semanais cantam loas em que subliminarmente entoam o seguinte refrão: só Lacan salva. Amém...